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Juarez Leitão




A sina do eterno caminhador


 

Lá no Soares, lugarejo nos confins do Nordeste, sertão brabo de Independência, Ceará, onde todos os habitantes são primos entre si, um que passava para a roça cruzou com outro que ia chegando e perguntou:

— Compadre, dizem que filho da Anísia do tio Zé Fenelon, aquele que mora para as bandas do Pernambuco, foi mordido por uma raposa doida, você sabe?

— Sei - respondeu o outro - e também ouvi dizer que o rapaz ficou de tal modo afuleimado por causa do veneno da bicha, que agora anda espalhando a maior confusão pelo mundo todo, um grande labacé, que já 'tá saindo até em jornal, com retrato e tudo...

O boato acendeu a confabulação naqueles longínquos sertões e tem rendido noites de prosa gorda por aquelas bandas, o pacato planeta dos soaristas, onde tudo é, a um tempo, importante e banal, e, onde a ventura, a desdita e próprio susto se medem pela régua fatal do destino. Neste caso, porém, a notícia saiu acanhada e os versos que aqueles cantadores do sertão estão glosando nas noites de lua cheia, sob o mote de - “a raposa mordeu Chico José” - está muito aquém do real. Não estão sabendo nem um terço da missa.

Devo ir lá - posto avançado que sou daquela pequeno e insignificante clã de matutos, na cidade grande - para repor a verdade junto à parentela. O filho da Tia‘Nísia não foi mordido por uma raposa, apenas. Foi muito mais. Devem ter sido mil, no mínimo, todas com os três cabelos do cão da ponta do rabo, as raposas que morderam o Chico José.

Pelo mês do setembro do ano passado, Seca do 93, recebi de Soares Feitosa, o Chico José - de quem nunca se soube poeta - a notícia inesperada: estava fazendo versos. Sempre muito esquisito e surpreendente, anormal pelo gênio e capacidade de pensar, criar e fazer dar frutos aos mais desafiadores projetos de vida, parecia-me que desta vez estava caçando onça muito longe de seu território.

Mas ao primeiro contato com o seu novo empreendimento, o poema SIARAH, percebi que Chico José já vinha da estação da caça, e não só matara a onça como já dela se vestia, gibão de vaqueta da pintada, peito, pulo e destreza; pisada macia e urro de trovão!

Chico José, fiscal do consumo aos vinte anos de idade, também concursado brilhante do Banco do Brasil, desertor entediado da Faculdade de Direito, foca petulante aos 16, no jornal Gazeta de Notícias - de saudosa memória - "cassaco" aos 14, seca do 58, - no que levou uma belíssima reprimenda do Padre-Mestre - abridor de caminhos difíceis, herdeiro de algumas tragédias pessoais, açougueiro na praça do Recife, mil vezes vencedor... mas, poeta - quem haveria de suspeitar?

Pois é poeta e tem necessidade urgente de falar! Sua poesia tem a exuberância das festas sertanejas. É leite com espuma, paçoca de pilão, cozido de carneiro gordo, capote (guiné) morto a tiro de lazarina, gosto, tempero e sustança dos tempos de safra. Entretanto, é também alimento de absorção abrangente e intemporal. Não tem limites nem endereços curtos ou mesquinhos.

Argúi sobre o fato explícito - a notícia de jornal, o calor do cotidiano, prevalências subjetivas de alto resultado expressivo e humano. Da circunstância paroquial, ribeirinha, atinge sem problema o patamar universal dos temas clássicos do destino.

A dor, a injustiça, o infinito sofrimento e a resistência heróica da raposa do maciço de Baturité são a interminável e rude saga do pequeno homem frente à ambição de sua espécie. A história que esconde, não titubeia em apresentar com os nomes e os papéis trocados o resultado de sua luta.

Notável não foi o massacre de Roma sobre a pátria de Aníbal, mas a certeza do opressor de que os cartagineses iriam sempre resistir!

A poesia de Chico José quer pôr ordem na informação. Com o facão do açougue e o velho chiqueirador dos Feitosas dos Inhamuns, esse descendente dos audazes colonizadores do século XVIII não está mais em guerra de sangue com os Montes, seus inimigos remotos. Tem briga maior.

Quer mostrar aos seus contemporâneos e aos que hão de vir que é preciso discutir, sempre, os caminhos do homem. A luz que vem de antes, dos primeiros vagidos da consciência, tem sempre que produzir auroras, não a brutalidade da morte muda, do golpe sem razão: Format Cê Dois Pontos.

E o verso dispara como um arcabuz, vindo das brenhas, do áspero chão da memória, às vezes num plano abstrato e imaterial, outras, e muito mais, terreno e duro como a pedra e os dias. É um homem do ontem, do agora e do futuro, revivendo com amor e macia mão ternural a história dos filhos do Sol. Com esperança e brilho.

Nestas qualidades repousa essencialmente sua grandeza emocional, quando abraça com fervor os velhos fantasmas da infância, os bois, os jumentos, os gatos, os cachorros, a mata passarinheira, o rude cinturão das estradas com suas fivelas-cancelas rangedoras e toscas, o microcosmos do oeste cearense, que carrega por outros mundos e guarda no santuário da alma com devoção perene e vela acesa.

Conheci-o de perto - somos primos - na casa do padre Leitão, personagem de um dos poemas deste livro (Padre-Mestre). Assustou Nova Russas com sua inteligência largamente alardeada pelo padre, e pelo comportamento inusitado de matuto presepeiro e misterioso.

Mandigüeiro do surreal, agente metafísico, adquiriu nas fontes do conhecimento natural, o sertão, a arte de curar bicheiras e capar bichos, pasmem, NO RASTRO! Em Nova Russas dispôs-se a exercitar tais dotes de capador e, à falta de bodes e carneiros, anunciou que caparia alguns meninos, pondo em medo pânico todos os colegas. Alguns, sobre cujas passadas executou o sinistro ritual, até hoje se queixam de problemas no cumprimento das funções maritais e... culpam o Chico José!

Tomando contato com um livro de hipnotismo, evoluiu rápido para outras danações, ponto sob seu controle, entre outros, o amigo José Pires, que também morava na casa do Padre-Mestre.

Com gestos cabalísticos e severo comando, punha o Zépires a gargalhar à toa ou dançar freneticamente, num espetáculo que além de divertir muito o tornava temido e admirado no colégio: muitos tinham medo de ser a próxima vítima do feiticeiro adolescente.

Pois Chico José reedita agora, na poesia, com grande estilo, aqueles dons do feiticeiro adolescente: ele enfeitiça as palavras, tece e coze sentimentos, e, qualidade maior, sabe retirar do vazio como é aquela notícia de jornal sobre as raposas doentes e famintas - uma prosaica e inocente nota de saúde pública - e assentou sobre tão insignificante material, uma verdadeira catedral, um templo grego, gótico e moderno a um só tempo!

Leitor obsessivo de Kafka e de Shakespeare, é caboclo perfeito, com voz e passo, comedor de canjica e de rapadura, semeador de espantos, capaz de caminhar léguas sozinho pelas estradas ermas do interior com a desenvoltura de um romeiro. Quantas vezes ele partiu da fazenda Catuana, Santa Quitéria, CE, à margem do rio Macacos, (onde matou a cascavel gigante, do poema da Raposa), onde sua mãe construía um açude, para fazer as provas mensais no Ginásio de Nova Russas, percorrendo de noite, sozinho, quase 50 quilômetros. Saía à noitinha, livros no matulão - lençol enrolado em diagonal e carregado também em diagonal do ombro para o quadril oposto - e chegava ao clarear do dia, a tempo de ajudar a missa do tio Leitão.

Chico José está outra vez na estrada. Sabe que vai caminhar - longa é a viagem à Grécia - não escolhe lugares, mas os nomeia e canta os sentimentos com a força de um gigante. Atrás vem deixando uma renda tecida de grandes realizações telúricas: mergulhos nos riachos, filhos, cálculos fiscais, manhãs de perplexidade, aboios e canapuns.

Pela frente tem o horizonte perpétuo dos filhos de Orfeu, a delirante aventura da Poesia, Deusa e Vampira, cujo abraço é de ventura extrema e de eterna maldição.

 



Soares Feitosa, 2003
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