Luiz Ruffato
Nos subterrâneos da estéril e seca
Brasília, há rica e fértil vida literária
(O Globo - 08.03.2004)
Há vida inteligente em Brasília? Essa pergunta pode parecer, à
primeira vista, meramente provocativa. Mas, considerando tratar-se
de uma cidade planejada há pouco mais de 40 anos, ainda sem uma
tradição cultural consolidada, a indagação deixa de ser retórica.
Desde sua fundação, em 1960, o Distrito Federal recebeu levas e
levas de intelectuais de todas as partes do Brasil para compor os
quadros de uma burocracia essencial que moveria as rodas do processo
decisório nacional. Vista desde sempre como desumana e estéril (ou
esterilizante), Brasília passou a sinônimo de terra inculta à
semente do embate de idéias.
Com o passar do tempo, essa imagem vai dando lugar a outras maneiras
de se aproximar da “realidade” da capital brasileira. Hoje, sem
dúvida, Brasília não pode ser encarada mais como uma cidade
desinteressantemente homogênea, apática, triste, solitária,
preguiçosa, rasa. Os problemas inerentes a qualquer grande centro
urbano passaram a perturbar os brasilienses: violência, favelas,
drogas, ocupações irregulares... Desde a década de 80, por exemplo,
o Distrito Federal conheceu a explosão das mais criativas bandas
brasileiras, tendo à frente um dos últimos exemplares de letrista
criativo da música popular, Renato Russo, e sua Legião Urbana, cuja
originalidade consistia exatamente em mostrar essa outra cidade.
No âmbito estrito da literatura, Brasília teve dois grandes
momentos. O primeiro, quando o poeta Nicolas Behr, ainda na década
de 70, com seus livros alternativos (quem não se lembra de títulos
como “Chá com porrada” e “Iogurte com farinha”, ou de versos como
“ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama/ de Nicolar Behr”?)
chegou a ser preso e processado, demonstrando, na prática, o poder
subversivo da poesia, a força inaudita da palavra.
O outro momento, agora em pleno século XXI, tem o nome de Regina
Dalcastagnè, professora da UnB que coordena o mais importante núcleo
de estudos de literatura brasileira contemporânea do Brasil. As duas
pontas: a criação, a reflexão... Há que se destacar ainda dois
nomes: Ronaldo Cagiano e Joanyr de Oliveira, ambos mineiros. Este,
poeta e crítico literário, sempre preocupado em enfeixar em livro a
produção da poesia brasiliense, desde o primeiro, “Poetas de
Brasília”, de 1962, até “Poesia de Brasília”, de 1998. Aquele,
contista e poeta, também atento às coisas de sua cidade de adoção.
Pois bem, coincidentemente, ambos lançaram recentes antologias
preciosas para quem quiser deixar os estereótipos de lado e espiar o
que está acontecendo em Brasília, para além do que sai no noticiário
dos jornais.
“Poemas para Brasília” (Brasília, Projecto Editorial/Livraria
Suspensa, 2004), organizados por Joanyr de Oliveira, é uma antologia
de poetas que escreveram sobre o Distrito Federal. E aqui, temos
desde um Bernardo Guimarães, romancista e poeta romântico mineiro
(1825-1884), autor de um poema intitulado “O Ermo”, premonitório do
nascimento da capital brasileira, até Paulo Porto, único nascido na
Capital Federal. Talvez até mesmo para mostrar a variedade de poetas
que se serviram de Brasília como ponto de partida para suas obras,
temos, na antologia, um autor búlgaro (Rumen Stoyanov) e outros 68
de diversos estados do Brasil: Distrito Federal, Alagoas, Amazonas,
Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Goiás, Ceará, São
Paulo, Rio e Minas Gerais.
Aqui, deparamos com interessantes obras dedicadas a Brasília, saídas
das penas de Affonso Romano de Sant'Anna, Alphonsus de Guimaraens
Filho, Bernardo Guimarães, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano
Ricardo, Cyro dos Anjos, Guilherme de Almeida, Henriqueta Lisboa e
João Cabral de Melo Neto. Podemos citar outros, como Afonso Felix de
Souza, Anderson Braga Horta, Astrid Cabral, Cassiano Nunes, Domingos
Carvalho da Silva, Emanuel Medeiros Vieira, Ésio Macedo Ribeiro,
Fernando Marques, Fernando Mendes Vianna, Gilberto Mendonça Telles,
Homero Homem, Jamil Almansur Haddad, José Alcides Pinto, Moacyr
Félix, Ronaldo Cagiano, Stella Leonardos e o próprio antologista,
Joanyr de Oliveira. Curiosamente, sentimos falta de quem, talvez,
soube melhor mostrar as contradições da Capital Federal, o sempre
“marginal” Nicolas Behr.
Ronaldo Cagiano selecionou e organizou a “Antologia do Conto
Brasiliense”, reunindo 83 autores que, de uma maneira ou de outra,
tiveram ou têm alguma ligação com Brasília. Diferentemente da
antologia de poemas de Joanyr de Oliveira, que tem a cidade como
tema, o livro de Cagiano privilegiou o fato de o autor ter morado em
Brasília em algum momento de sua vida, o que acabou, talvez sem que
o antologista precisasse, extrapolando sua idéia inicial. Isso
porque, no livro, tomamos (ou retomamos) contato com bons autores há
muito longe dos holofotes. Assim, reconhecemos, ao lado dos
consagrados Bernardo Élis, Cyro dos Anjos, Dinah Silveira de
Queiroz, Luiz Vilela e Samuel Rawet, a necessidade de rever a obra
de autores como Alaor Barbosa, Alciene Ribeiro Leite, Almeida
Fischer, Drummond Amorim, Emanuel Medeiros Vieira, Jair Vitória,
José Edson Gomes, Lourenço Cazarré e Nilto Maciel, e de atentar para
outros que estão começando: Fernando Marques, Rosângela Vieira
Rocha, Stella Maris Rezende e Whisner Fraga.
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