Leandro Konder
Audácia para rever Lênin
28.05.2005
Às portas da revolução — Escritos
de Lênin de 1917, de Slavoj Zizek. Tradução de Luiz Bernardo
Pericás, Fabrizio Rigout e Daniela Jinkings. Editora Boitempo, 350
pgs. R$ 45
O escritor esloveno Slavoj Zizek,
psicanalista, já é bem conhecido no Brasil. Seu estilo instigante,
irônico, bem humorado, tem deixado mais de um leitor perplexo. No
livro que escreveu sobre Hegel, chama-o de “o mais sublime dos
histéricos”. Outro volume seu está intitulado “O Absoluto frágil”.
Outro, ainda, “A praga das fantasias”. E um livro sobre o objeto da
ideologia chama-se “Eles não sabem o que fazem”.
Zizek é também o organizador de uma
coletânea de escritos sobre ideologia: “Um mapa da ideologia” (ed.
Contraponto) mereceu avaliações elogiosas, que sublinharam a
qualidade dos textos selecionados.
Zizek não é um autor de fácil leitura.
Sua audácia é desconcertante. Este livro que está sendo lançado
agora, sobre as idéias e ações de Lênin em 1917, é ainda mais
impiedoso que os anteriores. Ele nos traz um Lênin isolado, a
princípio exilado na Suíça, depois mergulhado na explosão
revolucionária russa, radicalizando suas posições nas “Teses de
abril”, que levaram sua mulher, Krupskaia, a dizer: “Temo que Lênin
tenha enlouquecido”.
Um revolucionário com “refinado senso dialético”
Na verdade, não havia enlouquecido:
simplesmente tinha, com “refinado senso dialético”, como diz Zizek,
enfrentado o desafio de fazer uma revolução num momento em que nada
indicava que ela seria possível. Para atingir seu objetivo
revolucionário, percebeu que precisava participar de uma situação na
qual a burguesia russa tentava apresentar o quadro de uma revolução
já feita, que havia resultado na derrubada do tzarismo.
Lênin soube reconhecer nos parlamentos
de operários e camponeses — os soviets — o instrumento da revolução
e, com a palavra de ordem “todo o poder aos soviets ”, impulsionou o
processo no sentido de radicalizá-lo, e não no sentido de fazê-lo
dissolver-se, como queria a burguesia .
Quando os soviets já tinham cumprido a
função que tiveram, de preparar a crise final do regime, Lênin soube
igualmente mudar de postura e dedicar-se ao preparo imediato da
insurreição. A via pacífica do processo se tornara impossível,
começava a via não pacífica, “a mais dolorosa”.
Zizek se insurge, ousadamente, contra
o consenso perverso do “pensamento único” liberal, que condena Lênin
sem se dar ao trabalho de lê-lo com seriedade.
Para o crítico esloveno, há coisas em
Lênin que devem ser aprendidas ou reaprendidas. A mais decisiva
entre elas: precisamos reaprender com Lênin a capacidade de
“reinventar o marxismo” e fazer a revolução.
A visão da revolução em andamento,
saudada pelas massas, sugere uma revisão na imagem de
revolucionários que têm sido considerados assustadores em sua
truculência.
Zizek fustiga a condenação unilateral
e hipócrita da revolução violenta, constante no discurso moralista,
sempre acumpliciado com a violência repressiva, institucionalizada,
concebida como “normal”.
Não fica clara, porém, a posição do
crítico esloveno em relação à controvérsia que envolvia duas
concepções de esquerda: aquela que numa linha gramsciana via o
revolucionamento da sociedade capitalista como um processo e aquela
que tendia a reduzir a revolução a uma “explosão”, a uma ruptura
drástica.
A “forma” da revolução leninista valia
só para a Rússia de 1917 ou vale para todos os marxistas hoje?
Há exatamente 20 anos, Carlos Nelson
Coutinho publicou um livro intitulado “A dualidade de poderes”, que
jogava lenha precisamente nessa fogueira: por qual caminho pode vir
a ser construída, um dia, uma sociedade socialista efetivamente
democrática ?
Seria muito interessante ver Zizek
assumir uma posição mais explícita a respeito dessa questão e dos
desdobramentos de qualquer uma das duas opções.
LEANDRO KONDER é filósofo
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