Luis Dolhnikoff
Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão
Numa entrevista
recente, Frederico Barbosa afirmou pretender “dizer coisas
relevantes de modo relevante”. Não obstante, é um epígono dos
concretos.
[...]
Frederico Barbosa aponta, com razão, a mediocridade dos novos
versejadores. Mas não consegue entendê-la [...]
1. Rodrigo de Souza Leão: Você tem um currículo vasto. Desde o
seu início em 1979 até hoje em dia muita gente surgiu e muita gente
ficou pelo caminho. O que o fez se manter ainda dentro da poesia? O
que a poesia tem que uma vez dentro dela só se sai morto? É alguma
maldição (bendição)?
Luis Dolhnikoff: Não me lembro se foi Rilke escrevendo a algum jovem
poeta. Mas há uma história de alguém querendo saber se era, ou seria
de fato um poeta, e de alguém respondendo que, para sabê-lo, era
preciso imaginar-se na cadeia, sem lápis e papel na cela. Se o que o
angustiasse mais fosse, não a prisão, mas a falta de papel e lápis,
então a resposta era afirmativa. Quando li isso, há poucos anos, ri,
porque já havia imaginado a mesma coisa, ainda adolescente. E, de
fato, o que me incomodava mais era a idéia de não ter papel e lápis.
Ao contrário, a idéia da cadeia, em si, até que podia ser agradável,
desde que excluísse a tortura e a tortura da superlotação, pois
significava a libertação do cotidiano pequeno-burguês em que estamos
imersos. O que pode ser muito produtivo.
A poesia é uma vocação, no sentido denotativo – ou seja, um chamado
(não metafísico, não romântico, mas um chamado, um “imperativo”). No
meu caso, é o modo como penso melhor (o segundo modo são os artigos
e ensaios). A poesia é uma linguagem, e cada linguagem uma forma de
conhecimento. Conhecimento dessa própria linguagem, da cultura que a
desenvolveu, da condição humana e do mundo. A lingüística
contemporânea, a partir do trabalho de Chomsky, entre outros,
demonstrou que nossa capacidade verbal é inata. Ao contrário da
antiga tabula rasa em que a cultura escreveria seus ditames,
nascemos com uma gramática interna que se realiza numa dada língua.
Por isso é tão natural aprender uma língua, a partir de um ano de
idade, quando se completa a maturação do sistema nervoso e a laringe
assume uma posição humana (pois nascemos com ela numa posição mais
próxima à laringe dos grandes símios, menos vertical, o que impede a
fonação de sons articulados). Fazendo um paralelo com a linguagem
verbal senso lato, me parece evidente que algumas pessoas, além da
necessidade humana de se comunicar verbalmente (Robison Crusoe é um
herói por simplesmente sobreviver sozinho: de fato, para nós,
animais grupais, apenas viver assim é um ato de grande heroísmo; já
para um grande felino, essa história não faria qualquer sentido),
além dessa necessidade padrão da espécie, algumas pessoas têm
necessidade de se comunicar também através de outras linguagens.
Acontece que a linguagem verbal utilitária, cotidiana, já cumpre o
papel de grande mantenedora da ligação social entre os indivíduos.
Portanto, as demais linguagens têm, necessariamente, outras funções.
Não por acaso, a linguagem poética não é a ideal para fazer uma
lista de compras. Mas é a melhor, por exemplo, para experimentar,
no sentido científico, de teste, a condição de cada palavra, de cada
estrutura sintática, de cada construção verbal histórica memorizada
pela tradição e de cada inovação. Num outro exemplo, também é a
melhor, entre as linguagens verbais (além da cotidiana há a
prosaica, a filosófica, a jornalística, etc), para criar beleza.
Santo Agostinho “definiu” o tempo como algo que todos sabemos o que
seja, quando não temos de descrevê-lo, mas que não sabemos, quando
temos. A beleza é semelhante. Sabemos o que seja, mesmo que não
saibamos defini-la. E, do mesmo modo, sabemos, sem saber por que,
que temos necessidade dela. Da beleza natural, mas também daquela
criada por nós. Não existe um povo que não tenha ido além do mero
utilitarismo de seus artefatos cotidianos e, apesar de sua
inutilidade, acrescentado beleza a eles. Há alguma “verdade”, alguma
pertinência, na beleza, que tem a ver com harmonia, com simetria,
com recorrência. Provavelmente, então, com a memória. E a memória é,
ao mesmo tempo, o que nos faz humanos e, talvez não por acaso, o que
originou a poesia (as nove musas eram filhas de Mnemóssine, a
Memória).
2. Rodrigo de Souza Leão: O que o fez cursar medicina e letras?
Há um ponto de interseção entre estas duas disciplinas?
Luis Dolhnikoff: Fui estudar medicina especificamente para ser
psiquiatra. Por causa da obra de Freud. Mas depois descobri que,
tanto quanto gostava de lê-la, não gostava da psiquiatria na
prática. Ou da clínica, ou da cirurgia. Tratava-se, na verdade, de
uma aproximação filosófica, não médica, com essa obra. Não por
acaso, ficara em dúvida entre fazer medicina e filosofia. Também não
por acaso, seus textos que mais me interessavam eram os de cultura,
senso lato, como “O mal-estar na civilização” e “O futuro de uma
ilusão”. Então, no meio do curso, sem saber mais o que fazer com a
medicina, prestei outro vestibular, a passei a fazer também letras,
à noite. Neste caso, fiquei em dúvida entre português, latim e
grego. Porque o que eu queria, especificamente, era uma aproximação
mais profunda com a língua, do mesmo modo que, com a psiquiatria –
ou com a filosofia –, o que queria era uma aproximação mais profunda
com as coisas. Acabei estudando alguns anos de grego clássico. O que
permite um contato “anatômico” com grande parte das palavras da
língua portuguesa, que, ou são inteiramente gregas, ou
greco-latinas. E aqui está o que ambas as disciplinas (no sentido
antigo, de ofício, de métier) têm em comum: junto com a
ciência e a filosofia, a medicina (que não é ciência, mas um
conjunto de tecnologias) e a literatura (ou as artes) são os quatro
meios complementares para conhecer melhor a condição humana,
excluída apenas a religião.
Sendo que, do meu ponto de vista, o conjunto está completo
justamente por excluir a religião – que não é uma forma de
conhecimento (epistéme), apesar de toda pretensão em
contrário (a não ser histórico e cultural), mas de doxa
(opinião: que aliás também é o significado de mytos em sua
primeira acepção). Não é por acaso que o ensaio capital de Freud
sobre a necessidade que a maioria dos seres humanos têm da religião
se chama “O futuro de uma ilusão” (em que a religião é definida como
“a neurose obsessiva universal da humanidade”).
O que hoje soa “politicamente incorreto”, dada a robustez do
irracionalismo contemporâneo – que, ao lado da sua vertente
contracultural (ou seja, do “religiosismo”, do multiculturalismo
como antiocidentalismo e do pop como seu complemento [pois o
pop pode ser entendido como uma recusa da herança
ocidental]), conta também com uma vertente acadêmica, principalmente
nas ciências humanas, cuja pretensão maior, na verdade, cuja razão
de ser, é justamente negar a distinção entre epistéme e
doxa. Trata-se do relativismo (que nada tem a ver com a obra de
Einstein).
Depois da barbárie em que o século XX afundou o sonho da razão
iluminista, e depois que a contracultura transformou a crítica à
cultura ocidental numa pequena ideologia, o irracionalismo trocou de
sinal, no Ocidente, passando a ser algo positivo. Para isso
contribuiu inclusive a má leitura deliberada da epistemologia
contemporânea. Pois a filosofia da ciência teve de fazer frente ao
desenvolvimento da própria ciência, especificamente ao princípio da
incerteza de Heisenberg e ao fim do princípio da não-contradição da
lógica clássica (algo não poder ser e não ser), pela dupla natureza
onda-partícula do elétron (sendo que onda e partícula têm naturezas
excludentes). Não cabe discutir isso aqui. Estou, no entanto,
terminando um longo livro-ensaio, de 250 páginas, em que o faço (A
alternativa da ilusão – breve história do irracionalismo
contemporâneo).
3. Rodrigo de Souza Leão: Você escreve resenhas literárias.
Recentemente na revista Inimigo Rumor, editada pelo Carlito
Azevedo, havia um ensaio que dizia que resenha literária deveria ser
feita por acadêmicos. Quem deve fazer resenha literária: o
jornalista ou o acadêmico?
Luis Dolhnikoff: Ambos. Pois o jornalismo ganha com a espessura
acadêmica. Enquanto a academia, no caso específico da crítica
(análise) literária, ganha do jornalismo um pouco de gravidade,
não no sentido acadêmico, mas justamente o contrário: no sentido
“físico”, de pôr os pés no chão – o que neste caso significa se
reaproximar da pólis, da “cidade”, do centro natural e
original da cultura.
4. Rodrigo de Souza Leão: Como foi ter organizado o Bloomsday?
Qual influência tem de Joyce e Augusto de Campos?
Luis Dolhnikoff: Embora conheça o Augusto desde os 18 anos, e o
Haroldo desde outro tanto – invertendo a lógica geográfica, pois sou
paulistano, fui apresentado ao Haroldo pelo Leminski, e não o
contrário – tampouco participei da organização do Bloomsday
de SP, entre 91 e 94, a convite do Haroldo, o organizador-mor, mas
sim do meu grande amigo Mário Fuchs, dono do Finnegan´s Pub, em
Pinheiros, onde o Bloomsday sempre aconteceu. Assim, minha
participação na sua organização não se referia ao núcleo do programa
joyceano, a cargo do Haroldo e da Munira Mutran, da cadeira de
inglês da USP. Falando em cadeiras, meu trabalho originalmente
incluía as próprias: pois quando comecei a ajudar o Mário Fuchs a
organizar o Bloomsday, este ainda era um pouco amador. As
pessoas se amontoavam junto ao balcão do pub, era posto um microfone
sobre o tampo, e os participantes, um a um, iam para trás do balcão
ler a parte que lhes cabia. Então instalamos um pequeno palco, um
praticável, no segundo andar, retiramos as mesas e organizamos as
cadeiras de modo a formar um pequeno teatro de arena, incluindo
aluguel de aparelhagem de som. Isso permitiu a participação de
músicos, como o Marsicano e o Daniel Szafran, além da apresentação
de pequenas peças, principalmente de Beckett, com atrizes como Beth
Coelho. Além disso, na época eu era sócio do Marcelo Tápia na
editora Olavobrás, e o Bloomsday de SP passou a incluir, por
iniciativa nossa, um livro-programa com todos os textos lidos
durante a noite, que era – e ainda é – distribuído gratuitamente. E
como o Marcelo Tápia já havia traduzido poemas de Joyce para uma
pequena coleção da Olavobrás (ele deve ter sido o primeiro a
traduzir sistematicamente a poesia de Joyce no Brasil), decidimos
incluí-la no Bloomsday, até então centrado na leitura de
passagens do Ulysses ou do Finnegans Wake. Para tanto,
dividimos a tarefa entre nós, ficando o Marcelo Tápia com os poemas
de Pomes pennyeach e eu com os de Chamber music, os
dois livros de poemas Joyce. Assim, a cada ano traduzíamos um ou
dois poemas de cada livro, líamos o original e a tradução durante a
noite do Bloomsday, e incluíamos as traduções no livrinho.
Trata-se de uma poesia negligenciada em função da “épica” de sua
prosa. O que é um erro, porque Joyce não é um mau poeta, muito ao
contrário. É, sim, um poeta classicizante e de sutilezas, no sentido
oposto ao de sua prosa. Mas seu classicismo nada tem de mero
passadismo. Mas de certo sabor “atemporal”. Quanto à prosa de Joyce,
ela pouco ou nada contribuiu para minha poesia. Pois procuro clareza
(ainda que, no meu caso, isso não seja igual a simplicidade). E
Joyce buscava um aggiornamento completo da função romanesca,
o que incluiu dar conta do funcionamento da mente e do mundo, do
fluxo da consciência ao fluxo das ruas. Em termos microestruturais,
isso o levou à polissemia das palavras-valise, das
palavras-colagens. No entanto, a polissemia da poesia é de outra
natureza. A prosa, cuja origem mais profunda é a épica, se centra no
ele, ou melhor, no eles, na pólis. A poesia, isto é, a
lírica, senso lato (pois toda poesia que fazemos, hoje – excluídas a
épica, substituída pela prosa romanesca, e a poesia dramática –, é
lírica), centra-se no eu. Não apenas no eu do poeta, mas também, a
partir deste, no próprio eu da linguagem poética. Portanto, à poesia
interessa antes conhecer de fato as palavras da língua, mais do que
criar novas palavras. Ainda que eventualmente as crie. Mas será como
resultado, não como ponto de partida. Daí que o grande interesse da
poesia seja experimentar, não tanto novos vocábulos, mas novas
potencialidade sintáticas – que nada narram. Neste sentido, apesar
do modismo multiculturalista de “eliminar as fronteiras”, prosa e
poesia pouco tem a ver. Por outro lado, também escrevo prosa.
Publiquei uma grande coletânea de contos há alguns anos (Os
homens de ferro, Olavobrás), e acabo de terminar um pequeno
romance (ou quase, por sua estrutura fragmentária), Enquanto o
Messias não vem. E aqui, ao lado de Machado de Assis, Joyce é um
grande, um enorme aprendizado, especificamente de repertório técnico
de formas narrativas (para além da experiência da leitura em si).
Resta responder sobre a influência de Augusto de Campos.
Prefiro me referir à influência da poesia concreta (e substituir
influência por aprendizado). Porque, se for para escolher um nome da
sua fase heróica, considero o injustamente ofuscado Pedro Xisto o
mais importante em termos de realização poética (particularmente nos
Logogramas).
Quanto ao aprendizado proporcionado pela poesia concreta, é um
aprendizado-problema. Portanto, um aprendizado que exige uma
solução. Problema e solução que esboço a seguir (pois, de certo
modo, apontam para a totalidade da poesia brasileira contemporânea).
Numa entrevista recente, Frederico Barbosa afirmou pretender
“dizer coisas relevantes de modo relevante”. Não obstante, é um
epígono dos concretos.
Há uma tradição do verso moderno brasileiro,
Bandeira-Drummond-Cabral-Murilo-Vinicius-Gullar, que foi abortada
pelo concretismo. Pela primeira vez na história o falar brasileiro
atingira um status de língua de cultura, com todas suas
possibilidades socioculturais. Ora, para “dizer coisas relevantes de
modo relevante” não há melhor instrumental – nem foi por acaso que,
logo depois de os primeiros modernistas terem apontado e aberto o
caminho, as duas gerações seguintes tenham atingido os patamares que
atingiram. Pois não é exagero dizer que, de certa forma, a
poesia brasileira nasceu em 22. Porém, repita-se, esse instrumental
foi logo condenado pelos concretos, em nome de uma visão
estruturalista de poesia que nenhuma importância dava à língua.
“Poesia é linguagem”. Não à toa, tratava-se de poesia de natureza
predominantemente visual, apesar da palavra de ordem do “verbivocovisual”.
E internacionalista tout court (o que é um índice às avessas
de sentimento colonial).
O afã internacionalista tout court do concretismo fica
clarificado quando comparado à Bossa Nova – que não era
internacionalista e foi muito, muito mais internacional que a poesia
concreta. A Bossa Nova realizou, não por acaso, e de modo
espetacular, a máxima paradoxal de Tolstói: seja regional para ser
universal. Regional, não regionalista – nem regionalista, nem
superficialmente regional. A Bossa Nova não pretendeu ser, nem
internacionalista a priori, nem particularmente carioca. Mas,
com certeza, pretendeu, entre outras inúmeras coisas, juntar ao
samba o alto modernismo poético brasileiro. Ao fazer isso, além de
carioca, foi brasileira, e para além de brasileira, mundial. Não
deve ser por acaso.
Frederico Barbosa aponta, com razão, a mediocridade dos novos
versejadores. Mas não consegue entendê-la historicamente. A
revolução modernista, de Mário-Oswald, propôs, mas não realizou, por
falta de talento dos dois, a transformação do falar brasileiro em
linguagem poética, em dicção poética, em ritmo poético. Isso seria
feito então por Bandeira, Drummond e cia. Um patamar altíssimo logo
foi atingido (Cabral, mas não só), e a poesia brasileira, não mais
portuguesa (na sintaxe), como fora até o parnasianismo, tinha tudo
para se tornar uma das mais importantes do mundo, “dizendo coisas
relevantes de modo relevante”.
Com o fim do vanguardismo, os poetas voltariam ao verso pelo vácuo,
por falta de opção. Mas o antigo patamar fora perdido. Grandes
poetas como Ferreira Gullar (sendo o Poema sujo um dos ápices
do verso moderno brasileiro) e Bruno Tolentino (há incontáveis
versos mais que memoráveis em A balada do cárcere, por
exemplo) conseguiram mantê-lo por serem da geração subseqüente à
última dos grandes modernistas. Sendo que sua rejeição ao
concretismo se explica pela consciência disso tudo. Enquanto a
reaproximação dos novos poetas à tradição do verso moderno tem algo
que não funciona. Daí a ausência de qualquer grande poeta nas novas
gerações.
Sem querer alimentar a pseudo-discussão sobre letra de música ser
poesia (não é, por serem de tradições e linguagens distintas), tal é
o motivo de tantos ingênuos afirmarem, satisfeitos, que a melhor
poesia brasileira dos últimos tempos está – ou estava, até a
decadência recente – nas letras de música popular. É que a tradição
do verso moderno brasileiro se manteve viva nas letras, enquanto era
emudecida na própria poesia. Construção, de Chico Buarque, é
Noel Rosa depois de se ter intoxicado de João Cabral. Garota de
Ipanema – e toda lírica de Vinicius – é simplesmente a revolução
modernista limpando de roldão a dicção aportuguesada das letras de
música: "Olha que coisa mais linda...". A partir daí, a dicção
brasileira está na MPB, mas não está na poesia, ainda perdida depois
do vanguardismo e do pós-vanguardismo. A MPB salvou-se porque nada
tem de visual. Afinal, se trata de música. E da forma canção.
Portanto, uma vez que a revolução modernista chegou ao samba (mas
não pelos clássicos do próprio samba: as letras de Cartola são ainda
bastante “portuguesas”), ficou. Seu encontro maior chama-se Bossa
Nova. “É pau, é pedra, é o fim do caminho....” Como isso seria
possível sem Drummond? Sem Vinicius, que fez a ponte em sua própria
biografia? É por isso que um compositor popular como Caetano Veloso
diz que o mundo começou na Bossa Nova. Ele tem razão. Já no caso da
poesia, esse “mundo” (isto é, o falar brasileiro feito linguagem
poética) acabou no concretismo.
Não por acaso, o “admirável mundo novo”, em termos especificamente
verbais, era tartamudo. E, muito mais que eventualmente,
trocadilhesco. No entanto, não se imagina Drummond, Bandeira ou
Vinicius cometendo um trocadilho.
É portanto possível explicar porque a mediocridade relativa da
poesia foi muito maior que a da lírica da MPB no mesmo período
histórico (sendo que a mediocridade atual da lírica da canção advém
de outras causas, mercadoglobarbarizantes, etc). E a resposta está
dada pela diametralmente oposta relação com o “mundo” fundante e
fundamental da língua-linguagem modernista. Portanto, notar e anotar
a mediocridade em si pouco esclarece. É preciso historicizá-la. Pois
ela é historicizável.
No entanto, em reação ao erro dos concretos, que foi tentar amputar
uma tradição moderna para criar, ab ovo, uma nova, sem
concorrências, o erro especular dos Gullar e Tolentino é não
reconhecer que o concretismo pôs algo no lugar. Ou seja, não foi um
Hitler na Polônia. Esse “algo”, no entanto, se diz alguma ou muita
coisa para a poesia brasileira senso lato, nada diz para a tradição
do verso moderno estrito senso. A grande e relevante diferença, e
não menor contradição, aqui, é que essa tradição do verso moderno já
era, em si, a poesia brasileira.
É como o judaísmo em relação ao cristianismo: o judaísmo já existia
2000 anos antes de Cristo nascer, e poderia existir por mais 2000
(como, aliás, de fato continuou existindo) sem o cristianismo. O
judaísmo já era monoteísta, humanista e moral antes de Cristo. A
relação é unívoca: não há cristianismo sem judaísmo, mas há judaísmo
sem cristianismo. E monoteísmo. Troque-se “monoteísmo” por verso
moderno brasileiro: ele já existia, e existiria muito bem, sem o
concretismo. Vice-versa não é verdade.
A diferença é que o cristianismo, a cristandade, tentou por 2000
anos extinguir o judaísmo, por todos os meios possíveis, da
conversão forçada à expulsão à eliminação física à perseguição legal
e cultural, etc, mas não conseguiu. No caso do concretismo, quase
conseguiu. Supondo que a cristandade tivesse extinguido o judaísmo
como conseguiu extinguir a religião greco-romana, o mundo seria mais
pobre, mas não seria pura pobreza. Eis a síntese histórica do
concretismo: não significa pobreza, em si (muitíssimo ao contrário),
mas significou empobrecimentos outros.
No caso da religião, se trata de preservar a diversidade: pois duas
religiões não ocupam ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço da
cultura. Porém só há uma poesia brasileira contemporânea, apesar de
tudo. Aliás, esse foi um dos motivos do afã absolutizante do
movimento – e de outros movimentos. O modernismo, de fato, estava
certo ao se voltar para a totalidade da poesia brasileira. Então,
por que o modernismo não foi empobrecimento e o concretismo foi,
relativamente? Porque o modernismo agiu sobre a unidade
língua-linguagem. O concretismo, não: ecoou a linguagem e emudeceu a
língua. Portanto, enquanto o modernismo foi um avanço absoluto (nada
ficou de fora, tudo foi incorporado), o concretismo foi um
empobrecimento relativo.
Além disso, a poesia brasileira contemporânea, apesar da
diversidade, é uma só. A comparação, mais uma vez, pode ser feita
com o cristianismo: diversificado (catolicismo, protestantismo,
gregos ortodoxos, coptas, etc), mas cristão. Ora, se Cristo foi só
um, e se sua mensagem é verdadeira, a existência de mais de uma
igreja cristã é ridículo, é absurdo, no limite, é infame, pois
compromete a própria verdade cristã. Não há, aliás, dois judaísmos
ou dois islamismos (xiitas e sunitas são divisões políticas,
relativas à sucessão de Maomé: numa irônica consubstanciação, a
comunidade islâmica como um todo, em árabe, se diz Umma). Há,
portanto, a necessidade, a obrigatoriedade de se fazer uma síntese.
Não se trata de eliminar a diversidade. Nem de preservá-la.
Trata-se de não encarar a diversidade passivamente. Mas, insista-se,
nem para a preservar a priori (pois a poesia brasileira é só
Uma, nem para a eliminar (o que é historicamente falso, e talvez
empobrecedor – talvez, porque diversidade não é riqueza em si ou
necessariamente: há unidades muito ricas [como o judaísmo] e
diversidades muito medíocres [como a música pop]).
Sendo que a última frase é verdade em tese: no caso específico da
poesia brasileira, a diversidade deve ser enriquecedora – mas apenas
se for tomada como um problema, não como uma solução em si.
Um problema que começa com a diversificação concretista em relação
ao modernismo e se acentua com a poesia “marginal”. O resto é
conseqüência – e circunstância (a época facilitária, mercadológica,
midiática, pop, multiculturalista, irracionalista, egóica, “andy-warholiana”,
etc, etc, etc).
Paulo Leminski representa o epítome de toda essa situação. Quando
ele mais convence, e não apenas aos especialistas, é quando ele é
mais “modernista”. Quem o conheceu sabe de seu natural talento
verbal. O talento verbal às vezes é só oral (têm-se um orador), às
vezes é oral e literário (têm-se um poeta). Leminski tinha tudo para
ser um grande sucessor dos grandes do modernismo senso lato. O falar
brasileiro e a poesia em português o “obedeciam”, para citar Yeats.
O que ceifou o vôo ainda maior que Leminski poderia ter dado foi o
momento histórico. O que o ceifou foram os trocadilhos e haicaísmos
do concretismo somados à “esperteza” da marginália anos 70 (que
também rejeitou o alto modernismo brasileiro, ainda que por motivos
contraculturais).
Josely Vianna Baptista defende que não é mais possível fazer uma
antologia de poetas, mas apenas de poemas.
Por que havia tantos grandes poetas no Brasil nos anos 60, depois
mais nenhum surgiu? Por que, em paralelo, foi aí que surgiram muitos
dos maiores letristas da história da música popular? É possível
fazer uma antologia de compositores. Aliás, várias.
A má versação vem da malversação (dilapidação, má administração).
Não importam mais os bons ou os maus versos. Eventualmente, até um
macaco, digitando por anos num teclado, produzirá um ou dois bons
versos. O diagnóstico de JVB é perspicaz, mas é somente um
diagnóstico. Resta entender por que não há mais grandes poetas. O
motivo está no mal, não no mau (ou bom). Na malversação da
herança modernista.
Os bons versos eventuais nada dizem quanto a isso. Por outro lado,
isso explica inteiramente porque só se pode fazer antologias de
poemas – isto é, de bons versos eventuais.
Sendo que “bom” não é o que eu gosto. É o que não está muito abaixo
do repertório histórico daquela linguagem naquele país.
Alardeia-se a “competência” de muitos novos poetas. Mas tal aparente
competência não passa, como regra, de pastiche.
Acontece que o repertório histórico dessa linguagem neste país
é a tradição do verso moderno brasileiro. Na qual a competência
propriamente literária se funde inextricavelmente a uma competência
lingüística em relação ao português falado no país.
À falta desta, trata-se de uma paródia. Uma paródia cruel, pois
literaliza o que era, senão a coloquialização em si, a sintonização
da poesia à coloquialidade (nada a ver com os poetas “pops”: que
apenas fazem um pastiche mais pobre).
Não havendo talento nessa seara, como havia em Bandeira e Drummond
(e os pôs no lugar em que estão: os melhores no âmago), e em
Leminski, mas não havia em Cabral, a saída é cabralina. Ou seja, a
alto-repertorização do verso modernista (afinal, Cabral, por mais
complexo que seja, nada tem, jamais, de parnasiano). O que muitos
confundem com pura e simples “literalização”.
Isso quanto à poesia em versos, que é o que todo mundo faz hoje em
dia, salvo as exceções, que são as exceções. Estas, na maioria,
fazem pastiche do concretismo, da poesia semiótica, da graforréia do
Edgar Braga.
É possível agora entender, por exemplo, o Haroldo de Campos em
versos: é alto repertório, mas não pela alto-repertorização do verso
modernista, como em Cabral. Daí a grandeza, a pertinência e a
abrangência de um Cabral, e o idiossincratismo de um Haroldo. E de
tantos outros.
Nesse contexto, é preciso hoje ter em vista o rebaixamento do
português falado no Brasil. O que torna impossível uma readequação à
la modernismo. Nem há necessidade. O modernismo foi o momento de
fundação da poesia brasileira. Assim será entendido no futuro. O que
veio antes será considerado período de formação, uma poética
brasileiro-portuguesa. Não é por acaso que Gregório (se foi um só)
escreveu também em espanhol, que Vieira fosse português, que os
árcades escrevessem como se escrevia em Coimbra. Castro Alves é
brasileiro na temática. Há os românticos, com seus indigenismos. Mas
isso não os torna necessariamente mais brasileiros do que um pintor
holandês que pinta índios.
A poesia brasileira começa no modernismo, tanto quanto a
italiana em Dante (a tal ponto de o florentino de Dante ter se
tornado a própria língua italiana). A diferença de séculos entre
nosso caso e o italiano se explica facilmente: pois somos um país do
Novo Mundo.
Em todo caso, a partir daí já não é necessário um aggiornamento
por década à coloquialidade.
Cabral, como eu disse, já significou a alto-repertorização do verso
moderno brasileiro, em que a língua brasileira, seu ritmo, está
incorporada. Com o rebaixamento posterior do português falado no
Brasil, Drummond será, cada vez mais, nosso Dante.
Mas note-se que tal rebaixamento não é verdadeiro para Portugal –
que fica na Europa da União, no centro da globalização, etc. O
problema central do português no Brasil é político, simplesmente: má
educação pública. Pouca e má leitura. Desconhecimento puro e simples
da norma. Políticas populistas de compensação, como o baixo
construtivismo estatal, que afirma não haver erro de português, e
que o ensino tem de ser adaptado ao repertório do aluno, o que é
infâmia e nonsense: pois o ensino serve para mudar o
repertório. Junte-se o caos urbano, a favelização, a ruralização
cultural dos subúrbios pela migração intensa e forçada, mais o
consumo enviesado de produtos de entretenimento. Com exceção do
último, nada disso vale para Portugal. Não se trata, portanto, de
inevitabilidade histórica, mas de miséria política. O que não muda o
resultado.
Mas muda a compreensão do fenômeno. A comunicação da poesia com a
“massa”, sonho modernista (“A massa ainda comerá do biscoito fino
que fabrico”), tornada paródia nos concretistas, que desejavam a
comunicação sintética do slogan (apud Pignatari), é
impossível. Portanto, esqueça-se a “massa”.
Sendo que a velha questão cultura de massa x alta cultura é, no
limite, falsa. Drummond é alta cultura. Vinicius é alta cultura. Mas
não estavam distantes da cultura média do país. A Bossa Nova é alta
cultura em música popular. Logo, alta ou de massa?
Shakespeare, como se sabe, era popularíssimo em seu tempo, assistido
por prostitutas, barqueiros e também banqueiros. Tornou-se alta
cultura muito depois. No entanto, é o mesmo Shakespeare.
O verdadeiro problema é o rebaixamento ao lixo da cultura popular
pelo mercado. A ponto de a própria cultura popular já não existir.
Ela, como uma convenção fascista ou um jogo de futebol, é “de
massa”. Ora, o que é “de massa”, por definição, só pode ser
espetaculoso, na linha do circo romano. Rock. Entretenimento.
Portanto, no limite, a verdadeira questão é arte x mercado. O
mercado visa o lucro imediato (e massivo: economia de
escala). A arte, o diálogo mediato. Nada têm em comum.
Como me escreveu o grande artista plástico Francisco Faria, “a
modernidade, que veio para se aproximar da vida e das ruas, foi
engolfada por uma excessiva vulgarização, e virou parte pop,
parte slogan.” Na primeira metade da frase (“aproximar [a
arte] da vida e das ruas”) estão os grandes modernistas: alta
cultura ou popular?
Como se não bastassem todos esses problemas
estético-histórico-culturais, há ainda o problema sociológico do
estofo para a estafa. Estofo que a multidão de apressados que andam
por aí, com suas questões pós-modernóides, parâmetros modistas,
fraquezas contemporâneas, hábitos pop, hedonismo robusto e,
no caso específico da poesia, não pouca literatice, recorrendo ao
budismo de butique porque o mundo está muito complicado,
simplesmente não têm.
Afinal, não é por nenhum acaso que, depois da Segunda Guerra, o
mundo ocidental como um todo parou de produzir os gênios que
produziu à mancheia, ininterruptamente, em todas as áreas do
conhecimento e da arte, desde o século XVI. Pense-se num grande do
século XX e se verá que ele nasceu antes da Segunda Guerra. Seja
Drummond, Cabral, Sartre, Camus, Popper, Picasso. Não importa. A
lista é infinita, pois absoluta: nenhum nasceu depois da Segunda
Guerra. Inclua-se todo mundo. Os grandes cineastas. Depois,
compare-se com John Lennon e cia. Ou seja, os baby-boomers,
os nascidos logo após a Segunda Guerra, que fizeram 68, o pop
e o resto, à sua imagem e semelhança. A primeira metade do século XX
(1914-1945) foi demais para a cultura ocidental.
Mas isso tampouco é desculpa. É preciso, simplesmente, redobrar o
esforço. Ninguém escolhe o tempo em que nasce. Age e reage de
acordo, ou não.
O excesso de diversificação atual torna tudo igual, tudo igualmente
pertinente e, portanto, tudo irrelevante. O caminho é outro: a
história. Nem o beco sem saída cheio de “produtos” diversificados,
nem o futuro distópico do pós-tudismo.
É mais ou menos como o ambientalismo, vulgo ecologia: preservar para
as gerações futuras. Pouco importam os vivos. Preserva-se para que
os que ainda sequer existem possam ter o melhor do que temos e
tivemos.
O tempo estético não é como o tempo pessoal. Os anos 70 podem estar
distantes, mas muitos sonetos de Camões, do século XVI, parecem ter
sido escritos ontem. São os menos conceptistas, os mais clássicos.
Não têm uma vírgula datada. O vocabulário é simples, a sintaxe,
natural. Não por acaso. Clássico é aquilo que é atemporal. A saída,
portanto, está em buscar um novo classicismo. Um classicismo moderno
– quanto à poesia verbal (quanto à poesia brasileira contemporânea,
lato senso, a saída é uma grande síntese).
Certa simplicidade de base, à qual se incorporem elementos da
tradição e da modernidade (como a carga paronomástica). Sem nenhuma
proximidade com os atuais falares deteriorados do português do
Brasil. Poucos podem ter tal proximidade: apenas a norma culta é
constante (daí, aliás, ser norma), a deterioração é, por definição,
compartimentalizada. Cartola, na Mangueira, compunha como Chico
Buarque no Pacaembu. Hoje, não se entende o que os “manos” falam nas
favelas. Compartimentalização: muito do que se fala nas favelas vem
do idioleto das prisões.
Trata-se, portanto, de questões estruturais de coloquialidade,
melhor, do falar brasileiro. Mário de Andrade, numa carta
famosa, tripudiava de um Drummond iniciante que, num poema, dizia
que pessoas chegavam à estação. Mário pergunta: à estação de
Lisboa ou do Porto? Pois, se for no Brasil, chega-se na estação.
Daí chegamos a Eliot, que diz que a função social da poesia é manter
vivas as potencialidades da língua. Ele não pensava em meu
“ambientalismo poético”. Mas, não por acaso, parece pensar. Pois, ao
fim e ao cabo, a literatura que importa sempre é uma ponte extensa
entre passado e futuro, passando pelo vau estreito do presente.
Passar pelo presente é diferente de ficar nele. O que muitos fazem
hoje é tentar, pateticamente, atrelar-se ao presente. Não têm e não
terão estofo para ficar. Como boa parte das canções de Caetano. Ao
contrário das canções do Chico – que, cada vez mais, serão
indiferentes das de Noel. No futuro, não fará diferença a distância
de décadas que eles têm. Noel nos anos 30, Chico nos 60. Será tudo o
bom samba do século XX. Isto é, o século XX em forma de samba. Já
coisas como Alegria, alegria, Odara, Tigresa, Divino maravilhoso,
as tentativas meio “culturalistas” meio mercadológicas do Caetano de
ser a antena do instante, envelhecerão como vinho ruim.
Portanto, a reaproximação à coloquialidade é uma causa perdida,
mais, é uma causa falsa. Foi a grande causa no modernismo. E
justamente por ter sido, não é mais. Uma vez feita a revolução,
espera-se que a revolução não precise mais ser feita.
Não obstante, e não por acaso, o verso livre pós-modernista é muito
diferente do verso livre pré. Já havia o verso livre, isto é, poesia
sem métrica. Mas não havia a polirritmia significante do modernismo.
Sendo que tal polirritmia não é anárquica, mas estruturada sobre
elementos da tradição literária portuguesa e orgânica com os ritmos
do falar brasileiro (Poema sujo).
Voltando enfim à questão da síntese, que é, por tudo isso, muito
mais importante que a da diversidade. E é, digamos, uma retomada de
certos ideais revolucionários em outro contexto, o da revolução já
vitoriosa. Portanto, não têm mais um caráter de fato revolucionário.
Nem por isso deixam de ser relativos à revolução.
O modernismo foi revolução, síntese e gênese. A síntese é outra vez
necessária, para reprover a gênese.
A grande poesia brasileira do futuro, depois da amputação
concretista da linha evolutiva do verso modernista, do golpe de 64,
que amputou as ligações orgânicas entre alta cultura e cultura
popular, que vinham se fortalecendo, não por acaso, desde a síntese
modernista, depois da falência do ensino público, da babel midiática
e da globarbarização, essa grande poesia tem de ser um novo
classicismo, que incorpore o melhor da grande diversificação
modernismo-vanguardismos dos anos 50. Não a diversidade pobre, “favelizada”,
de gueto, de hoje. Os literalizantes para cá, os “pops” para
lá, os new-beats, a poesia “feminina” dessa e daquela, a
poesia urbana zona-zul do... Redutos ecológicos não são grandes
florestas. Tampouco existem para guardar diversidades
contemporâneas. Hoje, a Austrália é muito mais diversificada, na sua
biosfera, do que antes da chegada dos ocidentais com seu animais.
Mas o que se quer preservar são as espécies endêmicas. As espécies
“clássicas”, as que definem a especificidade ecológica do lugar e
são a razão de ser de sua preservação. Pouco importa ser raro. Ao
contrário: quanto mais raro, menos “de massa”, mais importante. O
que é “de massa” e/ou “da hora” não importa preservar. Tampouco o
que é mumificante. Mas o que está vivo e é ligado a um passado
profundo.
No caso biológico, a ligação é congênita. No caso cultural, não.
Todos nascem ignorantes. É preciso aprender e apreender o passado.
Da maneira mais profunda possível. Mas não como um paleontologista
ou um taxidermista. E sim como um biólogo. Pois queremos exemplares
vivos de linhagens antigas. Exemplares que, em seu presente,
sintetizam e atualizam o longo passado da sua linhagem.
Ou da sua linguagem.
Portanto, não estou falando da síntese impossível da diversidade
contemporânea. Impossível, de fato – e desimportante. Estou falando
da síntese da diversidade histórica. Da diversidade do passado
imediato. Do que importa nesse passado.
A diferença é absoluta. Pois a síntese possível do passado imediato,
da tradição do verso moderno e da ainda mais recente tradição
visual (sendo que síntese não é colagem), não significa a
geração de mais uma “diversidade” entre as tantas do momento. Ao
contrário. Será uma continuidade vertical em meio ao mar
poluído da diversidade horizontal contemporânea, que a perfurará
como uma ilha vulcânica a emergir do fundo do mar.
5. Rodrigo de Souza Leão: Você recebeu a menção honrosa pelo
prêmio “Redescoberta da literatura brasileira”, da revista Cult.
Qual a importância de um prêmio literário?
Luis Dolhnikoff: Não sei. Se houver dinheiro envolvido, é o
dinheiro. Por exemplo: embora as pessoas não se dêem conta, este é o
principal motivo de o Nobel ser o maior prêmio. Pois tem a
maior dotação, em torno de 1 milhão de dólares. Principalmente
quando se leva em conta que o Nobel de Literatura foi transformado
numa espécie de prêmio de consolação multiculturalista. O que não é
uma homenagem às literaturas nacionais premiadas, como crêem os
ingênuos, os bem-intencionados e os hipócritas, mas uma
des-homenagem. Pois fica implícito, pela decorrente rotatividade do
prêmio, que se ganha porque não se é ocidental e/ou branco. No
entanto, ninguém jamais ganhou um Nobel de física por ser uma
cientista mulher, ou negra, ou, melhor ainda, mulher e negra, mas
por ser um grande cientista. A desculpa é que não há critérios tão
objetivos para julgar a literatura como há para a ciência. Ora,
então o caminho seria tentar estabelecer um critério mínimo de
comprovação de qualidade literária, por mais difícil que isto seja.
Em vez, aproveita-se alegremente dessa dificuldade para tentar
compensar as culturas não-científicas por não poderem jamais receber
os Nobeis científicos. O resultado é que, assim, o Nobel, ao mesmo
tempo que glorifica a ciência, reduz a literatura a prêmio de
consolação. O que, no entanto, combina muito bem com a
má-consciência sueca pós-contracultural e, mais genericamente, com a
ocidental – para não falar do multiculturalismo, do relativismo, do
irracionalismo, do...
Voltando à pergunta, se não houver dinheiro, pode ser a
possibilidade de publicação (caso do concurso da Cult). Por
fim, é a notoriedade.
Os prêmios literários foram inventados na Grécia. Ali, os trágicos
participavam de concursos cujo prêmio era a encenação da peça como
espetáculo público, bancado pela pólis. A cidade patrocinava
o concurso, o ganhador era encenado e a cidade assistia à peça e ao
desenvolvimento de sua dramaturgia. Não por acaso, além da célebre
função catártica da tragédia (e de sua origem em festas religiosas
populares do culto dionisíaco e órfico), os próprios temas eram
escolhidos pelo concurso, sempre versando sobre a tradição
lítero-mitológica da própria cidade. O concurso, em suma, era parte
orgânica da cultura da pólis. Algo equivalente deveria ser o
propósito de qualquer concurso literário realmente significativo. O
que leva à uma sonora gargalhada. Pois isso não cabe no mundo
contemporâneo. Ainda que, de alguma maneira, tenha cabido até o
século XIX, por exemplo, no caso dos vários salões parisienses de
pintura.
O problema, em suma, não está nos concursos, que são sintomas da
natureza da cultura contemporânea. Aqui, só resta citar o velho Karl
Marx: “Tudo que é sólido se desmancha no ar.”
6. Rodrigo de Souza Leão: No poema História compacta (mas
completa) do Brasil as palavras casa grande & senzala entram
numa metamorfose até formar condomínio & favela. O que deve
ser motivo de poesia? O que é poesia? O que é poema?
Luis Dolhnikoff: Tudo pode, logo, tudo deve ser motivo de poesia, ou
seja, objeto do poema, desde que haja uma forma que o justifique.
Pois a poesia é a linguagem verbal em que significado e
significante, forma e conteúdo, referente e referência, se impregnam
mutuamente, se co-determinam, se atritam, se esclarecem e se (re)constroem.
Neste poema em particular, usei uma ferramenta de computação para
evocar graficamente a passagem do tempo no próprio corpo das
palavras. Desse modo, “casa grande & senzala” se transformam
materialmente em “condomínio & favela” – do mesmo modo que, através
da história brasileira, o que é por elas nomeado foi transformado um
no outro. E apenas para dar lugar a uma forma mais moderna da mesma
exclusão: trata-se, assim, de certa maneira, da tradução gráfica da
expressão latina mutatis mutandis, ou seja, “mudado apenas o
que deve ser mudado” – para que o resto continue igual. Daí o poema
se restringir às quatro palavras, enquanto o grande “silêncio” assim
criado em torno delas se expande até incluir todo o país. Muitos
tratamentos desse tema correm o risco de parecer panfletários. Não é
o que ocorre, por exemplo, nas mãos de um João Cabral. Por isso
mesmo ele é João Cabral. Tudo depende, portanto, do resultado, não
das intenções. A arte, assim como a ciência ou o esporte
profissional, nada tem de democrática, ao contrário do que pretende
o populismo “politicamente correto” .
Daí, aliás, a necessidade de considerar qualquer lixo algo
pertinente.
Para isso, tem-se de anular as distinções entre arte pop
(senso lato) e de alto repertório, por exemplo. Pois já que não se
pode dizer que o pop seja alto repertório, enquanto o
“politicamente correto” exige o nivelamento, então não existe (ou
não deveria existir) o alto repertório. Principalmente porque,
historicamente, ele sempre esteve a cargo (horresco referens)
de “homens brancos” – a maioria, inclusive, mortos. Como ficam as
“dicções femininas”? As “dicções homossexuais”? As...
7. Rodrigo de Souza Leão: No poema A casa da idéia se é
tomado pela filosofia do objeto. Qual casa (objeto) é o lar do
poema? Qual casa é o lar do poeta? Fale-nos do poema.
Luis Dolhnikoff: Mais do que filosofia do objeto, creio que se trata
da heurística da palavra. Esse poema, não por acaso, integra
marginalmente a série principal em que venho trabalhando nos últimos
anos, chamada consubstanciações.
O velho Aurélio define heurística como “1. Conjunto de
regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução
de problemas [Cf. heureca.]; 2. Procedimento pedagógico pelo qual se
leva o aluno a descobrir por si mesmo a verdade que lhe querem
inculcar; 3. Ciência auxiliar da História, que estuda a pesquisa das
fontes.” Isto se aproxima razoavelmente do que pretendo dizer ao
afirmar que a poesia é uma forma de conhecimento. Primariamente, da
própria linguagem verbal.
Através de toda literatura ocidental, desde o Gênesis (2:19), na
metade judaica de nossas origens, e os pré-socráticos, na metade
grega, há referências e especulações sobre a relação entre nome e
coisa nomeada. Na poesia metalingüística, são simplesmente
inumeráveis os versos sobre a nomeação ideal, a nomeação verdadeira,
aquela do mito adâmico, da língua pré-babélica. Flaubert, o prosador
que tratava cada parágrafo como um poeta trata um verso,
reescrevendo-o vezes incontáveis, em função do ritmo de um vírgula
facultativa, por exemplo, refere-se a “le mot juste”, a
palavra exata. Em termos poéticos, a palavra exata deve cumprir duas
premissas distintas de exatidão: em relação ao próprio poema e em
relação àquilo que nomeia. “Flor é a palavra flor”, diz Cabral. Pois
a palavra flor re-presenta, isto é, presentifica, o objeto
flor. Não por acaso, popularmente existe a crença arcaica nesse
poder presentificador das palavras, de onde as palavras nefandas,
literalmente, que não devem ser ditas: assim, até há pouco tempo não
se dizia a palavra câncer, ou, se por um acaso ela era dita,
batia-se na madeira ou recorria-se a outra superstição qualquer,
para “anular” o efeito presentificador da palavra. Símbolo, em
grego, significa “ir junto”, do prefixo sym, com, em
paralelo, junto, e do verbo boléo, lançar. Um símbolo é algo
que nos lança ao que é simbolizado, ou que o lança até nós. O
problema é que as línguas naturais, as línguas históricas, são
convencionais. A palavra casa não é determinada pela coisa casa. No
entanto, há um tipo de palavra que guarda uma relação direta de
causa e feito entre coisa e nome, as onomatopéias. Assim, a palavra
sussurro, de certa forma, é em si um sussurro. Por
outro lado, a escrita começou a partir dessa relação formal de causa
e efeito. Tanto nos ideogramas orientais quanto na escrita fenícia,
que está na origem dos alfabetos hebraico e grego (e este do
latino), no Ocidente. Ora, na escrita fenícia, o círculo que mais
tarde dará origem ao nosso o significava “olho”. Uma linha ondulada,
que está na origem de nosso m, significava “água”. Uma cruz,
que está na origem de nosso t, significava “marco, baliza”.
Ora, em português, a palavra olho tem um par de oo: OlhO. A
palavra mar começa com a água ondulada do m, e se
completa com ar, ou seja, o vento que ondula a água e o próprio céu
contíguo ao mar. A palavra morte tem, incrustada no imperativo de
morar, uma cruz, morTe – e o túmulo é a “morada” inevitável.
Voltemos à heurística, que em sua primeira acepção significa
“conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção
e à resolução de problemas [Cf. heureca.]”. O palavra olho não tem
dois oo porque o círculo era “olho” em fenício. Porém a relação de
causa e efeito das onomatopéias é verdadeira. Trata-se então de um
tanto de descoberta e outro tanto de invenção, visando à resolução
poética do problema cultural, senso lato, da nomeação, que interessa
desde a cultura popular até a epistemologia, passando pela filosofia
e a ciência – que, não por acaso, onde pôde, ou seja, nas ciências
duras, como a física, abandonou o código verbal pelo matemático.
Física vem de physis, que significa natureza e também origem. A
física é portanto o estudo das coisas da natureza e da natureza das
coisas. Sendo que a linguagem humana por excelência é a verbal. O
que a poesia busca, de maneira mais ou menos consciente, dependendo
do poeta, mas de modo invariável, é dar à linguagem verbal um
caráter natural, físico, ou seja, a capacidade de nomear a natureza
das coisas através da simples nomeação das coisas da natureza (na
poesia as palavras se cristalizam). O que é possível, não como fato
científico, mas como realidade estética.
Minha série consubstanciações faz isso objetivamente (cada poema
partindo de uma palavra e descobrindo nessa palavra prováveis ou
possíveis índices e ecos de uma nomeação arcaica, fundante,
“verdadeira”, tanto em aspectos formais, sonoros e gráficos, quanto
de seus formantes semânticos). Já o poema A casa da idéia aborda o
problema por um ponto de vista complementar, justamente de negação
da possível verdade das consubstanciações – para então discorrer não
mais sobre o problema da nomeação, mas sobre a natureza do nomeador,
ou seja, nós.
8. Rodrigo de Souza Leão: Você – assim como muitos poetas, mas
citaria Glauco Matoso – tem um humor bastante corrosivo. Com perdão
da corrosão e da cacofonia, como tornar a poesia algo menos
empolado, menos ABL?
Luis Dolhnikoff: A palavra idiota vem do grego idiotés, que
significa privado, particular, próprio. É o oposto de político, que
significa público (de pólis, isto é, a cidade). A conotação de
estúpido, de cretino, que a palavra idiota adquiriu vem do fato de
que, para os gregos, só era possível haver vida inteligente na vida
política, na vida pública, ou seja, na participação nos negócios da
pólis, o que exigia boa educação, retórica, esperteza, conhecimento
de história, de filosofia, de armas, em suma, a busca da areté, que
significa virtude, excelência, e era o objetivo da educação grega
(daí o “mens sana in corpore sano”, mente sã em corpo idem, ideal
grego aqui traduzido para o latim). Por outro lado, a vida idiotés,
a vida privada, a vida doméstica, ou seja, a vida retirada, na qual
a dedicação é apenas aos interesses particulares, só podia portanto
gerar o que Marx nomeia, não por acaso, como a “idiotia rural” –
expressão em que a palavra idiotia possui simultânea e
sinteticamente o sentido antigo e o moderno.
No mundo contemporâneo, o que existe é um paradoxo: a idiotia
urbana. Pois o pequeno materialismo (há o grande materialismo da
ciência) do capitalismo tardio, traduzido no consumismo como prática
e como crença – como sub-ideologia – centrais, se baseia no
narcisismo, de que o hedonismo e o juvenilismo são correlatos. Além
do mais, a contracultura, outra pequena ideologia, centrada na
negação da tradição moderna (no sentido histórico) da cultura
ocidental, impôs um corte na percepção da dívida existencial que
cada geração tem para com todas que a antecederam. O resultado é uma
“cidade”, uma pólis, uma cultura de idiotas, em que cada cretino se
dedica orgulhosa, militante e ignorantemente aos seus pequenos
interesses pessoais imediatos – tanto em termos práticos quanto
“intelectuais”. Não é por acaso que na expressão “iniciativa
privada” a palavra privada, em grego, se diga idiotés. Poesia é uma
forma de comunicação. Comunicar é, denotativamente, tornar comum.
Comum que é do campo semântico do político. A poesia, portanto, pode
ser tanto idiota, ao servir apenas ou fundamentalmente para
alimentar o ego do autor, ou política, ao conseguir se comunicar com
a cultura a que pertence – o que portanto nada tem a ver com arte
engajada. O humor, na poesia, serve a dois propósitos políticos. O
primeiro é que, de uma forma ou de outra, de maneira mais ou menos
explícita, ele sempre se dedica a apontar a idiotia. O segundo é que
o riso, além da função catártica (e portanto política...), também é
em si uma forma de comunicação. Por outro lado, neste mundo é
impossível não levar tudo, infelizmente, muito a sério – e ao mesmo
tempo é quase impossível levar alguma coisa a sério. Portanto,
enquanto eu mesmo me divirto com meus poemas, também incito os que
me lerem a rir – ainda que apenas mentalmente. Melhorando assim a
chance de que a poesia cumpra seu papel de comunicar-se. Enfim,
respondendo agora diretamente à pergunta, trata-se de tornar a
poesia menos idiota – em todos os sentidos.
9. Rodrigo de Souza Leão:Para que serve a poesia?
Luis Dolhnikoff: A resposta é uma soma das respostas 1, 7 e 8:
conhecimento, comunicação (restando acrescentar que a dimensão
política inclui o passado, ou seja, a herança recebida, o presente e
o futuro, ou seja, a herança a ser deixada) e criação de beleza.
10. Rodrigo de Souza Leão: Tem alguma epígrafe ou mote?
Luis Dolhnikoff: Dois. Um, atribuído ao pintor grego Apeles: nulla
dies sine linea, isto é, “nem um dia sem uma linha” – poesia é uma
disciplina. O outro, de Mallarmé: “Considero a nossa época um
interregno para o poeta, que não pode se misturar a ela, caduca
demais, e em ebulição preparatória, para que ele tenha outra coisa a
fazer além de trabalhar em segredo com vistas a mais tarde ou a
jamais.”
O que, de início, pode parecer um convite à idiotia. Mas se revela
afinal o contrário. Pois se trata de se retirar da cidade de idiotas
urbanos visando, justamente, livrar-se da idiotia, para assim poder
tentar realizar um trabalho politikós.
Não por acaso, em certa passagem Sêneca diz a mesma coisa, ou seja,
que em tempos de barbárie o filósofo, para preservar a filosofia,
deve, em vez de freqüentar a pólis, afastar-se.
11. Rodrigo de Souza Leão: Quais as suas influências literárias?
Luis Dolhnikoff: Como me referi acima, prefiro falar em
aprendizados, em vez de influências. Pois influência tem algo de
passivo – e me parece mais pertinente para se referir a algum
“guru”, o que nunca tive. Quanto ao aprendizado, de uma vasta lista,
não é difícil destacar Camões, Bandeira, Drummond, Cabral, o Gullar
de Poema sujo, os vários concretistas, em especial Pedro Xisto, a
poesia grega arcaica (principalmente Arquíloco), a poesia do Velho
Testamento, o Edgard Poe de O corvo, Eliot, Pound, Maiakóvski,
Mallarmé e, the last, not the least, Machado. Não em sua poesia,
evidentemente, que é muito ruim, mas em sua prosa, tão magnífica que
bastaria, aqui, um de seus aspectos, o virtuosismo sintático, o
controle absoluto da frase, aliado à uma ironia sublimemente
inteligente. Joyce declarou que, a certa altura, descobriu poder
fazer o que quisesse com a língua inglesa. Yeats, como citei acima,
escreveu que as palavras da língua inglesa lhe obedeciam. Junte-se
as duas coisas e temos o Machado de Memórias póstumas e de contos
como O cônego ou a metafísica do estilo – cujo título, aliás,
comprova sua pertinência neste contexto.
No entanto, teria, na verdade, de me referir ao conjunto da poesia
brasileira pós-22. Sendo que o conjunto, aqui, é o conjunto – cuja
natureza é diferente da mera soma das partes. Posso afirmar isso
porque passei pela experiência incomum de ler, em seqüência,
praticamente todo conjunto da poesia brasileira do século XX, mais
especificamente, entre 22 e 92, o que foi minha experiência poética
mais importante.
Isso se deu por acidente. Minha namorada então estava na graduação
da Letras da USP e fazia um curso com o Augusto Massi. Eu não era
mais aluno da faculdade. Como trabalho de final de curso, o Massi
propôs que os alunos montassem uma antologia poética de poesia
brasileira contemporânea. O critério poderia ser temático,
cronológico ou temático-cronológico. Nessa época, depois de
abandonar a medicina e a letras, pois não tenho vocação para a
carreira acadêmica, tive de “ganhar a vida” (em todos os sentidos)
como redator publicitário. Eu acabara de sair de uma agência
(felizmente, também não tinha vocação para isso) com algum dinheiro
no bolso e fazia, então, um ou outro free lance para o dinheiro
render por mais tempo. Ela, que além de estudar trabalhava com
horário fixo, pediu-me para fazermos a antologia juntos. Começamos
por nossas bibliotecas particulares e logo descobrimos um tema incomumente recorrente: o da “pedra”.
Além da pedra drummondiana e das pedras cabralinas, o tema aparecia
e reaparecia em virtualmente todos os autores, com importância.
Decidimos então por uma antologia temática. Como, porém, o tema
parecia surpreendentemente ubíquo (e como eu tinha tempo), decidimos
testar essa ubiqüidade não fazendo um recorte cronológico. Ou seja,
a antologia incidiria sobre toda a poesia brasileira do século XX –
que começa em 22.
Fizemos então um belo trabalho bibliográfico, juntando aos não
poucos volumes de poesia brasileira de nossas duas bibliotecas o que
pudemos retirar da biblioteca da Letras da USP, da Mário de Andrade
e da biblioteca particular do poeta e editor Marcelo Tápia, além do
obtido em visitas aos inúmeros sebos de Pinheiros e aos principais
do centro da cidade (um volume que me lembro ter encontrado num sebo
de Pinheiros nessa ocasião foi o raro primeiro livro de Bruno
Tolentino, Anulação e outros reparos, com apresentação de José
Guilherme Merquior, editado pela Massao Ohno em 1964).
Juntamos, enfim, várias centenas de volumes sem qualquer distinção
de qualidade poética, o que incluiu todas as obras completas que
pudemos montar. Por exemplo, eu tinha tudo da última fase de Edgard
Braga, que havia ganho de amigos comuns, como o Régis Bonvicino
(assim como as obras completas do próprio Bonvicino, incluindo suas
primeiras edições, do autor). Como Braga foi um poeta longevo que
acompanhou, um tanto como companheiro de viagem, todos os movimentos
desde a segunda geração modernista, passando pela de 45 (para acabar
um poeta “concreto”), faltavam suas edições do Clube do Livro
paulistano dos anos 40 – o que conseguimos. Obviamente, as obras
completas das Cecílias, Drummonds, Bandeiras, não foi problema (como
não foram os “novíssimos” de todas as latitudes). Mas queríamos
juntar a amostragem mais completa possível.
Noutro exemplo, Ronaldo Azeredo, o benjamin dos concretistas, só
publicou um livro, nos anos 80, porém essa edição foi embargada pelo
autor. Tínhamos vários exemplares da revista Invenção, dos anos 60,
a revista oficial do movimento, em que aparecem seus poemas mais
conhecidos, como velocidade, mas faltavam os trabalhos de Azeredo
dos anos 70 e 80. Consegui um exemplar da edição embargada com o
próprio editor. E um grande etc.
Eu não tinha cama na época, apenas um colchão de casal no chão do
quarto. Construímos uma verdadeira barricada de pilhas de livros em
torno do colchão. Passava os dias lendo os volumes em ordem
cronológica, a partir das obras completas de Mário de Andrade, até
terminar, mais de três meses depois, em algum dos novos poetas do
início dos anos 90. Anotava os títulos dos poemas com o tema da
pedra num caderninho. Não era uma leitura dinâmica, mas uma leitura
poética. A diferença era apenas que eu tinha a “obrigação” de ler
(ou, em muitos casos, reler) tudo, sem pular nada, e terminar antes
do fim do semestre, para que ela pudesse fazer a seleção final e nós
escrevermos a introdução.
Não creio que muita gente tenha passado por experiência semelhante,
de ficar quase quatro meses, todo santo dia, o dia inteiro lendo
poemas, milhares de poemas, um atrás do outro. Os dois volumes da
Nova reunião de Drummond, por exemplo: 19 livros de poemas, 950
páginas, ½ século de poesia, lidos em seqüência, página a página,
hora após hora, como um grande romance russo lido na prisão. De
fato, havia um grande drama de inúmeras vozes, estilos, personae,
temas e subtemas, sintaxes, se desenrolando através de todos aqueles
volumes – e esse drama (no sentido de ação) era o do própria poesia
brasileira contemporânea.
Depois disso, fiquei quase um ano sem escrever um verso (e quase dez
sem publicar). Na verdade, sem sequer pensar em poesia. Ao menos
conscientemente. Pois depois dessa quarentena involuntária,
recomecei a minha obra – que se divide em a.GL e d.GL: antes e
depois da Grande Leitura – num trabalho exaustivo que durou quase
uma década e resultou na trilogia inédita Consubstanciações I.
12. Rodrigo de Souza Leão: Você não aderiu a moda do verso curto e
do minimalismo. Como é ser um poeta fora de moda, mas tão atual e
pós-moderno e por isso estar mais na moda do que nunca?
Luis Dolhnikoff: O modismo, em se tratando de poesia, é apenas uma
muleta para os medíocres. Em outras linguagens, como o cinema, e
mesmo as artes plásticas contemporâneas, os modismos se justificam
pelo dinheiro envolvido. Porque a arte tornou-se entertainment, isto
é, show-business, ou seja, business, e, se você não estiver
integrado, não há possibilidade alguma de ganhar dinheiro. Acontece
que não há possibilidade alguma de ganhar dinheiro com poesia, mesmo
estando integrado. Portanto, o modismo, aqui, serve à integração em
si mesma, como um fim, não como um meio: o que é sinônimo de
aceitação – que se materializa, na prática, em fama. Ou melhor, em
famazinha – o objetivo maior dos poetas medíocres. No fundo, muitos
gostariam, portanto, de ser pop stars. Mas não levam jeito para a
performance, nem têm apelo sexual suficiente. Sendo que a poesia
guarda, apesar de tudo, certa aura de “nobreza” literária que
compensaria tais frustrações. No entanto, a poesia é uma coisa
importante demais para servir a isso. Esteja ou não travestida de
minimalismo intelectualista, ou seja qual for o modismo do momento.
A poesia é uma forma de conhecimento da linguagem mais importante da
espécie, a verbal. Enquanto a lingüística, por exemplo, é o seu
conhecimento teórico, no sentido de hipotético (a despeito do método
experimental), o verdadeiro conhecimento empírico profundo da
linguagem verbal é a linguagem poética. É a isso que Eliot estava se
referindo, quando diz que a função social da poesia é manter vivas
as potencialidades da língua. Isso nada tem a ver com modismos,
muitíssimo ao contrário.
Portanto, nada mais apropriado do que ser um poeta fora de moda.
Pois a moda, por definição, passa, e logo. As grandes realizações
artísticas duram um pouco mais. E se estar fora da moda, dos
modismos, não é, evidentemente, suficiente para garantir uma grande
realização artística, ainda assim é uma condição necessária.
Réplica de Frederico Barbosa
Em recente
entrevista ao Balacobaco o senhor Luiz Dolhnikoff faz duas
referências a colocações que atribui a mim. Não pretendo aqui
avaliar o conteúdo das idéias que o senhor Dolhnikoff expressa na
entrevista, gostaria apenas de esclarecer, em consideração aos
leitores do Balacobaco, que as referências tanto à minha poesia
quanto às minhas opiniões foram deturpadas sem o menor pudor pelo
entrevistado. Desconfio que talvez o senhor Dolhnikoff tenha apenas
"ouvido falar" das minhas declarações. Por isso, e para esclarecer
os leitores, senti-me impelido a escrever esta carta ao Balacobaco,
pelo qual nutro o maior apreço.
De início, o senhor Dolhnikoff afirma: "Numa entrevista recente,
Frederico Barbosa afirmou pretender 'dizer coisas relevantes de modo
relevante'. Não obstante, é um epígono dos concretos." Ora, estou
certo de que o senhor Dolhnikoff não há de discordar que "dizer
coisas relevantes de modo relevante" deve ser a busca de qualquer
artista, principalmente dos artistas da palavra que são os poetas.
Mas as minhas declarações sobre o fazer poético sempre foram um
tanto quanto mais complexas. Vejamos um trecho da entrevista que dei
a Reynaldo Damazio, no site Weblivros:
WEBLIVROS!: Comparando-se seus dois livros recentes com Rarefato e
Nada feito Nada, percebe-se uma certa "soltura" formal, que não
significa descaso para a construção dos poemas, mas que aponta para
uma abertura maior às impurezas do mundo. Os poemas jogam mais com o
coloquialismo; as cenas urbanas ganham espaço; o formato dos textos
se torna irregular, com diferenças bruscas. Essa trajetória é
intencional?
Frederico Barbosa: Nos meus sete anos de silêncio, entre Nada Feito
Nada e Contracorrente, pensei muito sobre como continuar a escrever.
Sempre cri que o que importa mesmo na poesia é a forma. Não a fôrma,
prisão, mas a estrutura orgânica do texto. O que importa é como se
diz e não o que se diz. Mas demorei muito para concluir o óbvio. Se
o que importa é a forma, o vigor da composição, por que não unir à
preocupação estrutural a busca de um conteúdo que tenha impacto e
fale das coisas que, de fato, preocupam e afligem as pessoas hoje?
Já cansei de poetas ditos refinados que fazem uma poesia frouxa,
cheia de artifício e que nada dizem do nosso tempo. Que ficam
fazendo firula para descrever um peixe no prato ou uma visão besta
de um quadro, ou de flores e corolas nos bairros nobres de São Paulo
ou do Rio de Janeiro. Masturbação inócua. (...) O que pretendo é
unir a experimentação inventiva e rigorosa dos concretos ao ímpeto
de denúncia e protesto dos "engajados" e a o que há de engenhoso e
inventivo dos "marginais". É possível conseguir tudo isso ao mesmo
tempo? Leminski de certa forma conseguiu, eu estou tentando de forma
diferente...
http://www.weblivros.com.br/entrevista/fredericobarbosa.shtml
Quanto à sua classificação abrupta e aviltante de que eu seria "um
epígono dos concretos", prefiro responder com um convite, seja ao
senhor Dolhnikoff, que revela completo desconhecimento da minha
poesia, quanto aos leitores do Balacobaco: por favor visitem a minha
página na Internet
http://sites.uol.com.br/fredbar/ em que podem
encontrar quase todos os poemas dos meus cinco livros, de Rarefato
(1990)
http://sites.uol.com.br/rarefato/ a Cantar de Amor entre os
Escombros (2002) (http://sites.uol.com.br/cantardeamor/). Os
leitores curiosos podem verificar, portanto, o quanto há de
diferente entre o que escrevo e a poesia concreta.
Em entrevista recente a Ana Carolina Abiahy (Jornal O Norte, João
Pessoa, PB) eu expliquei a minha irritação com os "críticos de
orelhada" que insistem em classificar antes de ler a poesia:
Ana Carolina Abiahy - Em geral, você concorda com as críticas,
análises feitas sobre a sua obra?
Frederico Barbosa - Algumas críticas foram ótimas, mesmo sendo, por
vezes, restritivas. O que me irrita são as críticas de orelhada,
como as dos que insistem em dizer que faço poesia concreta. A
influência dos concretos na minha poesia é clara e muito me orgulho
dela. Mas dizer que escrevo poesia concreta é um absurdo. Tenho
quatro livros publicados. Neles, o número de poemas remotamente
semelhantes a qualquer coisa da poesia concreta é ínfimo. Mas como
sempre elogiei o trabalho de Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de
Campos, a crítica já lê meus poemas partindo do princípio distorcido
de que sou concretista. Seria bom a crítica brasileira ler de fato
os poemas e não se contentar com as declarações dos poetas.
http://sites.uol.com.br/fredbar/norte.html
As palavras acima vêm apenas a confirmar o que respondera, a
Reynaldo Damazio, na entrevista ao site Weblivros:
WEBLIVROS!: Você sofre da "angústia da influência" de que fala o
crítico norte-americano Harold Bloom? Qual sua relação, como
criador, com a tradição literária?
Frederico Barbosa: Não creio sofrer de nenhuma "angústia" quanto às
influências. Tenho várias, é claro, e não me sinto mal por isso nem
procuro destruir meus ídolos. São inúmeros, de Homero a Antonio
Risério. Passando por Sófocles, Beckett, Camus, e um sem número de
escritores, pintores, cineastas, jogadores de futebol, compositores,
cantores, todos artistas maravilhosos. Mas é claro que, sempre que
falam em "influência", quanto à minha poesia, pensam na minha
relação com a poesia concreta. Vivo repetindo, embora desagrade a
tantos, que a poesia concreta foi a maior revolução na poesia
mundial ocorrida na segunda metade do século XX. Além disso, foi a
única proposta estética jamais surgida no Brasil e único momento em
que esse país esteve na vanguarda da arte (qualquer arte!) no mundo.
O Brasil é um país muito engraçado... fica vibrando quando um
filmezinho de terceira concorre ao Oscar e esquece que temos, aqui,
vivos e atuantes, três dos poetas mais importantes na história da
literatura mundial: Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos.
Eles são a nossa glória máxima na arte. Digo mais: não tenho a menor
dúvida de que Augusto de Campos é hoje o maior e mais importante
poeta vivo não só da língua portuguesa, mas de todo o mundo. Preciso
responder se tenho influência? Mas é claro que procuro fazer a minha
poesia, usando qualquer recurso disponível... sonoro, visual,
concreto, o que seja... A grande lição da poesia concreta foi abrir
as portas a todas as possibilidades criativas que se possa
utilizar... sempre com rigor e técnica apurada. É o que eu busco.
Muitos poetas foram influenciados pela poesia concreta, chegaram até
a copiar, como sósias, muita coisa e depois, buscando a facilidade e
o "sucesso" barato, viraram as costas aos seus inventores e quiseram
"matar o pai"... Poucos tentam fazer seu trabalho procurando ser
inovadores mas conscientes dessa herança maravilhosa. Arnaldo
Antunes, Antonio Risério, Carlos Ávila... e outros poucos, muito
poucos. Acho que isso significa ter uma relação madura e segura com
a influência: assumi-la e reelaborá-la. É o que procuro fazer. Ainda
há João Cabral, que é influência fenomenal, e Sebastião Uchoa Leite,
poeta de primeira e que sempre foi uma espécie de guia, desde a
adolescência.
http://www.weblivros.com.br/entrevista/fredericobarbosa.shtml
Mas é a segunda referência que o senhor Dolhnikoff faz a declarações
minhas que mais me assombrou. Diz ele: "Frederico Barbosa aponta,
com razão, a mediocridade dos novos versejadores. Mas não consegue
entendê-la historicamente." Caso o entrevistado tenha utilizado a
palavra no segundo sentido que lhe atribui o Dicionário Houaiss de
"aquele que faz versos de má qualidade poética, é mau poeta", a
frase seria de uma redundância completa. Nem haveria o que se
explicar "historicamente". Mas tudo leva a crer que o senhor
Dolhnikoff atribui a mim uma crítica a TODOS os poetas
contemporâneos. Eu já critiquei (e criticarei sempre) muitos deles
sim, mas sempre as parcelas dos poetas que julgo merecedores de
crítica. Jamais poderia fazer uma restrição tão generalizante.
Gostaria de lembrar aos leitores do Balacobaco que recentemente
publiquei, em parceria com o excelente poeta Claudio Daniel, uma
antologia da poesia contemporânea brasileira, intitulada Na Virada
do Século - Poesia de Invenção no Brasil,
http://sites.uol.com.br/navirada/index.html
que inclui 46 poetas contemporâneos do nosso país.
Em entrevista ao próprio Balacobaco, eu deixei bem claro que a minha
rejeição era (e é) a algumas vertentes que considero abomináveis na
poesia de hoje:
Frederico Barbosa Essa antologia não tem qualquer pretensão de
"neutralidade". A pretensa "neutralidade" é o refúgio mais comum dos
covardes e dos oportunistas. Dizendo-se "neutros", destilam os
piores venenos e preconceitos possíveis. Veja-se a "neutralidade"
(chovam aspas) com que uma boa parcela da universidade trata a
poesia contemporânea. A diversidade de fato marca a poesia presente
na antologia, mas as duas vertentes poéticas mais comuns no Brasil
contemporâneo foram sistemática e intencionalmente ignoradas: a
poesia bem comportada, bonitinha mas ordinária, dos neoparnasianos
arcaizantes, que se dedicam a criar requintes postiços e defender o
retrocesso e a gratuidade retratista, ingênua e simplista dos
neodrummondianos redutores.
http://sites.uol.com.br/navirada/entrevista.html
E em entrevista mais recente, à Revista Trópico, acrescento:
Barbosa: Gostaria de acrescentar que toda escolha é passível de
revisão. Mesmo sendo, como a nossa, pautada por critérios poéticos e
não pessoais, como ocorre em muitas que rolam por aí, especialmente
aquelas “para inglês ver”. Já vi até um certo antologista de
incrível caráter que, depois de brigar com alguns poetas por ele
incluídos numa antologia dessas, resolveu eliminá-los de futuras
edições. Pode? Como nunca se poderá conhecer toda a produção poética
de um país tão cheio de poetas como o Brasil, é óbvio que muita
coisa boa acaba ficando de fora. Já descobri, desde que fizemos o
livro, alguns poetas bem interessantes que poderiam muito bem
constar da antologia, como o paraibano André Ricardo Aguiar.
http://sites.uol.com.br/navirada/tropico.htm
Como os leitores podem perceber, as restrições que fiz e faço são
bastante pontuais e não têm o caráter generalizante que o senhor
Dolhnikoff quer fazer crer em sua entrevista. Para complementar,
acrescento dois outros trechos de entrevistas minhas em que comento
a produção atual brasileira:
WEBLIVROS!: Seu terceiro livro de poemas, Contracorrente, apresenta
desde o título uma postura crítica, tanto em relação à linguagem
poética como à poesia feita hoje no Brasil? Qual sua opinião sobre a
poesia brasileira contemporânea? Estamos num beco sem saída?
Frederico Barbosa: A postura crítica é fundamental. Só com uma
postura realmente crítica, não preconceituosa ou sectária é que se
pode discutir qualquer coisa, até poesia. Creio até que seja
importante ser radical. Ter posições firmes, claras e precisas. E
nunca ter medo ou pudor de externá-las. Mas posições estéticas,
éticas e mesmo políticas. Não é essa a regra Brasil. A maior parte
dos críticos e escritores (artistas em geral) movem-se, opinam,
escolhem e se aliam guiados por objetivos particulares e mesquinhos.
As opiniões não se formam através do debate, conformam-se aos
interesses pessoais. Essa é uma das razões para a falência da
crítica e da discussão sobre poesia e arte no Brasil. É uma das
razões para o afastamento do público e para a descrença generalizada
em qualquer julgamento de valor, visto sempre com as devidas e
justas reservas. Mas creio que, quando você usa o termo "postura
crítica", na realidade se refere ao pessimismo e ao ceticismo que
permeiam Contracorrente. Até mesmo uma certa revolta contra o estado
das coisas na poesia brasileira daquele momento. O livro se abre com
um "manifesto", o poema Poesia e Porrada, dedicado ao meu grande
amigo, excelente crítico e professor e poeta de primeira, José de
Paula Ramos Jr.. Nele, digo que pouca coisa, na época em que foi
escrito (1999), me tocava na poesia brasileira contemporânea. Não me
referia, está claro, à poesia brasileira contemporânea feita por
escritores de outras gerações, como Décio Pignatari, Haroldo e
Augusto de Campos, Sebastião Uchoa Leite, Jomard Muniz de Britto,
Affonso Ávila, e outros poucos, já com mais de 60 anos, que
continuam produzindo poemas da mais alta qualidade. Falava da poesia
da minha geração, dos que apareceram nos anos 80 e 90, que estão
agora entre os 35 e os 50 anos. Nessa minha geração o que predomina
é o retrocesso, o receio de levar adiante as inovações radicais das
gerações anteriores. Abandonou-se tanto a experimentação inventiva e
rigorosa dos concretos, quanto o ímpeto de denúncia e protesto dos
"engajados", quanto a espontaneidade espirituosa e por vezes também
engenhosa e inventiva dos "marginais". Restou-nos uma poesia por
vezes empolada, meramente descritiva e incapaz de emocionar,
instigar ou provocar. Restou-nos o gesso e o tolo elogio do
silêncio. Os piores são os oportunistas patológicos, que lançam,
como Sandy e Júnior, carreiras internacionais picaretas e, juízes
sem juízo, procuram atacar com porradas tudo o que lhes pareça uma
ameaça à sua pretensa genialidade. Ou seja, um ambiente podre. Nesse
ambiente, preferi calar-me durante sete longos anos. Não cria que
nada que eu viesse a dizer fosse ouvido. Cansei de jogar pérolas
que, antes de chegar a ouvidos interessados e interessantes, eram
devoradas e silenciadas pelos porcos. Quando resolvi voltar,
irritado com o triunfo de tanta bobagem, escrevi os versos de Poesia
e Porrada:
E agora que impera o chato
o gesto eco
o versinho pré-parnaso
o correto dito certo
pé no gesso
regrado
pé no saco
dispenso a pose polida
e disparo petardos
Mas aconteceu, desde a publicação de Contracorrente, algo que não
esperava e que muito me animou. Descobri uma série de poetas, muitos
deles inéditos, que estão fazendo um trabalho muito interessante:
vigoroso e rigoroso. Longe da mídia dominante, alguns sem a menor
perspectiva de publicação. São vários e não quero citar nomes, pois
posso esquecer de algum, mas há gente muito boa ainda inédita ou
muito pouco conhecida aqui em São Paulo, no Rio, em Santo André, na
Paraíba, em Minas, em Recife e até em Arcoverde PE. Acho agora,
portanto, que há saída sim, mas há (e sempre houve) as barreiras da
burrice, do conservadorismo e da obtusidade generalizada a se
enfrentar. Espero continuar tendo forças e alguma companhia para
fazê-lo.
http://www.weblivros.com.br/entrevista/fredericobarbosa.shtml
E, na entrevista a Ana Carolina Abiahy:
Ana Carolina Abiahy - Você critica uma poesia chamada
intelectualóide. O que seria isto?
Sou completamente a favor de que o poeta (o artista em geral) tenha
completo domínio da sua arte, na prática e na teoria, que se
complementam. O grande artista deve saber tudo sobre sua arte. O que
critico são os poemas “certinhos”, bonitinhos mas ordinários, que
caracterizam uma boa parcela da produção poética da minha cidade,
São Paulo, hoje em dia. Na verdade, que não falam de nada que
importe, apenas são exercícios bem feitos seguindo os critérios da
crítica mais conservadora. Conhecimento algum é excessivo. O que
atrapalha não é o saber, é não saber ver ou ser.
Com esses esclarecimentos, estou certo de que os amigos leitores do
Balacobaco poderão avaliar o quanto minhas palavras foram deturpadas
pelo senhor Dolhnikoff. Resta saber se o que ocorreu foi uma leitura
apressada ou uma interpretação deliberadamente mal intencionada. Ou
seja, se o problema do senhor Dolhnikoff é não saber ver ou não
saber ser.
Muito obrigado pela atenção e abraços a todos,
Frederico Barbosa
Tréplica de Luis Dolhnikoff
Sobre os
comentários in-dig-na-dos (sic) do grande vate Frederico Barbosa a 2
referências que faço a seu nobilíssimo nome em recente entrevista
minha ao Balacobaco, uma observação:
São poucos os
leitores de poesia no país. É compreensível. Não apenas pela
irrelevância-padrão da presente exuberância da poesia nacional, mas
também pela pura e simples chatice da imensa maioria das personagens
envolvidas. Poesia é uma coisa séria demais para ficar nas mãos de
sujeitos que se levam muito a sério. Assim, na minha entrevista ao
Balacobaco, fiz de memória 2 rápidas referências ao citado nome do
citado vate. O que foi o bastante para que ele entupisse os leitores
do site com 6 (seis) páginas (em formato A4 do World, corpo 12)
para: a) poder reproduzir extensos excertos de suas próprias
entrevistas; b) chamar-me repetidamente de "senhor Dolhnikoff" (o
que deve achar muito espirituoso); c) usar o velho chavão do
não-sei-se-esse-senhor-não-sabe-ler-ou-não-quer-saber; d) mostrar-se
filosófico: "Com esses esclarecimentos, estou certo de que os amigos
leitores do Balacobaco poderão avaliar o quanto minhas palavras
foram deturpadas pelo senhor Dolhnikoff. Resta saber se o que
ocorreu foi uma leitura apressada ou uma interpretação
deliberadamente mal intencionada. Ou seja, se o problema do senhor
Dolhnikoff é não saber ver ou não saber ser." Uau. "Amigos
leitores"? Trata-se de uma versão literária do "caro telespectador"?
Dá para acreditar em alguém que escreve, a sério, "amigos leitores"?
Ao contrário do grandíssimo vate in-dig-na-do (sic) Frederico
Barbosa, não sou amigo dos eventuais leitores do Balacobaco. Não
porque não goste deles, mas porque não os conheço. E não costumo
chamar de amigos a desconhecidos, tentando angariar simpatias chãs.
Além do mais, vivo recluso numa praia pouco turística de
Florianópolis, tendo portanto pouquíssimos (e bons) amigos – que não
costumam ser do tipo que se indigna à exasperação em causa própria,
principalmente em episódios sem sangue e sem sedução da mulher
alheia. Porque, como eu, meus amigos costumam ser marxistas. Da
vertente de Groucho, não de Karl. Ou seja, grouxo-marxistas. Cujo
principal mote é: "Não aceito ser sócio de um clube que me aceite
como sócio". Daí que é divertido ler o que o vate pretende ser
ofensas elegantes ao meu nome: "O problema do senhor Dolhnikoff é
não saber ver ou não saber ser?" Eu hem. Usar assim o nome do pobre
senhor Dolhnikoff para exibir a própria filosofice... Aliás, se o
super-vate mo perguntasse, a resposta seria fácil: sou míope, logo,
não enxergo de fato muito bem. Quanto a "saber ser", sei lá o que
isso seja. O que não fala a favor do grão-vate: afinal, poetas
deveriam ser precisos com as palavras.
Em todo caso, o
necessário aqui é terminar com este caso, antes que eu cometa o
mesmo ridículo de escrever páginas e páginas para me in-dig-nar
(sic) com as páginas e páginas in-dig-na-das (sic) do vatíssimo.
Sendo que o maior ridículo é o seguinte: as famosas 2 referências ao
nobre nome do dito cujo não são lá de frases exatamente geniais.
Afinal, apenas citei-as, e de cabeça, porque serviam de gancho para
meus argumentos – como fica cristalino a quem lê minha entrevista.
Na qual, portanto, o grão-poeta em tão-questão não tem nenhuma
importância: ou seja, não se trata ali de "polemizar" (argh) com o
grão-duque. Nem ali nem aqui. Porque eu jamais "polemizaria" sobre
um tal assunto, ou seja, o-que-disse-ou-não-disse o grão-ducão.
Visto que guardo minha indignação para coisas mais relevantes.
Por exemplo: a
segunda referência que tanto in-dig-nou (sic) o rico Frederico foi
eu atribuir-lhe um comentário sobre a mediocridade dos novos
versejadores brasileiros. Portanto, reproduz trechos e trechos de
entrevistas suas para demonstrar o quanto sabe reconhecer as
exceções. Amazing. Se o grão-vatão não estivesse tão preocupado em
se in-dig-nar (sic), teria percebido o óbvio, que se trata de certa
mediocridade geral, a que ele, portanto, se refere, sim, em muitos
lugares, de um modo ou de outro (não citei palavras literais suas).
Afinal, nosso Frederico não é um completo idiota. Portanto, sabe
muito bem que os poetas medíocres hoje publicando no país são
multidão.
Para finalizar:
de minha lavra, refiro-me explicitamente ao rico Frederico como "epígono
dos concretos". O que o faz, in-dig-na-do (sic), remeter os "amigos
leitores" aos seus livros, para constatarem quão distinta é sua
linguagem da do concretismo. Indeed. Não obstante, epígono significa
pertencente à geração seguinte, e também discípulo. Nosso querido
Frederico é da geração seguinte (ainda que não da imediatamente
seguinte, explicito, antes que ele remeta aos "amigos leitores" mais
6 páginas). E também é, ou melhor, tentou ser, um discípulo
estético, como demonstram inúmeros poemas. Não do viés visual dos
concretos, mas do viés paratático gramatical. Não vou citar
versinhos aqui, porque teria de ir aos livros, e não irei. Pois o
fato é que simplesmente não me referia ao ínclito Frederico ser um
discípulo estético dos concretos, como o próprio assumiu
in-dig-na-do (sic). Referia-me sim a ele ser um epígono no sentido
de discípulo, mas um discípulo no sentido de acólito, de
propagandista, de defensor irrestrito, de crédulo, de crente
entusiasmado. Como disse, sou míope. Já o querido Frederico é
desmemoriado. Grave. Pois não é que reproduz ele mesmo a seguinte
passagem, perdida em meio a suas 6 páginas in-dig-nadas (sic), para
demonstrar o quanto não é um epígono dos concretos: "Temos, aqui,
vivos e atuantes, três dos poetas mais importantes na história da
literatura mundial: Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos.
Eles são a nossa glória máxima na arte. Digo mais: não tenho a menor
dúvida de que Augusto de Campos é hoje o maior e mais importante
poeta vivo não só da língua portuguesa, mas de todo o mundo. " (http://www.weblivros.com.br/entrevista/fredericobarbosa.shtml).
Há de fato gente
que não sabe o que o rico Frederico diz. Mas não sou eu.
Ah sim: quem
quiser uma visão mais ponderada, isto é, não de epígono, da poesia
concreta (ainda que este não seja o tema central), pode tentar minha
entrevista ao Balacobaco. Saravá.
Luis Dolhnikoff"
Contra-fecho de Frederico Barbosa
Já que o senhor
Dolhnikoff afirma agora que fez "de memória" suas referências a
minhas afirmações e que, para melhor avaliar minha poesia, "teria de
ir aos livros, e não irei", considero, do meu ponto de vista, a
questão resolvida.
Nada mais tenho a discutir com quem assume publicamente ser um
crítico de orelhada e que se limita agora a recorrer à "ironia" de a
me tachar de "vate", "chato" e "idiota". Tais afirmações revelam de
maneira cabal que, além de leitor apressado, o senhor Dolhnikoff é
claramente mal intencionado.
Em
outras palavras, nada "filosóficas": além de não saber ler, não sabe
ser.
Abraços,
Frederico Barbosa
Página de Frederico Barbosa
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