Luís Carlos Patraquim
Novas formulações moçambicanas
Pedro Mexia
Patraquim opera dentro de uma tradição poética e com isso acaba
com a instrumentalização (política, 'lusófona') , da poesia africana
de língua portuguesa
Depois de Rui Knopfli, Sebastião Alba
e José Craveirinha (todos falecidos na última década), Luís Carlos
Patraquim (nascido em 1953, na então Lourenço Marques) é
provavelmente o maior poeta moçambicano. Patraquim, que se estreou
em 1980 (com Monção), contribuiu decisivamente para uma viragem na
poesia moçambicana (e africana em geral), encerrando o período
militante que produziu, quase sempre, péssima poesia (Knopfli era
menos brando e chamava a essa poesia "merda estalinista").
A noção de comunidade não é ignorada
por Patraquim (nem por outros poetas mais recentes), mas a
existência dessa temática é ditada pela necessidade pessoal
(trágica) e não pela obrigatoriedade política (ideológica). Um bom
exemplo "Sentam-se sob as acácias no asfalto roto / os mutilados com
cigarros de embalar. / Nenhum som os recorta / e todos os sentidos
foram amputados. / Nem para a tarde crescem frustrados. / Esperam.
Que inconclusa forma / os limita em fórmula de serração? / Que
ameaça os delira? Nenhuma flor / explode, poeta, no coração? / Os
mutilados sonharão? Suas pernas? / O desejo, fruto podre adubando.
Outra mão? / Que triste palavra os baba / no cigarro morto! Vendem.
/ Nenhum incesto os estanca. / À revelia do sol, os mutilados /
montam banca" (pág. 80). Como se vê, Moçambique existe politicamente
nesta poesia. Mas os vestígios da guerra são como que exorcizados
com a referência ao universo mágico e ritual, e com uma tonalidade
de exílio melancólico (o escritor vive em Lisboa).
O poema citado está em O Osso Côncavo
e Outros Poemas, substancial antologia (com textos de Monção; A
Inadiável Viagem, 1985; Vinte e tal Formulações e uma Elegia
Carnívora, 1992; Mariscando Luas, 1992; e Lidemburgo Blues, 1997)
seguida de poemas novos (e geralmente menos interessantes). A
referência ao mar e à fauna e flora (palmeiras, acácias, jacarandás,
imbondeiros, gazela, savana) é constante, numa espécie de "natureza
viva" que funciona também como cenário mítico. As palavras africanas
(descodificadas num glossário) são parte desse aspecto "local" dos
poemas. Porém, mesmo com o glossário, a vertente africana permanece
inacessível a quem não esteja familiarizado com (por exemplo) a
topografia ou a magia tribal. Para esses, uns vinte ou trinta poemas
desta antologia são incompreensíveis em termos de significado. Mas a
melhor poesia nunca é "local", pelo que o significado antropológico
não é decisivo. Mesmo quando os poemas são culturalmente situados,
são poeticamente fortes e acessíveis.
Isso acontece porque Patraquim tem uma
arte poética bem calibrada, capaz de escrever poemas curtos muito
expressivos e quase expressionistas, verbalmente densos e
imprevisíveis, com uma aposta imagística eficaz. São poemas a que
podemos aceder apenas pela sua força verbal, estribada também numa
repetição quase ritualística e num sentido rítmico notável
"ocorre-me este curro / de touro tresmalhado, / a badana abanando /
em vermelha festa / o imo das vogais; // ocorre-me, áspera, / a rua
sem nome, / listrada salamandra / em buganvílias / de zinco e zol;
// vêm-me aos olhos / as campânulas da noite / e as hastes
delicadas, / as goivas, os chumaços, / alvareando a espera; // afago
de carne te emborco / agora no redil lanudo / das luas, / o arco em
gancho / para o desígnio a negro / e sal das bicicletas" (pág. 126).
Patraquim é um poeta rigoroso, quer na miniatura lírica quer em mais
extensas odes e elegias (ver sobretudo «Drummondiana» e «Lisabona»),
com uma linguagem rica e alusiva. Os poetas citados são óbvios para
um poeta africano nascido em 1953 (Éluard, Maiakovski, Lorca), mas
também menos óbvios (Blake, Benn, Guillén, Eliot, Michaux, Plath),
estando muito presente a poesia brasileira (Drummond) e portuguesa
(Camões, Sena). Esta é uma poética de "correspondências"; como
escreve, no posfácio, Ana Mafalda Leite, "Patraquim «confisca
imagens, estilos, temas que repõe e expõe nas suas formulações,
reivindicando, deste modo, um direito de herança". É assim também
que funciona o recurso ao inglês (uma forte presença na classe culta
em Moçambique), a referência aos amigos moçambicanos (com um
numeroso jogo de dedicatórias), uma ou outra cunhagem vocabular
(contida). Ou, no meio de um poema claramente africano, a menção a
Antínoo.
O fôlego de Luís Carlos Patraquim,
como disse, é sobretudo visível nas fabulosas elegias, mas também
nos vigorosos poemas eróticos, de um eros frenético ora em pura
chave sexual, ora em contexto amoroso e celebrativo "Urgência
inconsútil das tardes / mareadas de ti. Doutro ritmo. / Urgência do
teu orgasmo, amor! / Oh, my boots, my roots, até à morte / no
aurífero útero da terra. / É verdade, Maputo, o negreiro / mar aos
borbotões, urgência / de porto na garganta rasgada? / E o silêncio
do milho nos porões, / incandescentes, cerebrais? / Que em ma-falo
de Mafalala negra / é o Sul quem grita, urgentemente? / A Pátria?
Mártir matriz tatuada / ainda a caju e sémen? / Urgência inconsútil
das tardes / mareadas de ti, meu amor" (pág. 76).
«Artilheiro de sinais», o poeta
escreve sempre a partir do tumulto. Mas, como disse, é um tumulto
rigoroso, sempre com um trabalho poético inatacável "Nem proscénio
de mim / ou Tartufo somos. / Mil itinerários raiam, / exangues, seus
tendões / em Agosto, o vento. / Calosas, supurando o silêncio, /
sobram-nos as mãos, / o sexo, o medo, a geo / grafia granular com a
voz / na pátria arterial. / Quantas capulanas fazem / a leiva do
discurso? / Ou em olhos de fermento / à espera, quem nos ensaia a
tragédia? / Não em verso completo / a garganta em ti da morte, / que
só de Amor oferto / nossas palavras possíveis, / abertas a maheu e
riso" (pág. 81).
São poemas reescritos (isto é,
reescritos desde a origem), que exigem releitura e fogem da
"transparência" bacoca que os bacocos têm como "a poesia africana".
Como se diz no passo citado do posfácio, Patraquim opera dentro de
uma tradição poética e com isso acaba com a instrumentalização
(política, "lusófona", etc) da poesia africana de língua portuguesa.
A "leve matéria verde da linguagem" é o princípio poético que o
interessa, mesmo se isso nunca exclui uma vivência incandescente de
memórias e emoções " (...) As casas verdes são húmidas e verdes. /
Verdes os remos com livros no mar. // Verde uivo corre Junho e
exaustas / tropeçam as patas do poema. / A menina é dos olhos e o
baço espelho. // Close-up a golfadas de mênstruo / ainda com putas a
açaimos, / quero o verde, os cavalos e os sapos, / verdes as vogais
salgadas e verdes. / Verde tu, cósmica explosão aberta / no meu
peito fulgurando as cosias. / Verdes" (pág. 78). Claro que isto é
Lorca. Claro que isto é um poema africano. Claro que é um poema
africano de língua portuguesa. E nada disto é incompatível.
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