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Juarez Leitão



Discurso de posse

Academia Cearense de Letras

 

Que forças podem amparar um homem comum no momento distinto em que toca com os próprios dedos a superfície do ápice-mágico, aquele que o poeta Ovídio chamou de metamorfose e definiu como a irrupção do cotidiano no mundo divino e eternal?

Fosse num outro tempo, mas nesta mesma noite, estaria dividindo as alegrias que me embalam com o velho Cura da Ribeira do Curtume, o meu tio e tutor Padre Leitão, e, atento aos seus olhos úmidos, assistiria ao exercício supremo de sua emoção, drapejando Hosanas e Epinícios em louvor do pupilo que ascende à cadeira de José Albano.

Sonhei vê-lo agora entrando por esta sala, resoluto e fagueiro, a voz tonitroante, orgulhando parceria na homenagem que a Academia Cearense de Letras me concede e de forma esplêndida pela palavra competente e generosa do Prof. Teoberto Landim, do País dos Mourões, afilhado, ele também, do vigário altruista de Nova Russas.

E do relatório de alegações, com a espontaneidade de sua grande alma, lembraria de como nos forjou, nos limites da casa paroquial, para que, segundo ele, "virássemos gente", bicho bruto que eu era, vindo do oeste bravio do estado, carregando a dor viva da morte do pai, assassinado, da mãe pobre e de todas as perplexidades malsinadas dos pequenos órfãos.

Contabilizaria por certo, as aulas suplementares com a professora Maria Ferreira e a imposição da leitura de Dante, de Camões, de Euclides da Cunha e Castro Alves, com as respectivas prestações de contas na hora do almoço.

E lembraria, talvez, daquela noite em que, por falta insignificante, me puniu com a Batalha de Maratona, episódio vantajoso da História Grega, que me pôs a procurar, sem referências, nos 36 volumes da História Universal de Cesare Cantu.

Ou de quando me conduziu ao Seminário de Sobral e, à entrada do sólido e severo prédio da Betânia, repetiu a sentença do pai de Sérgio, personagem de Raul Pompéia, à porta do Ateneu: "Vais encontrar um mundo!"

Outro dia, o poeta Soares Feitosa, outra criação humanística do Pe. Leitão, lembrava-me que nas sinfonias betovenianas a felicidade dos compassos aleluíticos é, muitas vezes, intermediada pelo movimento plangente e terno das marchas fúnebres.

E é por isso que, ao receber este diploma que emblema, nos escritores cearenses, o sonho da permanência, cercado pelo apoio caloroso de meus alunos, a ternura da família e o abraço da cidade, solfejo este réquiem para a memória perene e definitiva em mim de Francisco Soares Leitão. E comovido, vou-lhe ao encontro no reino de Pasárgada (onde tudo é possível) para murmurar, solene, aos seus ouvidos maltratados de ingratidões: Padre-Mestre, Deus lhe pague!

Não fui feito do ferro de Itabira, nem de outros gloriosos compostos dos poetas maiores. Moldou-me o barro humilde e pobre de Novo Oriente, lugarejo perdido nas ilhargas do mundo, a levar coices dos ventos, do sol e dos homens.

No lugar onde nasci, Barro Vermelho, interior de Novo Oriente, os homens são comuns e mascam fumo, lêem as horas no céu e querem bem. Amam a chuva, as vacas e a farinha. São sinceros e hospitaleiros, dançam com fervor e usam faca. E são valentes, quando é preciso ser valente.

Menino, ouvi as suas cantigas e testemunhei sua peripécia. Acompanhei violas e reisados. Vi-os na seca e no inverno grande, nos casamentos e nas sentinelas, vindos da roça, verticais com a bandeira-enxada ou pacificados na rede funerária ao ombro solidário dos sobreviventes.

Sou de lá e sou um deles.

Apascentei a tarde dos bezerros, enfrentei as abelhas, reparti-me entre melancias e burros brabos.

E se não tive um rio, aquele rio marcante de todos os poetas, tive o riacho Três Irmãos, que mesmo raquítico e intermitente, forneceu-me o manancial telúrico indispensável ao ofício do sonho.

Aquele, meu primeiro planeta. E eu o devassei sofregamente.

Depois vi o trem e o tomei. E nessa viagem cósmica descobri o universo da metrópole. O frenesi das multidões no exercício da vida, as colunas da lei e da dor, a extravagância cromática, as fraturas da paisagem e o edifício inconcluso das ambições humanas.

Mas vi ainda que a cidade grande também tem alma e tem mistério. É bela de se ver e de se ouvir. Sugestiva no seu sentido múltiplo e adequada a esse conflito da multiplicidade com a unidade que é o motivo profundo da vida, em todas as suas infinitas manifestações e em seu único mistério final.

É possível que não tenha vindo inteiro, pois tantas vezes me descubro nas campinas da memória, eterno menino rural, traquinas e serelepe, sorvendo a vida in natura na felicidade inconsciente.

O registro do primeiro momento pode não ser precisado. Mas um dia, menino ainda, acontece a convocação para o exército de Órfeu, esse deus amoroso e brincalhão, e a poesia nos arrebata.

É assim que o poeta Filgueiras Lima descreve esse momento mágico:
 

"Era menino.
Um dia, olhei o céu: longe, as estrelas.
E eu tive uma vontade imensa de colhê-las.
Estava desvendado o meu destino."


Sonho e maldição, da poesia ninguém se libertará !

Assim como os aflhados do drácula, a substância que nos alimenta está, sobretudo, nos outros. Do afeto, da carne, da promessa, da luz e do gosto dos que nos encantam, sobrevivemos. Só a paixão, que é sangue, nos ilumina e revigora.

Nietzsche diz que "todas as ordenações do homem são dispositivos montados para que a vida, em contínua dispersão, não seja pressentida."

O poeta se insurge contra esta articulação e, aliado ao insinuante demônio da ousadia, se põe justamente à procura do fascínio da vida, da coisa comovente, do laço paradoxal que é capaz de cruzar o encantamento com a morbidez ou perceber o aspecto risonho do caos.

Expandindo-se nos espaços feéricos da existência ou mergulhado na angústia subjacente, o poeta sempre tem perguntas insólitas e novos enigmas a decifrar, como aquele altivo galo de Ferreira Gullar:
 

"Que faço entre coisas?
Do que me defendo?"


José Albano, O Patrono da Cadeira 19, foi um poeta singular e uma personalidade estranha e misteriosa. Vestia-se, em pleno século XX, como um romântico sorumbático do século XIX e escrevia, castiça e caprichosamente, como um bardo do século XVI.

Para Braga Montenegro "Foi um intemporal e um cosmopolita, alheado completamente do caráter nacional."

Alma contemplativa, destila em seus versos, cunhados em oficina quinhentista, uma amargura eterna e sem causa definida, mas de resultado poético extremamente compensador:
 

"Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino."

 

Distante das estruturas lógicas da vida, longe do século e da porfia dos homens, voltou-se, como viu o Pe. Francisco Sadoc de Araújo em brilhantíssimo ensaio, para o que lhe parecia definitavamente eterno: A Doutrina Cristã e a Poesia de Camões. E para estas duas metas o poeta procurou encaminhar seus passos de peregrino.

Considerado pela mais abalizada crítica, como um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, sua obra e sua personalidade literária requerem de minha parte estudo mais demorado e cuidadoso, o que este espaço e esta ocasião não poderiam satisfazer.

Nesta noite a poesia e a História dão-se as mãos, confirmando remota e benfazeja interação.

Uno em mim, por ordem do destino, estas duas manifestações do espírito humano; e a cadeira para a qual fui eleito é patroneada por um poeta e teve a honra esplêndida de ter sido ocupada por um historiador, o professor Mozart Soriano Aderaldo.

Naquele 29 de agosto de 1958 o escritor João Clímaco Bezerra recebia, em nome da Academia, a Mozart Soriano Aderaldo, ambos fundadores do Grupo Clã, como o novo ocupante da Cadeira 19, em virtude da transferência de Martinz de Aguiar para o quadro de sócios correspondentes.

Em discurso exuberante, e com aquele acento rítmico tão próprio de sua eloquência, o autor de "O Semeador de Ausências" definia desta forma o meu antecessor:"Não vos eximistes, Sr. Mozart Soriano Aderaldo, como muitos da vossa geração, da angústia universal. Herdastes, pelo temperamento e talvez pela graça, a fé dos nossos maiores. Fostes, entre nós, um homem, que soube crer. Um católico de convicções sólidas, robusto na sua crença, humilde na fragilidade da vossa condição humana, temeroso e confiante em Deus. Mas sempre fiel a vós mesmos, tornando-vos, dentro da vossa fé, um homem de combate e um homem de polêmica."

A imagem de homem de fé era a primeira que Mozart Soriano Aderaldo passava àqueles com quem convivia ou a quem, por ventura, entrasse em contato com seu pensamento.

Perguntado, certa vez, por Aluízio Medeiros, seu amigo fraterno e ateu assumido, se acreditava mesmo que o homem tivesse sido criado à imagem e semelhança de Deus, respondeu decisivo: "Se não tivesse sido, como explicar essa mística e as obras imortais da arte e da ciência?" Convicto, até a medula, das razões de sua fé, fundamentada no Credo de Nicéia, não desdenhava dos agnósticos, lastimando, entretanto, que não tivessem recebido a graça da revelação de Deus. E até achava que "A graça é a violência de Deus sobre a liberdade humana", pois, uma vez destinada, conduzia o agraciado para os árduos caminhos do bem, em meio a tantas ofertas de prazerosas transgressões.

Mozart nasceu em Brejo dos Anapurus, no Maranhão, do cearense Francisco Antônio Aderaldo e da maranhense Elisa Soriano.

Pelo pai, é dos Aderaldos de Mombaca, em linha direta de Maria Pereira, fundadora do município e membro ativo das famílias pastoris e guerreiras dos Inhamuns.

Pelo lado da mãe, descende dos Caldas e Coelho, em cuja árvore se destaca um ministro da Guerra do Império, depois tetrarca do Grão-Pará, Jerônimo Francisco Coelho, pai daquele Roberto Francisco Coelho, oficial de Caxias que, vindo de Santa Catarina combater a Balaiada, terminou se casando no Maranhão, onde começa a história do autor de "No Mar de Tiberíades".

São fortes e comovidas as alusões de Mozart à sua mãe Elisa, verdadeira mulher-forte-do-evangelho, que, ao vir do Brejo para o Ceará, trouxe um daqueles baús de cedro recoberto de couro cravejado, objeto votivo das fantasias familiares. Dessa arca avoenga e misteriosa que, segundo consta, continha jóias e libras esterlinas, saíram os recursos necessários aos estudos e à formação dos filhos Tarcísio, Aluísio e Mozart, sustentados daqui nas universidades cariocas.

O articulista de "Letras e Idéias" bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Ceará, depois de se transferir do Rio de Janeiro, onde fizera os três primeiros anos de seu curso.

Vocação de homem público, ligado ao velho prócer Menezes Pimentel, foi nomeado prefeito de Senador Pompeu com apenas 20 anos de idade.

Diretor da Imprensa Oficial, consultor jurídico da Secretaria de Agricultura, Secretário de Estado, conselheiro do Tribunal de Contas e do Conselho de Cultura do Estado. Fundador e Diretor da Escola de Administração, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas, da Faculdade de Direito, da Faculdade Católica de Filosofia e de colégios da rede pública.

Escritor, historiador, crítico, poeta e genealogista, membro efetivo do Instituto do Ceará e desta Academia Cearense de Letras, pôs a serviço do Ceará sua inteligência, seu talento, sua honestidade e toda a força de trabalho durante sua profícua vida de 78 anos.

Casado com Ana Cartaxo, Dona Nanza, construiu a seu lado, por mais de 45 anos, uma das mais belas histórias de amor desta terra de tantas paixões.

Namoro lento, costurado com os fios de ouro da paciência, teve início penoso, dificultado pela distância (a pretendida morava em Cajazeiras, na Paraíba) e pelas cismas patriarcais do farmacêutico e poeta Cristiano Cartaxo Rolim, o futuro sogro. A primeira carta recebida por Nanza, fora a terceira enviada por Mozart, dada as dificuldades de aproximação e os cuidados recomendados pelo missivista aos fiéis portadores de suas manifestações líricas.

Mas, entre espantos e percalços ao longo de cinco anos (esta praça General Tibúrcio, aqui ao lado da Academia, era o ponto predileto dos encontros), Ceará e Paraíba finalmente se cruzaram como os rios Negro e Solimões do poema de Quintino Cunha, para formar o rio único e definitivo da felicidade. Neste amor Mozart se dizia completamente realizado:"Fiz o melhor casamento de que se tem notícia na face da terra. Minha mulher é uma admirável criatura, sob todos os aspectos: intelectual, moral e socialmente. É uma mulher que completou minha vida." E da paixão permanente de Nanza e Mozart vieram os filhos Melânia, Marcos, Henrique, Carlos e Lúcio.

Mozart pertence a essa elite de homens bons, abençoados pela inspiração, iluminados pela lucidez e exercitados no devotamento e no empenho integral às causas definitivas da humanidade.

Seu primeiro compromisso é com a coerência, a verdade socrática, quer no plano espiritual, quer na atividade pública, familiar e humana, decidindo-se sempre, pelos valores permanentes da vida.

Sincero e extremamente franco, comunica sua oposição à farsa, à armação cínica, mantendo-se ao longo de sua atividade intelectual e social na estrita responsabilidade ética.

Viveu da necessária tensão da procura, da captação abrangente de seu tempo e de seu lugar e, sem presunção grandiloqüente, conseguiu elaborar uma mensagem espontânea e natural, obtendo nesse jaez importante resultado científico e filosófico.

"Difícil é ser árvore num chão de ventos" - reclama o poeta Francisco Carvalho. Mozart viveu decentemente no meio do ardil e da conveniência proveitosa, onde tantas vezes, as decisões são tomadas à revelia da maioria silenciosa e obscura e onde as corporações agem sobre as cabeças que definem e, apesar das aparências de ordem, operam o elemento do despropósito e da irracionalidade.

Sabia distinguir perfeitamente e com ajuizado critério o caráter das mudanças, não se postando, como alguns julgaram, na atalaia da retrocidade absurda. Seu conservadorismo equivale à fidelidade a princípios e verdades longamente assimilados por formação cuidadosa e domorada reflexão.

Não oscilou ao vento das circunstâncias. Pôs-se na estrada, cavaleiro de lídima jornada, armado de muita fé e de toda a convicção do cristianismo apostólico.

Não fazia concessão quando se tratava de sua religião. Reagiu ao alistamento nas fileiras da Igreja Progressista, avistando em seus teóricos e engajados uma aproximação perigosa com os inimigos da fé. E destas latitudes de seu pensamento, levantou a voz franca, muitas vezes isolada, contra o que considerava uma interpretação errônea da Doutrina Social da Igreja, formulada por Leão XIII.

Capaz de ouvir e discutir com tolerância as razões adversárias, tinha grandes amigos entre os de ideologia completamente diferente da sua. Quando ofendido, porém, pelo que considerava um achincalhe explícito ao sedimento consuetudinário, às normas sociais ou aos princípios tutelares de sua fé, abria mão da reserva comiserativa e batia com força o cajado do protesto, com aquela ira sagrada do profeta Natan condenando as malfeitorias do rei Davi. E aí podia ser o padre, o militante da comunidade eclesial de base, o antístite ou o metropolita, todos seriam pública e veementemente repreendidos e enquadrados em seu index. Podemos discordar desta posição, e até discordamos, mas não da honestidade com que a expressava .

Era um cânone. Um exemplo comunitário. Atrás de si vinham os seguidores pressurosos. Os que confiavam em sua eficiência, no espiríto de organização, no desempenho consciencioso.

As publicações do Instituto do Ceará e da Academia, quase sempre traziam a marca de suas mãos zelosas. E ao se sentir muito doente, sem condições de continuar na comissão de redação da Revista da Academia, passou o bastão à sua sobrinha, a acadêmica Noemi Elisa Costa de Soriano Aderaldo, ressaltando-lhe as responsabilidades da tarefa, demorada e minudentemente, como um velho alquimista da Idade Média revelando a fórmula dos elixires ou o segredo da pedra filosofal para o eleito de sua confiança.

Homo Laboris, fez do trabalho um mandamento especial. Escrevia, pesquisava, fundava Clubes de Rotary, acompanhava projetos editoriais, fazia assessoria, dirigia reuniões. Tudo isto sem descuidar dos compromissos religiosos, do terço diário, das missas e das sessões da Associação dos Vicentinos. Tinha um pé na madeira do cotidiano e outro no umbral metafísico, administrando as interdições relativas do sonho e as razões movediças da vida.

Como historiador, escreve sobre a raça, o povo construtor de uma época, a Fortaleza intrépida dos primeiros empreendedores, não caindo, entretanto, na alegoria gratuita ou no símbolo exaltado, sem a comprobatória correspondência documental.

Fala de Fortaleza com convicção plena e o maior conhecimento e, neste ofício põe toda a energia e toda a fidelidade, o amor absoluto e a defesa intransigente. Seu livro sobre a Praça do Ferreira é documento fundamental para a História desta cidade, mas é também um testemunho de dor e de saudade. E a gente sente como se do texto evolasse uma espécie de cheiro do tempo, da meticulosidade ancestral, do jeito antigo de existir, o suor, a voz, o bafo do Boticário... coisas que o olfato dos vândalos nunca haveria de perceber.

É, ao mesmo tempo, um teórico do raciocínio pontual, da lógica clássica, e um hermeneuta contemporâneo que não se cansa de argüir sobre os fatos com abalizamento crítico e o máximo desvelo de pesquisa.

Quando quisermos encontrar Mozart voltemos aos seus livros; e então o teremos de novo, com aquele encanto sincero de dizer, a convicção do argumento, a fé firme e arraigada, o amor devoto a Fortaleza, as notas valiosíssimas no livro de Theberge, a família, D.Nanza, os filhos, os irmãos, os sobrinhos, enfim, a entrega sem retorno que se mostra borbulhante na fala da paixão.

E vamos com Mozart redescobrindo o tempo nos palimpsestos e restaurando as antigas nomenclaturas: a Rua do Chafariz, a Travessa da Bica, a Rua da Aurora, o Beco da Apertada Hora, o Boulevard da Conceição, a Rua da Soledade, a Travessa da Alegria, a querida Rua Formosa, a Praça dos Mártires, o Parque da Liberdade e a Estrada do Outeiro... para fundarmos, nesta noite de sua lembrança, uma outra Fortaleza, dormitando à sombra dos Palmares , no balanço sossegado dos galamartes ou ao compasso das galantes cantigas seresteiras: Na hora do calor bebamos o refresco de pega-pinto e a gengibirra, e vamos gargalhar com Carlitos no Majestic até que chegue abril e o concurso da maior mentira debaixo do Cajueiro Botador.

Nessa Fortaleza de antanho mora ainda Mozart, "esse mago de olhar medieval" que, segundo o poeta Artur Eduardo Benevides:
 

"Viu um dia passar o Santo Graal
E os enfermos se ergueram e ágeis caminharam.
Os surdos ouviram. Os cegos enxergaram.
Na tarde peregrina."

 

Quando, no futuro, forem julgar Mozart Soriano Aderaldo, poderão variar ou divergir nesse julgamento. Mas ninguém poderá lhe tirar o papel que exerceu como interrogador de seu tempo.

Conjugando o Ethos e o Pathos na linha transcendente de seu pensamento, no compromisso histórico com o Ceará e na ardente defesa de uma ordem moral inspirada na religião, Mozart se elegeu um dos mais completos e autênticos intelectuais de nossa terra e do Brasil. E farta foi a herança que legou à memória cultural do século.

Senhores Acadêmicos:

Trouxestes um filho do sertão para sentar na vossa casa, freqüentar vossas conversas e repartir a energia espiritual que sustenta os operários da palavra.

Olho-vos com respeito e gravidade e, também, com aquela sensação do levita no Sinédrio ante a sabedoria e a experiência dos velhos sacerdotes.

Sei da missão e dos costumes desta agremiação de altaneiros e sinto sobre os ombros o peso deste colar e a simbologia do diploma que o acompanha.

Li os vossos estatutos, jurei-os, e agora tenho compromissos permanentes com a literatura e com a história secular da Academia.

Confesso que algumas marcas de minha personalidade literária também são permanentes e se apresentam, mesmo à revelia, em meu texto, em minha produção.

Não sou um destilador do inefável.

Sou um caboclo do Inhamuns, que, mercê de oportunidades milagrosas e obrigações de profissão, visitou o humanismo clássico e se banhou nas águas de Hipocrene.

Poderia ter sido um cantador de viola, jogral peregrino dos terreiros e alpendres do sertão; ou um vaqueiro aboiador, devassando destinos pelas veredas árduas daquelas solidões.

Mas a vida me trouxe, negociando a infância, (escalada nos pés de pitombas e adoçada de canapuns), com o fascínio do delírio urbano, múltiplo, buliçoso e contraditório, mas inegavelmente sedutor como cenário da jornada humana.

Dividido entre os pórticos dos templos da Ática e as porteiras dos velhos currais, venho espalhando estas minhas cantigas, versos paroquianos e cosmopolitas, que misturam tejubinas e odaliscas, preás e centauros, Romas e Canindés.

Se, como dizem, ser a história dos homens a história da dor com acidentais hiatos de alegria, com certeza, nesta noite e neste momento, desembarco numa estação de felicidade.

Estou feliz de estar entre vós.

Vivo o magnetismo do inusitado e acendo as luzes das promessas.

Mas agora quero terminar para começar a viver.

Para sempre.
 


Juarez Leitão.

 



Palácio da Luz, em 14 de Março de 1996
Dia Nacional da Poesia
ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS
Cadeira 19