Fernando Bonassi
21.07.2001
"MELOPÉIA"
Álbum traz 23 sonetos do poeta interpretados por convidados que
vão de Itamar Assumpção a Inocentes
Glauco Mattoso une música à inteligência
FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA
Os poetas frequentemente testemunham os esgares dos editores diante
de seus originais. A explicação desses espasmos hepáticos costuma
ser circunstanciada por nossos "publicadores" na forma daquele
anúncio de biscoito: "não edito poesia porque não vende", enquanto
os escritores fazem o coro da outra parte do roteiro, qual seja:
"não vende porque não se edita". Quem terá razão? Razão tem a ver
com essas coisas? Vai saber...
Por outro lado, poucas culturas apresentam tanta diversidade musical
quanto a nossa, e, aí, a poesia é sim muito bem-vinda e valorizada.
Aliás, talvez não exista outra tradição tão sólida em nosso país
como o casamento da palavra com a música.
O quilate das criações de Donga, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues,
Cartola, Nelson Cavaquinho (para ficar apenas entre alguns exemplos
de nossos sofisticadíssimos pré-beatniks) fez da língua cantada
brasileira uma experiência artística única, profunda e
verdadeiramente formadora daquilo que (se de fato tivermos...)
poderia ser chamado "nossa alma".
Que o lugar de atração da poesia no Brasil, pelo menos em termos de
grande público, é a música, resta pouca dúvida. Porém, levando em
conta o tamanho da indústria cultural em questão, não é muito comum
vermos poetas do texto transitarem para o disco. Para cada Paulo
Leminski, Antonio Cícero ou Arnaldo Antunes, há inúmeros escritores
produzindo versos ainda divorciados de suas possibilidades
cancioneiras. Tudo isso é escolha de quem escreve, de quem compõe e
de quem torna o resultado público, claro, mas a permeabilidade entre
as duas áreas parece sempre ficar aquém das nossas potencialidades
expressivas.
É uma pena para os nossos espíritos... Mas parte desse déficit está
sendo sanado neste momento. O melhor seria dizer insana e
deliciosamente sanado. Um encontro explícito entre a poesia e a
música está à disposição dos ouvidos antenados: trata-se do CD
"Melopéia", de Glauco Mattoso.
Glauco -que é um desses "penetrantes" transitando por diversas
áreas, com o nome sempre associado a canções e à própria história da
MPB- produziu 23 sonetos, interpretados pelas mais variadas
vozes/arranjos da música brasileira, de Itamar Assumpção a
Inocentes, passando por Humberto Gessinger, Falcão e Arnaldo
Antunes.
O espectro de sonoridades é amplo e o mesmo acontece com o alcance
dos textos. Se a palavra soneto faz você lembrar de alienadas
velharias parnasianas, "Melopéia" pode ser uma revelação.
Despudor, sarcasmo e, o mais importante, culhões de observar e
sublinhar o país que nos tornamos, com suas xoxotas embaladas a
vácuo, fuzis de repetição e políticas de interesses escusos. O
Brasil que Glauco passa a limpo é escatológico, injusto, perverso e
autodestrutivo. Nada mais verdadeiro, para quem mantém um índice
mínimo de abertura de olhos.
Numa tradição de gênios, mas que também comporta muito lixo,
"Melopéia" representa a unção da inteligência crítica, senso de
humor e suingue. Uma porrada adorável.
Melhor que isso, só mais disso.
Melopéia
Artista: sonetos de Glauco Mattoso interpretados por diversos
convidados
Lançamento: Rotten Records (tel. (11) 6115-7511)
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