Luiz Ruffato
Bonassi e a dimensão política da
escrita
(in O Globo, PROSA & VERSO)
Rio, 21 de abril de 2006
Subúrbio, de Fernando Bonassi. Editora Objetiva, 296 pgs. R$ 39,90
Hoje, Fernando Bonassi é conhecido por seu trabalho em múltiplas
áreas da criação: literatura, crônica jornalística, cinema, teatro,
TV. Formado em cinema, o escritor, nascido na Mooca, tradicional
bairro operário paulistano, em 1962, é um raro caso de ascensão
social pelo talento — coisa que no Brasil parece reservada a
jogadores de futebol. Filho da classe média baixa, surgiu no
panorama literário brasileiro no fim dos anos 80, com a introdução
de uma temática pouco retratada nas páginas da prosa de ficção
nacional: a dos que sobrevivem à margem — não os bandidos, mas os
trabalhadores, essa massa disforme imprensada entre sonhos de
consumo e pesadelos da realidade imediata.
Geralmente rotulado como pertencente à chamada Geração 90, Bonassi
antecipa e ultrapassa as preocupações que norteiam autores
identificados a essa particularização. Na estréia em 1989, com a
coletânea de contos “O amor em chamas”, já capta com impressionante
lucidez a violência que se incorporava ao cotidiano e que iria se
tornar um componente endêmico da sociedade brasileira. E é a
tentativa de compreensão da banalização do mal que persegue o autor.
Foi assim com “Um céu de estrelas”, romance de 1991, com “Crimes
conjugais” e “Subúrbio”, ambos de 1994, com “O céu e o fundo do
mar”, de 1999. E tem sido assim, pois Bonassi publica com
regularidade, sempre tendo como horizonte de discussão o mesmo tema.
Mas voltemos à sua produção nos anos 90. Não é gratuito que Bonassi
feche este primeiro ciclo com “O céu e o fundo do mar”, romance que
convida à reflexão sobre os danos provocados pela ditadura — no
plano psicológico e nos desdobramentos sócio-econômicos. Isso talvez
o diferencie de sua geração: Bonassi sabe que para além da falência
dos tempos que correm, pagamos o preço da alienação e da repressão
impostas pela elite que buscou perpetuar-se no poder. Então, o
escritor não se limita a descrever o cotidiano, mas, dando voz e
dignidade a seus personagens, provoca-nos a reflexão necessária à
transcendência, real sentido da Arte.
O leitor pode conferir o senso de pioneirismo — antecipação e
ultrapassagem — de Bonassi no relançamento de “Subúrbio”, fora de
catálogo há quase uma década. Escrito em 1991, publicado em 1994, o
romance revela-se mais do que nunca atual. História de personagens
sem nome, sem passado e futuro — o “velho” e a “velha” —, moradores
de um subúrbio industrial à margem esquerda do Rio Tamanduateí,
entre a Vila Prudente e Vila Zelina, por um lado, e São Caetano do
Sul, por outro, seus vizinhos, conhecidos e estranhos. Nessa ficção
de gente miúda e despida de atrativos, a força de Bonassi se revela
— não há lugar para manipulações maniqueístas, nem estereótipos,
apenas a tentativa desesperada de sobreviver em mundo hostil e
desintegrador de subjetividades.
Sem dúvida, Bonassi opta por um diálogo com a geração 70, que, com
nomes como Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Rubem Fonseca,
trouxe para o centro da narrativa os dramas das populações
marginalizadas das grandes cidades. Mas há sua contribuição
original: já não é um olhar de fora para dentro, mas de dentro para
fora. Essa mudança de foco, que iria influenciar a ficção do fim da
década de 90, é uma contribuição inestimável. Além disso, Bonassi
recebe como herança o destemor em relação à ousadia formal, tão cara
a seus predecessores, característica que infelizmente se ausenta dos
contemporâneos.
Ademais, o escritor possui estilo próprio, reconhecível. Em
“Subúrbio” nos deparamos com sua escrita econômica, de frases curtas
e contundentes; com sua estranha, mas funcional, mistura de crueza e
lirismo; e sua capacidade de insuflar a dimensão política da
literatura, a função crítica do escritor, engajado na vida e nela
imerso. Por tudo isso, e muito mais, Bonassi transformou-se em
referência para tentarmos entender o Brasil contemporâneo.
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