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Lau Siqueira


 


José Geraldo Neres e a poesia muito além da palavra


 

 

Há poetas que extrapolam os vôos e pousos da linguagem, somando à sua circunstância o compromisso de escancarar a difusão da poesia enquanto instrumento e arte. J. G. Neres é assim: um pastor que conhece os caminhos por onde conduz seus rebanhos; um guerrilheiro da “causa poética”. E qual é a “causa poética” se não emboscar sem tréguas a aventura do verso? Até sua diluição no cotidiano onde essa dualidade novamente assume identidade única: vida e arte em inseparável prumo.

Essa emboscada, em poetas como J. G. Neres, se dá tanto no trabalho com a palavra quanto no poema como veículo de si mesmo. Eis-nos, então, diante de um manjar. Como essa Ambrósia, poema-título desta obra bilíngüe que, em espanhol soa assim

con trajes estelares
dragones en la cintura
anhelo el dueto del rocío
flama
en el peregrino dorso
refugio de las lágrimas cristales

nutrir
días pasados
fragmentando
las fases de la luna

blanco - amanecer
pájaros
traducen en cánticos
el supremo éxtasis

 

Nosso poeta é dos mais difundidos pelas teias literárias da Rede Mundial de Computadores. A doce, podre e instigante web. É dos nomes da Nova Literatura Brasileira que já desponta com destaque em veículos importantes, como a revista Cult, uma das raras publicações culturais que tem circulação comercial auto-sustentável. Portanto, não se trata de uma poesia que pede passagem. Estamos diante de uma realidade composta de poesia e vida. Uma nau de palavras e gestos que se esbaldam pela imensidão branca da folha, ou da telinha semi-retangular do monitor. José Geraldo Neres é um autor que possui a dimensão poética da existência. Mesmo que nunca tivesse escrito um verso, ainda seria assim seria poeta. É um perquiridor do infinito. Trata a palavra com a necessária evocação da essência. Minimalista, busca sempre o átomo do verso. Artesão cuidadoso, lima as madeiras grossas do poema, torneando-as com a coragem de quem acaricia. Como no poema cantata, onde trabalha com uma economia rigorosa de vocábulos, vejamos:

cativos
em sonhos verdes
amaru e sade
em versos

cálix corpo
cálido convexo

guirlanda mítica
cantiga tênue
volúpia
madrugada

nua

 

Estive lendo, recentemente, um ensaio de Leyla Perrone Moisés. A autora abre com um trecho de Roger Caillois, referindo-se à autocrítica de Lautremont: “Eis uma obra que contém o seu comentário. Por isso é bastante incômodo falar a seu respeito. Tudo o que se poderia dizer de mais exato, o autor já disse, e na própria obra. Em vão se desejaria acrescentar algo às suas fórmulas, em vão se pretenderia corrigir seus julgamentos”.

A leitura dos originais de Ambrosia me remeteu a reflexão de Caillois. Aliás, tenho a impressão mesmo que um trabalho poético diz mais de si mesmo que qualquer artigo, resenha ou ensaio. Por isso pratico o exercício inútil de tentar desvendar um processo que é, antes de tudo, a revelação do autor sobre sua experiência estética e amorosa com a vida. Poemas que sopram nos olhos do leitor as limalhas do seu invisível aço. Este é José Geraldo Neres, poeta atento ao futuro. Poeta-cidadão esticado nas corredeiras dos impérios pós-modernos. “É madeira que cupim não rói”, diria Capiba. Sobretudo porque aglutina dentro de si uma multidão de iguais, pessoas, bichos e coisas que de passagem pelo mundo, tem o prazer de encontrá-lo nesta “dança com lobos” que é o nosso tempo.

* Lau Siqueira é poeta. Autor de “O Comício das Veias”, “O Guardador de Sorrisos”, “Sem Meias Palavras” e “Texto Sentido” (ainda inédito). Tem poemas publicados no Livro da Tribo (Ed. Tribo-SP) e na antologia “Na virada do século – poesia de invenção no Brasil” (Ed. Landy-SP)
 



José Geraldo Neres
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10/11/2005