Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Luís Carlos Patraquim


 


A minha herança moçambicana*


Por Ana Mafalda Leite




 

Venho reflectindo já há alguns anos sobre heranças. Não materiais, mas culturais. As reconhecíveis, as irreconhecidas, as irreconhecíveis. Através da literatura e da vida, os trilhos cruzando-se, vou encontrando, pelas diferenças, quantas vezes também, as mais próximas identidades. Falarei de correspondências, ou da necessária atenção para nelas procurar um entrançado fio umbilical de muitas mães. Tradição e reconstrução da memória, longo o caminho, onde os olhos para distinguirem se fazem plenos de aparente cegueira. Perdoem, mas o paradoxal é a exacta poliédrica geometria onde possivelmente cabe esta tradição e herança de que quero falar. E falar através dela, de mim própria, através de vós e de nós, dos que estão para vir, potenciados já no nosso rumo. Porque tradição se faz pelo presente do passado, o mais acalentado sonho a vir. Também sou poeta, é verdade; percorro o país dos outros para chegar ao país de mim. E pela poesia também cheguei ao ensaio, à leitura crítica e relacional.

Há uma casa primordial, um lugar, onde cheguei em estado ainda de pura lactência. É no norte, perto de Tete. Moatize. Cheguei ignorante de pensamentos e palavras no fim da década de cinquenta. O meu "poema da Infância Distante" para roubar um título à Noémia, são os grandes espaços de uma terra escura do minério, tórrida na sua bebedeira de sol zumbindo os dias, os grandes silêncios de noites povoadas de histórias de animais, de sons alteados. Na minha infãncia e adolescência o convívio com a natureza e os animais foi muito próximo. Reconheço, ainda hoje, que esses primeiros anos desenharam em mim uma sociabilidade muito particular, reconhecida pelo sorriso atento, que esconde o movimento de fuga com que se prepara a cassanha ou o inhacoso para nos surpreender, enquanto nos olha com os seus olhos doces e meigos. Nessa margem do tempo, em que a casa resplende e a infância se vai cerzindo de sons e imagens , alguns versos meus referem essa rarefeita captação :" guardam na imensidão do olhar/ a planície o deserto/ um raso fluir de som de sombra/ cerce à terra um rumor / de vozes ou de passos longe/Desaparecem no instante/ preciso em que os adivinhamos/ rápidos silenciosos serenos/ altivos mas muito mansos/ os anjos os olhos brancos/ entranhando-se nos muros/ nas árvores no espaço/ lembram a infinita doçura/ de certos animais selvagens/ lâmpadas noite adiante/ lâmpadas sem luz"(Em Sombra Acesa).

Mais tarde, a vinda para o sul, para Lourenço Marques, dois anos antes de ser Maputo. A cidade fervilhando de surpresa. Descubro Verlaine, Baudelaire, Rimbaud. Faço algumas das primeiras leituras de poesia contemporânea de língua portuguesa, quem, o que encontrava? Herberto Hélder, Glória de Sant'Anna, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro. Modernismo e surrealismo ( Breton, Eluard...) digeridos em salada nos belos cadernos com desenhos e poemas, que a minha querida amiga e colega Amélia Russo de Sá recitava com a convicção das verdades mais evidentes e solares.

À beira índico, pressentíamos, no entanto, com outras leituras menos poéticas a mudança dos tempos. Em 1974, leitura de José Craveirinha, acabado de editar, dezassete anos, poemas de Rui Knopfli, primeiro ano na Universidade Eduardo Mondlane. Uma professora, recém chegada de França, Maria de Lourdes Cortez, a desvendar-nos de repente o mundo. Semiótica, psicanálise, análise textual, leituras em catadupa, Freud, Roland Barthes, Julia Kristeva e tantos outros a servirem um corpus, em que poesia de Craveirinha e Grabato Dias ofereciam seus préstimos volumétricos. Colegas, amigos, uns nas aulas, outros cruzando-se no nosso caminho, Manuela Sousa Lobo, Inês Machungo, Lourenço do Rosário, Amélia Russo de Sá, Maria de Santa Cruz, São Morena ....

Acho que a minha incipiente articulação da escrita poética com a ensaística começou nessa altura. Um outro professor, diferente, Eugénio Lisboa, vertiginoso contador de estórias, abriu-nos os caminhos da ficção comparada moderna e alvoraçava-nos para os gigantes da literatura universal. Caleidoscópio tentacular e sábio, de Homero a Malraux ou Montherland, passando por Scott Fitzgerald, não esquecendo Cervantes. É nesta altura que se faz a publicação de um dos primeiros livros de reflexão sobre literatura moçambicana sobre a poesia de Rui Knopfli, Grabato Dias e José Craveirinha. E no meio deste eclodir de consciências críticas para o literário, a bandeira a erguer-se em 25 de Junho. Dezoito anos. Começava a despertar em mim a consciência da nação e com ela uma literatura, a literatura moçambicana.

Parto para Lisboa em 1976, para finalizar o curso de Filologia Românica, iniciado na Universidade Eduardo Mondlane. Tenho um convite para iniciar uma carreira universitária, mal acabo. Começa a configurar-se intensamente o desejo de aprofundar o estudo da literatura moçambicana. Faço as primeiras leituras da poesia de Noémia de Sousa, via Mário de Andrade. Foi fundamental este momento de conhecimento com a escrita de uma mulher que antecipa e inscreve nos textos o despertar da consciência nacionalista. Leio em simultâneo Reinaldo Ferreira, Alberto de Lacerda. É ainda o início das leituras de literatura angolana e caboverdiana e de um contacto mais próximo com a literatura brasileira e portuguesa actual. Muito cinema, algumas viagens, amigos artistas, pintores e poetas. Eu, procurando no sonho e na arte sentidos para a vida. Deslocando-me entre múltiplos espaços, terra longe, terra desdobrando-se dentro de mim:"torna-se teu corpo muro antiquíssimo/ memória ou voz das tardes prolongadas/ mosaico de gestos mineralizados/ asa do olhar acesa e atenta/ lago tranquilo rosto debruçado/ sobre si sobre a água do rosto/ enrugado um transparente quartzo/ um quarto de século depois/ um século quase" (Em Sombra Acesa)

Pós graduação dois anos depois em literaturas brasileira e africanas de língua portuguesa; início da pesquisa para a tese sobre José Craveirinha. Nessa altura recomeço a leitura de Noémia de Sousa. Reflexão sobre a rítmica oral, a emoção sentida e vibrada da autora que nos diz:"aqui tens o meu poema, irmão./ Meu poema insuficiente e baço,/ palavras,sangue,emoção, grito que se soltou do fundo das veias/ e ficou pairando feito estandarte/ - meu poema fogueira de negros solitários/ acesa á beira da mata em noites de frio e escuridão, /meu poema alma mulata massada em dor e revolta,/ marcada a ferro e fogo desde subterrâneos desconhecidos/ meu poema fraterno, torturado,/ ai meu poema solitário, insuficiente e baço,/ aqui o tens, irmão./ E ele é todo para ti....".Compreensão de que o diálogo quase confessional de certos poemas de Noémia, constituía elemento fulcral para a organização de uma poética veiculadora de outras formas textuais; oscilação entre teatralidade e musicalidade, vibração encantatória da voz corporizada e sensualizada, presença da oralidade em diferentes cambiantes. Chego por ela à poesia de José Craveirinha, que começa a ecoar os trajectos anteriores, também os de Rui de Noronha.

Regresso a Moçambique em 1980 para pesquisa. Contacto mais assíduo com o poeta José Craveirinha. Conhecimento lento, quase quotidiano. Conversas, atmosferas, novos amigos , entre outros contactos significativos de trabalho e de amizade com António Sopa, Luís Carlos Patraquim, Sebastião Alba, Fátima Ribeiro, Perpétua Gonçalves, Fátima Mendonça. Reencontros alguns, novos afectos. Atenção especial à poesia de Luís Carlos Patraquim que inicia um novo percurso e uma nova geração, ainda no refluir de uma poética panfletária da época, recuperando as dicções poéticas anteriores e harmonizando Glória de Santana com Noémia de Sousa, estruturando os novos sentidos numa sintaxe craveirínhica, reinventando a obsessiva ironia knopfliana. Refazendo trilhos aparentemente diversos e divergentes, Monção recupera o que está para vir na metáfora do mar, Inadiável Viagem , Os Barcos Elementares.

Certamente que Camilo Pessanha, com seus vítreos e líquidos orientalismos, ao impregnar a poesia de Glória de Sant'Anna, não sonharia reviver-se translucidado na escrita de Os Barcos Elementares. Leia-se Recado de Glória:" Se eu morrer longe/ sepulta-me no mar/ dentro das algas ignorantes/ e lúcidas./ Cobre o meu rosto de palavras/ antigas/ e de música./ Deixa em meus dedos a memória mais recente de outras coisas inúmeras/ e nos meus cabelos/ o incerto movimento/ do vento e da chuva./ Eu vogarei sob as estrelas/ com pálidas luzes entre os cílios/ e pequenos caramujos/ entrarão nos meus ouvidos./ estarei assim idêntica a todos os motivos" (Amaranto). Metáforas da viagem e da distância da poesia nascida entre dois mundos, que o mar une, desune, miragem, distância, momento de tensão e do existir, coexistindo.

Permito-me reflectir sobre a poesia que não diz referencialmente Moçambique; será porventura menos moçambicana? A problemática é outra. A nomeação de mundos imaginários, míticos, aparentemente irreais, só o é até certo ponto; o mundo imaginário só existe mediante a relação com a realidade vivida, embora tudo isso possa ser transfigurado, diluído:"Serei tão secreta/ como tecido da água/ e tão leve/ e tão através de mim deixando passar/ toda a paisagem/e todo o alheio pecado/ do gesto, da presença ou da palavra/ que logo que a tua mão me prenda/ me não acharás:/ serei de água" (Glória de Sant'Anna, Amaranto).

Mas de que falava eu? De viagem, de regresso. Em 1984 publico o meu primeiro livro de poesia, Em Sombra Acesa e acabo a minha tese sobre José Craveirinha. Onde se tocam estes dois mundos? Que divergem como a noite do dia, ou que comungam duas posturas aparentemente inconciliáveis? Como estar tão próximo, e permitam-me a falta de humildade, de algumas das questões fulcrais colocadas pelo poeta moçambicano, e evadir-me num trans-espaço aéreo e fluido, onde o chão falta e a escrita reflecte sobre si própria, procurando-se? Como responder, senão questionando?

Quem escreve em mim, quem analisa em mim, é o produto de duas culturas que teve, durante a vivência colonial e sua transição, na terra onde cresceu, se formou e fez uma parte significativa dos seus estudos. Quem assim cresceu nessa mistura é herdeiro dela. Queira ou não queira, aparta-se por um lado, integra-se por outro. E mais, é um herdeiro bifronte como Hermes. Viverá, nessa viagem de escriba acocorado, com um pé fincado no chão, uma asa a voar, um remo navegando, um imaginário exílio, dentro da terra encontrado. Leia-se um poema meu de Canções de Alba, Segunda fala do marinheiro:"por vezes parece-me sonho o estar aqui agora e depois não estar/ não há sítio no mundo em que se permaneça em que se situe o centro/ a vida é líquida flui rapidamente vai em direcção ao enigma/ estranho princípio o não voltar estranha vontade o não saber/ nunca soube onde o mar prioncipia por vezes sei dos rumos/ por vezes perdem-se ao acaso em mim tal como nasci/ um dia morrerei mas o mar será ainda movimento..."

Entre 1986 e 88 muita pesquisa e estudo. Em Dakar, conheço outra África, e lecciono e faço investigação durante algum tempo na Universidade Cheik Anta Diop. Mais tarde, em Londres, o contacto com o universo africano anglófono na School of African and Oriental Studies. Muita aprendizagem. Da vida também e da poesia. Em 1989 defendo tese de doutoramento com uma reflexão teorética sobre a recuperação de género épico nas literaturas africanas de língua portuguesa e o corpus abrange a literatura angolana, caboverdiana e também a moçambicana. Em 1990 volto a Moçambique. Dou aulas de literatura moçambicana no então Instituto Superior Pedagógico durante dois meses. Faço questão, nessa altura, de fazer na AEMO o lançamento do meu livro de poemas, Canções de Alba. Acto simbólico e ritual de cumplicidade. Reencontro então novos autores, alguns deles encontrados no ano anterior em Lisboa, no primeiro congresso de escritores de língua portuguesa, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleimane Cassamo, Pedro Chissano, Armando Artur, Eduardo White, Mia Couto. Os afectos, as correspondências simpáticas. A atenção e amorabilidade dos alunos. Laços, ternos laços.

Coube-me e cabe-me o privilégio de poder acompanhar essa então nova geração em processo, e ser consciente da relação com o fazer poético, a isso também me obriga a atenção do analista, assim como a minha atenção de leitora para com a poesia e ficção produzida nos últimos anos, no universo de língua portuguesa, e a que a profissão me obrigou a espraiar cada vez mais - Angola, Cabo Verde, além de Moçambique - e a que, por outro lado, enquanto poeta me obrigo por diálogo de escritas com muitas outras produzidas em diferentes cantos do mundo e do tempo.

O poeta é leitor atento; nesta reflexão estou consciente de que a minha topografia poética é encenada, porque as heranças são múltiplas e a polifonia instaura uma relação de procura, desajuste e ajustamento. Nessa medida serei, perdoem-me o termo, também pós-moderna, dou vozes a várias vozes, repartindo os dois espaços de raiz pela navegação entre duas tradições, atenta em simultâneo ao fazer e desfazer das referências. Por isso se explica, por exemplo, a minha participação num livro como Mariscando Luas em 1992: o azul subúrbio dos versos de Patraquim, veste-se também com noivas, minhas, que são azuis e brancos do pintor Chichorro. Alternância cromática, instauração dos contrastes comungando, porque coexistindo:"são noivas são bruxas?/ bizarros vestidos as levam/ de branco poisadas no esquecimento/ lembram dos tules os voos altos/ da noite sonâmbula por muitas luas enfeitiçada/ por encanto quebranto as rogo conjuro/ neste branco lenço de seda as visto/ de cetim as dispo/ e ponho redes de ágatas púrpura/ obsidianas absíntios jaspe jasmim/ lápis lázuli escorrendo-lhes o corpo/ as pernas os seios o ventre/ transparentes ainda esvoaçam mas brilham intensas/ com seus atavios de inteira sedução/ se alimentam noivas todas as noites as bruxas/ as belas bocas de lua nova (...)" (Mariscando Luas, p.69).Andarei longe perto do poema noiva de Orlando Mendes (Adeus de Gutucumbi) e das luas enfeitiçadas da Noémia de Sousa, ou da cosmética lua craveirínhica; a provocação é o enredo, quer queiram, quer não, vão ter-me neste sigilo declarado de pequenas cumplicidades. Saiba ler quem escreve, porque quem escreve em mim é esta dupla herança, vossa e a deles. Só assim sou minha. Eu, conjugada dualidade, me conjugo, não confesso, antes, professo.

Por outro lado, nesta mais nova geração, a que me irmano também, não é necessário afirmar nada, a não ser a própria poesia. Leia-se Eduardo White: "Não faz mal / Voar é uma dádiva da poesia./ Um verso arde na brancura aéra do papel,/ toma balanço/ não resiste. / Solta-se-lhe/ o animal alado./ Voa sobre as casas,/ sobre as ruas,/ sobre os homens que passam,/ procura um pássaro/ para acasalar./ Sílaba a sílaba/ o verso voa./ E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele./ Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube./ Aquietemo-nos. amainemos esse desejo de o prendermos/ Não é justo um pássaro onde ele não pode voar." in Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave, p.22). As novas gerações da poesia de língua portuguesa, e a isso não escapa a poesia moçambicana, revelam um experimentalismo e liberdade temática maiores; os trilhos podem desdobrar-se infinitamente. Diz Armando Artur: "A poesia obedece a este axioma: 'a palavra e o tempo andam/ de mãos dadas'"( Espelho dos Dias, p.30).

Nos últimos anos, tenho vindo regularmente a Moçambique, aliás, sempre que posso. O meu penúltimo livro de poesia, chama-se Rosas da China. As minhas rosas, que não são micaias, são míticas e eternas. Trouxe-as comigo e lancei-as em Maputo em 1999. Haverá ironia maior nesta provocação topográfica? Desconstruir, desenquadrar, nem Lisboa, nem Maputo, nem Luanda. Indochina? Conchinchina? Rosas da China. Orientes por dentro. Vêm de longe. Estão perto. Aqui:"Quero ser o aroma inteiro enlouquecendo este cair do dia em que as rosas da china/ volteiam rubras e rosadas os lábios da terra/ escurecendo o horizonte água espectral espalhando-se em brasa até ao infinito mar.."

E o que neste vaivém dos últimos anos me acompanhou em escrita? Esse oriente sem lugar que se desvela num livro em que o imaginário da Ilha de Moçambique perpassa em diferentes horizontes...ilhas de afectos em livre trânsito.... Passaporte do Coração. Entretanto tenho, muito devagarosamente, em mãos um romance e um livro de ensaios sobre literatura moçambicana.


Ana Mafalda Leite

*texto adaptado e actualizado da minha intervenção no Colóquio O papel da Mulher na Cultura Moçambicana na segunda metade do seculoXX, Universidade Pedagógica/CCP, Maputo, Junho1997.


 

 

 

 

 

19/07/2005