revista de poesia nº 1 - março de 2004 ensaio |
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Não se trata de
ser ou não ser, Murilo Mendes, Poesia
Liberdade Decorria
já o ano de 1972 quando Benedito Nunes resumiu finalmente em breves e
decisivas palavras a verdadeira dimensão do carácter representativo e convergente da obra poética de Murilo Mendes (Juiz de
Fora, Brasil, 1901-Lisboa, Portugal, 1975) no contexto da poesia
brasileira do século XX. Ao apresentar o livro de Laís Corrêa de Araújo
dedicado ao poeta mineiro mais universal do Brasil, o ensaísta
perspectivou a generalidade da sua obra para acentuar categoricamente que
o «decurso entre a publicação do primeiro livro, ainda quente da
rebeldia instaurada pela Semana de Arte Moderna de 1922, e o livro mais
recente, sintonizado pela radicalidade da linguagem com os processos
inventivos de vanguarda, faz de sua obra, nos vários lances que a definem,
um verdadeiro perfil da evolução operada na própria poesia brasileira
de todo um longo e vigoroso período»[1]. O crítico tomava então como limites o primeiro e o último
livros de poesia publicados em vida por Murilo Mendes - Poemas, de 1930 e
Convergência, de 1970[2] -, para reequacionar em definitivo o
sempre invocado carácter metamórfico
da sua obra, durante décadas objecto de mal-entendidos e de críticas
menos iluminadas. Pela voz de Benedito Nunes, portanto, a obra de Murilo
Mendes era colocada no seu devido lugar, pois o poeta do movimento e da
transformação incessantes, da diversidade, da irregularidade e da
desconformidade, construiu em boa verdade uma espécie de mise-en-abîme
da poesia brasileira do século XX, o que faz com que através da sua obra
se possa apreciar as várias inflexões que a própria história literária
do país experimentou, desde o Modernismo de 22 ao Concretismo das décadas
de 50-60. Meio século de poesia brasileira, já que as composições que
integram Poemas foram escritas a partir de 1925, e visto que só no ano da
sua morte o poeta deixaria de produzir, como se pode verificar na edição
da Poesia Completa e Prosa organizada por Luciana Stegagno Picchio e acessível
desde 1994, onde se encontram inúmeros textos até então inéditos[3]. Ressalve-se porém que a plurivalência poética de
Murilo o fez incorporar as várias correntes com que privou - mesmo quando
ausente do Brasil -, sem que alguma vez tenha perdido ou ignorado a marca de originalidade que sempre o definiu, o carácter específico
e imanente da sua obra, que Manuel Bandeira havia exprimido ao descrevê-lo
como «um dos quatro ou cinco bichos-de-seda da nossa poesia, isto é, os
que tiram tudo de si mesmos»[4]. Murilo Mendes preferiu seguir a via da modernidade em que o
novo nos seduz não por novo mas por distinto. Poeta de vanguarda na justa
medida em que, de acordo com a síntese de Octavio Paz, a vanguarda implica
«uma intensificação da estética da mudança» em que «as mudanças
estéticas deixam de coincidir com o passo das gerações e ocorrem dentro
da vida de um artista»[5], Murilo praticou um desdobramento sucessivo cujo
verdadeiro significado resumiria no célebre lema estampado à entrada da
sua obra reunida em 1959: «Não sou meu sobrevivente,
mas sim meu contemporâneo»[6]. À imagem e semelhança de Deus ou do barroco Proteu, o poeta visou apresentar‑se como «o Ser infinitamente
variado na sua unidade, capaz de todas as metamorfoses, […] único actor
que não repete diariamente seus papéis», como declararia ainda nas
anotações em prosa de A Idade do Serrote (p. 974). A textura poliédrica
e proteiforme da sua obra derivou assim de uma heterogénese de cariz
tanto histórico quanto tipológico,
notória na assunção tardia de que a sua poesia é «work in progress»
ou «opera aperta», como se pode ler ainda em Convergência (p.
662), no que poderia constituir uma reformulação da conhecida súmula de
Siciliana (1959), «Transformar‑se ou não, eis o problema» (p.
567), ou dos versos cruciais de Tempo Espanhol (1959): «Eu sou o não-figurativo,
o não‑nomeado, / O não‑inaugurado, o que sempre se perfaz»
(p. 584). E no princípio era
Rimbaud e Mallarmé: ao assumir desde cedo uma dupla filiação e uma
admiração repartida pelas obras dos dois poetas franceses, Murilo Mendes
exibiu de imediato uma síntese dialéctica, contrapontística como se
adequava às suas preferências musicais dodecafónicas, das duas grandes
linhas da modernidade inauguradas na literatura do século XIX - e um lado
o Rimbaud da poesia alógica e de forma livre, do outro o Mallarmé da
poesia do intelecto e de forma rigorosa. O sensorial e o intelectual,
o concreto e o abstracto, a imagem e a ideia, o subconsciente e o
sobreconsciente articularam-se assim desde logo na estrutura profunda da
obra muriliana, pelo que a antinomia entre a fête de l’intellect valériana
e a faillite ou débacle de l’intellect de Breton e de Éluard, que Hugo
Friedrich identificou como uma das grandes antíteses da poesia moderna,
ou a distinção feita por Marcel Raymond entre artistas e videntes,
perderam nesta obra a razão de ser, graças a uma convergência essencial
que lhe conferiu uma coerência criativa iniludível. Compreende-se
assim neste contexto que o facto de a crítica ter insistentemente
chamado a atenção para a heterogeneidade como traço que descreve a
matriz evolutiva do discurso poético de Murilo Mendes se deva a um olhar
estritamente histórico-literário sobre a sua obra, que sempre preferiu
ignorar a poética específica e explícita do escritor. A história da
literatura brasileira diz-nos que a colectânea Poemas nasceu numa
conjuntura modernista. E no entanto a inclusão do nome de Murilo Mendes
no grupo de autores brasileiros que ficaram reunidos sob a etiqueta
modernista não é nem foi nunca linear ou pacífica, o que se conclui
facilmente da existência de três atitudes críticas
diferentes perante a atribuição do rótulo ao autor de Poesia Liberdade.
A primeira, e a mais unânime, proclamou a sua pertença incontestável ao
movimento que se iniciou no Brasil com a Semana de Arte Moderna, em 1922,
e foi protagonizada por críticos como Adolfo Casais Monteiro, Dámaso
Alonso e José Guilherme Merquior, tendo o primeiro colocado
Murilo ao lado de Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida, Cassiano
Ricardo, Ronald de Carvalho e Mário de Andrade, Jorge de Lima e Drummond,
considerando-os a todos agentes do movimento modernista, para sublinhar o
papel de representatividade em relação ao movimento que desempenharam quer Murilo quer Jorge de Lima, enquanto Merquior anunciava com
entusiasmo que ao passo que «os Rômulo e Remo da Roma modernista, Mário
e Oswald, chegaram - como Bandeira - ao estilo avant-garde»,
Drummond e Murilo «já nasceram
modernistas»[7]. A
segunda atitude, visível nos discursos críticos de Laís
Corrêa de Araújo ou de Júlio Castañon Guimarães, também
bastante difundida e complementar da primeira, tendeu a relativizar a
integração de Murilo Mendes num Modernismo de grupo, mediante a ênfase no
seu papel original e único no âmbito do movimento[8]. Por fim, a terceira
atitude, encabeçada por estudiosos como Antônio Soares Amora ou Gilberto
Mendonça Teles, insistiu sempre na
recusa integral em incluir Murilo no grupo dos vanguardistas de 22[9]. É sabido que durante a Semana de Arte Moderna Murilo Mendes se manteve
intencionalmente afastado dos acontecimentos, não tendo tido qualquer
tipo de participação activa no movimento que então nascia, como ele próprio
fez questão de frisar: «Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com
simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive
instinto gregário, o que sempre me impediu de fazer parte de qualquer
grupo»[10]. É claro que este desvio
do espírito de grupo o impedia à partida de se alinhar numa revolução
estética que, como qualquer acto vanguardista, se sediava por defeito
numa acção conjunta de natureza polémica e eliminatória. Apesar do
distanciamento assumido, o poeta publicou os seus primeiros textos nas
principais revistas do Modernismo, como a Revista de Antropofagia, Verde,
Terra Rôxa, Festa ou Lanterna Verde[11] e aderiu, ainda que não
estruturalmente, no dealbar da década seguinte - com Poemas, de 1930, Bumba-meu-Poeta,
de 1931, e História do Brasil, de 1932 -, a algumas das linhas mais
provocatórias, sobretudo a um certo nacionalismo
e à utilização do humor e da paródia na elaboração do
discurso poético. O lado efémero deste método de abordagem na sua
poesia foi porém desde logo flagrante no facto de ter excluído História
do Brasil, anos mais tarde, da edição das suas obras, mesmo perante os
protestos de Carlos Drummond de Andrade, ainda que tenha sido justamente
pela via do humor e da paródia que Murilo se integrou nessa fase histórica
do Modernismo. Bastará ter-se em conta que Poemas abre com uma paródia
da incontornável «Canção do Exílio» do romântico Gonçalves Dias,
na linha do que fizeram Oswald de Andrade, com «Canto do Regresso à Pátria»,
Cassiano Ricardo, com «Ainda Irei a Portugal», e o próprio Drummond,
com os poemas «Europa, França e Bahia» e «Nova Canção do Exílio».
A essa paródia de Poemas poderia juntar-se ainda um inédito incluído no
conjunto de originais do poeta guardados por Mário de Andrade, intitulado
«Teus 18 anos de Exílio»[12]. Foi neste contexto que
Abgar Renault considerou História
do Brasil, não uma vénia de Murilo Mendes
ao veio nacionalista do Modernismo brasileiro, mas uma ridicularização
dessa atitude, num posicionamento exterior e não interior ao movimento.
Segundo Renault, «a sua contribuição ao movimento modernista foi das
mais poderosas», pois apesar «de haver surgido já quando o Modernismo
finalizava a sua luta de destruição, Murilo Mendes não deixou de
satirizar, no seu ‘História do Brasil’, o toque nacionalista com que
o Modernismo se inaugurara e substituira o helenismo parnasiano por
motivos nacionais, tão falsos, a nosso ver, como os reflexos da Grécia»[13]. E de facto o que Murilo Mendes foi beber de essencial ao Modernismo de 22
situava-se nos antípodas desse ufanismo que foi doença geracional: em
rigor, interessavam-lhe dois princípios relativos ao acto de criação
artística, os princípios da liberdade e da universalidade. Para lá da
dedicação transitória às inclinações mais provocatórias do
movimento, que por isso mesmo desapareceram nas obras subsequentes, o
poeta enraizou na arquitextura da sua obra o que nas conferências de Graça
Aranha representava o diálogo com o espiritonovismo de Apollinaire, ou
seja, o engrandecimento da liberdade na literatura e a proclamação da
universalidade da arte[14]. São estes dois alicerces
estéticos que compõem desde o início o tecido imanente da sua escrita: «A poesia confere a investidura na universalidade»,
afirmaria nessa longa arte poética que é O Discípulo de Emaús (p.
833). Esta postura anti-provinciana
e altamente cosmopolita não pode surpreender na obra de um poeta que se
estreou em livro no ano de 1930. Apesar da perda que constituiu a morte de D. H. Lawrence, o ano em que se
iniciou a segunda fase do Modernismo no Brasil, com a publicação das
primeiras obras de Murilo Mendes e de Carlos Drummond de Andrade, foi o
ano em que se editou Ash-Wednesday de T. S. Eliot, As I Lay Dying de
William Faulkner, The Bridge de Hart Crane, e The 42nd Parallel
de John dos Passos e em que apareceram no cinema L’Age d’Or de Buñuel
e Le Rang d’un Poète de Cocteau. Isto significa, desde logo, que o
primeiro livro de poesia de Murilo Mendes surgiu numa fase de consolidação
e maturidade dos triunfos dos primeiros modernistas, não só à escala
brasileira, mas mundial. E é na justa medida em que revela esta
mesma maturidade estética que o livro se aproxima, antes de mais, do
Modernismo na sua vertente anglo-americana, em particular de dois
poetas que Murilo sempre admirou, Ezra Pound e T. S. Eliot. A grande afinidade entre o autor de O Visionário e estes dois nomes
centrais e decisivos da literatura do século XX relaciona-se menos com o Imagismo a que Pound deu o nome e com a
despersonalização configurada na teoria do correlativo objectivo
formulada por Eliot no famoso ensaio sobre o Hamlet de Shakespeare,
do que com uma questão crucial que atravessa a poesia de ambos: a
polifonia entendida como confluência de toda a tradição literária no
espaço poemático. Murilo di-lo claramente: «Em minha poesia procurei
criar regras e leis próprias, um ritmo pessoal, operando desvios de ângulos,
mas sem perder de vista a tradição». Não por acaso Affonso Ávila notou que a tradição
repensada é definidora nota fundamental do Modernismo em Minas,
ressaltando que não se tratou de «romper
com todo o passado intelectual da região, mas, ao contrário, de valorizá-lo
de forma crítica»[15]. No caso de Murilo Mendes, mineiro
universal, esta reflexão alarga-se para
lá dos limites do passado intelectual da região, já que tal tradição
repensada é o próprio fundamento do vínculo do poeta ao cânone artístico.
E foi a partir desta óptica que Murilo criticou os modernistas
brasileiros mais radicais, uma vez que, segundo ele, «acreditaram que se podia fazer
uma ruptura completa com a tradição, com a cultura clássica e com os
valores eternos»[16]. Para o autor de Tempo e Eternidade, a tradição implica
sempre a absorção do Outro, é o mais literal de todos os actos de
antropofagia. Esta atitude declarada de integração num sistema
constituído por escritores e obras do passado afastou-o desde logo de uma
das tendências fundamentais do Modernismo brasileiro de 22, na sua
vertente mais revolucionária: a recusa do passado e dos seus «malditos
mestres», apregoada violentamente por Menotti del Picchia nos dias de
Fevereiro de 1922 em que se realizou a Semana de Arte Moderna, e por Mário
de Andrade nos seus primeiros manifestos[17]. Mário da Silva Brito sintetizaria esta atitude, anos
mais tarde, ao afirmar que os modernistas «não têm mestres no Brasil»,
«ou porque estão mortos ou porque, mesmo vivos, são como praticamente
inexistentes para eles»[18]. Murilo Mendes afastou-se, assim, de tudo aquilo que no
Modernismo brasileiro de 22 era Futurismo importado da Europa, como ele próprio
confessou a Carlos Drummond de Andrade: «Mesmo porque nunca comunguei com
certas idéias do Graça - perpétua
alegria, entusiasmo pela máquina, América do Norte, etc»[19]. Há portanto um vector anti-tradicionalista de índole destrutiva, lema
manifesto das vanguardas modernistas do início do século XX, assente na
antinomia maniqueista passado-futuro - que se acentuou no caso concreto do
Modernismo brasileiro pelo facto de, como frisou Gilberto Mendonça Teles,
o Futurismo ter sido «o grande modelo inicial» do movimento -, a que
Murilo não pôde aderir, e que por conseguinte rejeitou liminarmente[20]. Não sendo por certo um modernista brasileiro no que
esse Modernismo teve de radical combate vanguardista,
Murilo Mendes filiou‑se antes num propósito construtivo do momento
literário em que viveu - como
sublinhou João Gaspar Simões, foi, ao lado de João Cabral de Melo Neto
e, acrescente-se, dos modernistas anglo-americanos, um clássico do
Modernismo[21]. No mapa tipológico
da obra do clássico Murilo Mendes há um formante nuclear de estirpe
barroca ou maneirista que regulou o impulso de transformação permanente
e que foi crucial para a fundação de uma lógica dialéctica que sempre
visou anular distinções dualistas de qualquer espécie, a fim de
instituir uma realidade poética cimentada na coabitação dos opostos.
Por isso não é de espantar que tenha sido justamente a partir do
contacto aprofundado com os artistas barrocos do século XVII, sobretudo
no campo da pintura, que o poeta tenha acedido a um universo em constante
expansão que desde muito cedo designou como surrealista. Apesar de na sua
poesia o Surrealismo não ser uma moda
histórica a que tenha aderido por razões circunstanciais, mas sim o lugar onde se cruzam uma série de
vectores permanentes, trans-temporais,
que formam a estrutura profunda da sua poética, a verdade é que
em termos históricos, ultrapassados os tributos iniciais e necessários
ao Modernismo, livros como O Visionário,
Os quatro Elementos, As Metamorfoses, Mundo Enigma ou Poesia Liberdade,
produzidos ao longo da década
de 30 e nos primeiros anos da década de 40, exibem uma clara atracção
pelo universo insólito surrealista bebido na fonte de Rimbaud e de Lautréamont,
e responsável por uma poesia que modela a língua por dentro e que
intersecciona tempos e espaços distintos através da energia conjuntiva
da imagem[22]. As primeiras duas décadas de criação literária de
Murilo Mendes encontram-se repassadas
obsessivamente por um tropo dominante, a metáfora. Quer dizer: a heterogénese
da sua poesia gerou um percurso retórico de raiz dialéctica, polarizado
progressivamente em duas figuras - a metáfora, marcando o período de índole
surrealizante, e a paronomásia, que caracterizaria fundamentalmente os
textos compostos no final da década de 50
e ao longo da década de 60, reunidos em duas obras da máxima relevância,
Tempo Espanhol e Convergência. Mau-grado
a interminável polémica acerca do Surrealismo muriliano, foram vários os críticos a chamar a
atenção para a sua presença logo na obra de estreia, desde o pioneiro Mário de Andrade, que em 1931 aludia já, a propósito
de Poemas, ao «aproveitamento […] convincente da lição sobrerrealista»,
e apresentava Murilo como «uma das realizações mais poderosas do
anarcoerotismo surreal» e do «iconoclasmo surrealista». Décadas mais
tarde, num ensaio de 1965 consagrado à publicação de Tempo Espanhol em
Portugal, Óscar Lopes sublinhava que «o Surrealismo de Murilo Mendes, não
apenas se antecipa ao nosso de vinte anos, como nasce já brasileiro de
gema, com aquela naturalidade e largueza já proverbiais em ‘Mulher em
todos os tempos’ e ‘Jandira’ [de O Visionário, 1941]», Affonso
Romano de Sant’Anna ressaltaria que Bumba-meu-Poeta reafirmava «o
descentramento presente nas paródias do primeiro livro de Murilo (Poemas
- 1925‑1929) e no Surrealismo já
inaugurado aí mesmo antes de abrir-se em O Visionário», e José
Guilherme Merquior concluiria peremptoriamente que «o que Murilo
introduzia na literatura brasileira em 30 era a prática do Surrealismo»[23]. Ora, efectivamente, a amplitude de visão estética que
desde o início assinala esta obra foi de imediato manifesta na co-presença,
em Poemas, de rasgos especificamente modernistas e de certas opções retóricas
e poetológicas que pela mesma altura vigoravam já na Europa,
particularmente em França, no círculo de Breton. Murilo Mendes travou
conhecimento com as linhas basilares do
movimento surrealista francês bastante cedo, como relata em algumas páginas
das suas memórias, onde nos informa que já na década de 20
Ismael Nery, Mário Pedrosa, Aníbal Machado, ele próprio «e mais alguns
poucos» descobriam no Rio o Surrealismo, então verdadeiro «coup de
foudre». O amigo pintor havia-se deslocado à Europa duas vezes, «conhecendo
pessoalmente alguns membros do grupo, em Paris», e trazendo «abundante
documentação sobre o movimento, em especial sobre o De Chirico e Max
Ernst», «cujos nomes ainda estavam longe da irradiação atual». Desde
a primeira época de formação do Surrealismo, relatava ainda, Murilo
informou‑se «avidamente sobre essa técnica de vanguarda», a qual,
embora «não adotasse como sistema», o fascinava, compelindo‑o «à
criação de uma atmosfera insólita, e ao abandono de esquemas fáceis ou
previstos». E acrescentava: «Tratava‑se de um dever de cultura. O
Brasil, segundo Jorge de Sena, é surrealista de nascimento, de modo que a
minha ‘conversão’, ainda que parcial, àquele método, não foi difícil»
(pp. 1238 e 1270-1271). Não será assim de espantar que Poemas, publicado
no ano em que se editava em opúsculo o Segundo Manifesto do Surrealismo,
surgisse já com uma série de composições que o inseriam numa certa
linha do movimento, que teria plena afirmação a partir de O Visionário.
A «conversão
parcial» de Murilo Mendes ao Surrealismo passou, num plano imediato, pelo
enaltecimento da liberdade e pela recusa das limitações do homem. Em
1947, trazia a lume o volume Poesia Liberdade, onde se apropriava de uma
das palavras de ordem do discurso surrealista: «A simples palavra
liberdade é tudo o que me exalta ainda»,
confessava Breton no Manifesto Surrealista de 1924[24]. O livro-divisa de Murilo surgia, para além disso, num momento capital, pós-guerra,
em que ainda ecoavam os versos da liberdade de Paul Éluard[25]. Para o poeta brasileiro, a palavra de ordem tinha a
importância fundamental de transpor os limites políticos, sociais ou
ideológicos que naturalmente implicava, para
afirmar concomitantemente o lugar da poesia como o espaço ilimitado de
reacção contra a ideia de medida do homem. O reequacionamento da
condição humana, levado a cabo pelos poetas e pintores surrealistas
que admirava, permitia-lhe apreender o homem como totalidade: «tudo
deveria contribuir para uma visão fantástica do homem e suas
possibilidades extremas», rejubilava-se no retrato-relâmpago de André
Breton (pp. 1238‑1239). A sua poesia é a melhor testemunha
da adesão significativa ao que no Surrealismo constituiu a recusa dos
limites humanos e consequente exploração das zonas limítrofes do
homem, concentrada na sondagem do inconsciente. Os
topoi da alucinação, da loucura, da infância e do sonho encontram-se
difundidos por toda a obra, como garantias de uma liberdade absoluta que a
vida consciente não conhece. Murilo interessou‑se, de forma particular,
tal como os surrealistas numa primeira fase, pelo fascínio da imagem do
homem dormindo - pelo sono e pelo sonho. O que não o impediu, a
par de Jorge de Sena e com a aguda lucidez histórica que sempre o
acompanhou, de ter a noção clara de que a arte surrealista retomava
nesse âmbito um estímulo a que os românticos alemães e os simbolistas
franceses haviam já dado resposta no universo estético do século
anterior: no retrato-relâmpago de Magritte, Murilo lembraria que «certos
pintores - como também certos escritores - apesar de praticarem o culto
do sonho e do inconsciente, que muito antes de Freud os ligava aos românticos
(especialmente a Novalis, Achim von Arnim, Hoffmann e Nerval), não eram
de fato uns instintivos, mesmo porque percebiam nitidamente a polaridade
entre forças cerebrais e forças ancestrais» (p. 1255)[26]. A sua atracção pelo sono foi desde logo notória na
confessada curiosidade por Georg Christoph Lichtenberg, surrealista alemão
do século XVIII por quem Freud nutria grande respeito intelectual, e que
o próprio Breton havia editado em francês[27]. No retrato-relâmpago que lhe dedicou, Murilo sobrelevou
as palavras de Lichtenberg sobre a necessidade de analisar o homem não
desperto: «Toda a nossa história não é mais do que a história do
homem desperto: ninguém ainda pensou
na história do homem dormindo» (p. 1207). A atenção que consagrou
às experiências iniciais dos surrealistas torna-se flagrante na
generalidade da sua obra, até ao ponto da obsessão: «Que pena não
poder me ver - puro - dormindo» (p. 435); «uma das minhas manias era
querer ver o sono, o exato milésimo de segundo em que adormecia, o
traspasso da vigília ao sono, absurdo, sei, por isso mesmo fascinante,
que seria de nós, ahimé! sem o absurdo» (p. 925). Paralelamente, o esboço
de paisagens oníricas percorreu a poesia muriliana desde o primeiro livro, num vasto percurso por um espaço-tempo de
associações insólitas e de imagens
desprovidas de uma qualquer finalidade imediata. A omnipotência do sonho,
que Breton mencionava na definição de Surrealismo apresentada no
Manifesto de 1924, foi um dos motivos insistentemente cultivados
por Murilo, o que o levaria a produzir textos onde reconstituía a fusão
de planos e de perspectivas intrínseca ao espaço onírico e, in
extremis, a afirmar a autonomia do próprio sonho em relação ao homem,
numa muito particular encenação da morte do autor. Repare-se todavia que,
como notou com acuidade Alberto da Costa e Silva, Murilo Mendes «não
sonha; faz o sonho», já que, «racionalmente, com os recursos do abismo,
monta, andaime por andaime, - como se fora o primeiro De Chirico -, a
surpresa, a angústia, a espera, a aflição,
a realidade do sonho»[28]. Poemas exibia já uma série de
composições geradas nessa
atmosfera insólita construída, como era o caso de «Alegoria» (p. 109)[29], mas foi sobretudo a partir de O Visionário, e em alguns
textos em prosa, que se pôde encontrar essa ausência de dimensão de que
se alimenta o sonho, como nesta sequência de Conversa Portátil: «bombeiros
munidos de mangueiras, vestidos de macacões vermelhos, galgam escadas
enormes para apagar uma bomba atômica que explode às gargalhadas,
gritando-lhes: Idiotas! Não sabem que já morreram no dia em que eu nasci?»
(p. 1452). E seria ainda mais tarde, em As Metamorfoses, de 1944, que o
sonho virá a adquirir uma existência autónoma já prometida no poema «1500»
do volume História do Brasil, e condensada no título calderoniano de uma
composição suprimida da segunda edição de O Visionário, «O Sonho É
Vida», a que o poeta regressaria em Tempo Espanhol: «Eu sonharei a vida,
ou a vida me sonha? / […] // Calderón, ainda no contexto atual do século / la
vida es sueño» (pp. 596‑597). O valor que atinge para
Murilo o onirismo, onde muitos desvendam a sua mais representativa marca
surrealista[30], deve-se essencialmente ao modo como, nessa esfera, ao
criador é facultada toda a liberdade na arte. Daqui deriva a reflexão do
poeta, no retrato-relâmpago de Joan Miró, acerca das potencialidades
dessa outra realidade mais real, onde tudo é permitido, pois uma vez mais
o que está em causa é a recusa dos limites do mundo tal como são
apreendidos pela razão: «[Miró] Sabe que o mundo através de seus
sistemas gastos impede por exemplo o pássaro de telegrafar à pedra;
impede as estrelas de jogarem aos dados; a formiga de pedir a palavra; um
cachorro de puxar aquela moça por um cordel. […] transforma em
realidade a faixa onírica» (p. 1275). O que o encanta na surrealidade é
o facto de ser uma realidade absoluta, resultante da fusão do sonho e do
real, de acordo com a síntese de Breton, e de se situar num ponto de
perfeição onde a poesia respira. Grau zero da realidade, a surrealidade
é o lugar onde tudo surge originariamente, ilimitadamente, em perpétua
fusão. Por isso o despaisamento a que aludia Breton no texto dedicado à
obra de Max Ernst[31] é
integrado estruturalmente por Murilo Mendes, num vasto processo de desvelamento
de uma dimensão outra da realidade, onde tudo emerge destituído da sua
função no mundo da vigília, para que as fronteiras da própria
realidade se dilatem ad infinitum: «Dorme, dorme, visionário: / A
realidade cresceu» (p. 539).
Murilo Mendes nunca
defendeu que a surrealidade constituísse uma outra realidade, como
ressaltou no texto fundamental que é o retrato-relâmpago de André
Breton: o que verificava é que as conquistas do Surrealismo lhe permitiam edificar uma imagem diferente
da realidade, onde «o diamante dirige-se ao liceu dos pássaros
descalços que o destroem. Duas árvores com medo da polícia agacham‑se
atrás de um morto. Certas letras de imprensa censuradas batem à porta da
Inglaterra. Uma águia desvia um jovem avião de Elsinore para Cuba
enquanto eu assimétrico medito sobre Kierkegaard. Os tupamaros propõem
libertar o embaixador de saturno em troca de 10 quadros e 10 gravuras de
Perilli» (p. 1330). Excertos como este, do livro em prosa A Invenção do
Finito, elucidam não apenas o modo como Murilo produziu a surrealidade
que perseguia, mas também a incorporação que levou a cabo de uma série
de objectos próprios dos textos e quadros surrealistas, como é o caso do
diamante ou do pássaro. Veja-se ainda os manequins, por exemplo, desde o
primordial «manequim vermelho do espaço / que de noite eu levanto a mão
para tocar / chega perto de mim / tem um ritmo próprio / um andar quase
humano» de Poemas (pp. 109-110), a evocar o manequim feminino que
ornamentara o Bureau de Recherches Surréalistes, criado a 11 de Outubro
de 1924, ou muitas das telas de De Chirico. E prossiga‑se com as estátuas
do mesmo livro, com os pianos de As Metamorfoses, ou com as suas máquinas.
Alie-se a este cenário mecânico a figura altamente erotizada da mulher,
e aportar-se-á na riquíssima galeria de figuras surrealistas que
atravessam toda a obra de Murilo Mendes, desde o seu primeiro livro, o que
levou críticos como Júlio Castañon Guimarães a verem na presença
destes objectos uma das vertentes mais significativas do seu Surrealismo[32]. Um
dos grandes impulsos para este cenário surreal residiu, desde o início
da actividade criadora de Murilo, numa urgência compulsiva, de raiz
rimbaldiana, de transformar o mundo pela imaginação. O
que o atraía para essa ditadura do imaginário era a possibilidade que o
mundo criado lhe oferecia de fazer coexistir aquilo que, no mundo racional,
não lograva presença simultânea devido aos limites impostos pelo espaço
e pelo tempo. A imaginação permitia aproximar realidades distantes num
plano não pertinente, de acordo com a fórmula de Lautréamont, fundindo
totalmente os dados da realidade. Tal como a Breton, interessava-lhe
encontrar o ponto supremo de superação das antinomias, habitar o texto
poético como espaço e tempo onde os contrários deixassem de ser
apreendidos contraditoriamente, onde construção e destruição se
tornassem sinónimos, como resumiu no texto que consagrou a Marcel Duchamp
(p. 1271). Esta tensão adquiriu desde o início um carácter imanente,
assumido por ele próprio ao declarar expressivamente que tinha abraçado
o Surrealismo «à moda brasileira», tomando dele o que mais lhe
interessava: «além de muitos capítulos da cartilha inconformista, a
criação de uma atmosfera poética baseada na acoplagem de elementos díspares»
(p. 1238). Encontramos assim nos seus versos a imagem poética tal como os
surrealistas a definiram e defenderam pelas vozes de Reverdy, Aragon e
Breton - uma imagem geradora de traços de fogo, que funde realidades
distantes e contraditórias ao nível racional. A maioria das composições
murilianas, com destaque para o «Texto
sem Rumo» que abre o volume Conversa Portátil, de 1974, progridem, na
senda das composições surrealistas, como uma sequência de imagens
que desafiam o bom-senso, para utilizarmos a fórmula de Marcel Raymond[33]: «Uma égua admira enluvada os cabelos de coral de certa
maçã passeando. A violeta é uma dália que passeando no Vietnã
contraiu-se, mudou de côr e perdeu a voz. Entre o tinteiro e o esgoto
passa uma corrente subterrânea de entendimento tácito» (pp.
1451-1453)[34]. Acresce que o texto
que abre o volume de poemas de Murilo em francês, Papiers,
apresenta logo no primeiro verso uma imagem directamente bebida em Breton
e em Éluard: «Le soleil bleu se lève / derrière les derrières / des
femmes en éventail» (p. 1567)[35]. Foi
este culto da imagem que aproximou a sua poesia da pintura, desde Poemas, e em primeira instância dos processos de
montagem e colagem, como se pode verificar desde logo pela informação
paratextual de títulos como «Colagem para Drummond»,
«Colagens», «Jean Arp», e «Collage pour Arp» (pp. 712, 1020, 1526 e
1585). A vulgarizadíssima intersecção da arte verbal com as
artes plásticas torna-se
particularmente significativa quando se pensa no Surrealismo de Murilo
Mendes, já que o poeta conheceu o movimento não através da literatura
mas da pintura de De Chirico e de Max Ernst, que aliás incorporou
no seu livro de estreia, como confessou no retrato-relâmpago de Tarsila
do Amaral: «Telas como ‘Distância’, ‘A cuca’, ‘O sono’, ‘A
negra’ [de Tarsila do Amaral] viajarão clandestinamente ao longo dos meus Poemas,
alternando com outras de Max Ernst, do primeiro Cícero Dias e do primeiro
De Chirico» (p. 1250). O cruzamento da poesia muriliana com a pintura
surrealista teve o seu momento culminante na edição rara de um poema do
autor, vinda a lume em Paris em 1949, com ilustrações de Francis Picabia
(Janela do Caos, Paris, Imprimerie Union), o pintor dadaísta que
em Paris se associara, nos anos que imediatamente precederam a eclosão do
Surrealismo, a André Breton, Louis Aragon e Philipe Soupault na
divulgação da revista Littérature. Murilo pretendeu
representar na sua poesia o totalmente indizível, num trajecto
aprofundado de alargamento das fronteiras da própria linguagem. Este
investimento na elasticidade da língua não passou nunca, no
entanto, pelo culto do mecanismo fundamental de criação defendido pelos
surrealistas: a escrita automática, esse «modo de expressão pura» pelo
qual pretendiam exprimir «o funcionamento real do pensamento», «na ausência
de qualquer vigilância exercida pela razão, para além de qualquer
preocupação estética ou moral»[36]. Decerto com a estrelinha de Mallarmé a piscar no seu
horizonte, Murilo Mendes não
aderiu ao primeiro ponto da definição do Surrealismo proposta por Breton
em 1924, chegando mesmo a recusar categoricamente tal modo de criação:
«O surrealismo pressupõe um abandono total da razão e da vontade; o
pintor surrealista deveria ser um médium pintando quadros sem a menor
interferência do consciente, o que, na prática é impossível»[37]; «Claro que pude escapar da ortodoxia. Quem, de resto,
conseguiria ser surrealista em regime de full time? Nem o próprio Breton»
(p. 1238). Por isso se deveria falar, mais do que de Surrealismo, daquele
Surrealismo lúcido com que Luciana Stegagno Picchio caracterizou a obra
muriliana[38]. Nesta invulgar lucidez, onde José Paulo Paes divisou «um
encontro da lucidez construtiva do cubismo» com «a ilogicidade onírica
do surrealismo», cabem a recusa do acto de criação ditado pela inspiração
e a defesa do carácter trabalhado e artesanal da poesia[39]. Em suma, um abandono
vigiado que coloca Murilo Mendes no ponto hegeliano de superação dialéctica
das antinomias, para exibir um vidente que se assume como artista. Só assim se pode
compreender que na segunda metade da década de 40 Murilo Mendes tenha
escrito algumas obras onde é manifesta a sua adesão às tendências mais
marcantes do grupo de autores posteriormente reunidos sob o rótulo de
Geração de 45. Apesar das diferenças que os distinguiam, todos se
assemelhavam estruturalmente, como sublinhou Lêdo Ivo, «no tocante a uma
poesia voltada para a construção, a forma, a composição»[40], isto é, todos se homogeneizavam ao considerarem o poema
como um artefacto. Murilo juntava-se deste modo à linhagem da poesia
brasileira do século XX
cujos antepassados não eram já, como no caso do Surrealismo, Blake,
Rimbaud ou Lautréamont, mas o Edgar Allan Poe de A Philosophy of
Composition e de The Poetic Principle, Mallarmé ou Paul Valéry. O que
poetas como Lêdo Ivo ou João Cabral de Melo Neto pretenderam foi
precisamente o regresso à valorização do trabalho na poesia, a recusa
total da inspiração como origem do poema, o repúdio pelo «poema mediúnico
trazido pelos anjos»[41]. Tratou-se basicamente de representar a comédia
intelectual valériana: «A Geração de 45 encarou a poesia […] como
uma arte a ser conquistada, com obediência a princípios teóricos, pois
sem estes não há edifício artístico ou literário que vá além da
improvisação. Na elaboração do poema, o poeta de 45 não se prende
apenas ao seu corpo total, mas ao de cada estrofe, de cada verso, de cada
palavra, de cada sílaba, de cada som», resumiria Domingos Carvalho da
Silva[42]. À semelhança de outros, Murilo encarou a Geração de
45 como um momento de continuidade em relação ao Modernismo de 22,
explicitando que «o movimento poético de 1945 não poderá ser desligado
dos de 1922 e 1930» porque se tratava «de mais uma etapa do
desenvolvimento do processo revolucionário»[43]. Mas a verdade é que esta geração pugnou pelo regresso
a algo que era anterior a 1922, e que de alguma forma se distanciava dos
principais valores estéticos daquele movimento, conforme sublinhou o
mesmo Domingos Carvalho da Silva em 1948: «Estamos, em conclusão, diante
de uma nova poesia, profundamente, radicalmente diversa da que prevaleceu
até poucos anos atrás no ambiente literário nacional. […] O
Modernismo foi ultrapassado»[44]. Não por acaso Lêdo Ivo, na entrevista citada,
confessava que o que queria dizer era que «havia necessidade de reação
por parte dos novos», pois acreditava muito «nas gerações parricidas».
A tentativa de retorno às «construções
que resistem ao tempo»[45] resultou numa adopção generalizada das formas fixas, que o
versilibrismo modernista fizera esquecer, concentrada essencialmente no
verso decassilábico e no soneto. E foi neste encadeamento que Murilo
escreveu, entre os anos de 1946 e 1948, um livro constituído unicamente
por sonetos - Sonetos Brancos[46] - e publicou, em 1954, a obra Contemplação de Ouro
Preto, maioritariamente constituída por composições em verso decassílabo,
endecassílabo ou alexandrino, e integrando ainda alguns sonetos.
Interessava-lhe, de modo idêntico à Geração de 45, a valorização dos
autores do passado antigo, em cujas leituras se havia iniciado. Daí que
ao referir‑se a Alphonsus de Guimaraes, um dos poetas brasileiros
que leu afincadamente na juventude, Murilo enfatizasse com insistência o
rigor do seu ofício e dos seus versos polidos (pp. 490-501). A simpatia
pelos poetas da Geração de 45 deveu-se, portanto, não a uma qualquer
ruptura com a sua poética, mas a uma exploração assumida daquilo que
desde o início defendia com Valéry: perfeição é trabalho. Ora é justamente
nesta aposta num labor limae assente no princípio basilar da construção
que se deve descortinar uma das raízes imanentes da derradeira inflexão
poetológica de Murilo Mendes, que o conduziria para o caudal da corrente
que na literatura brasileira do século xx
se seguiu à Geração de 45 e que, ao contrário desta, se integrou numa
tendência vanguardista mais disseminada a nível mundial: o Concretismo.
Desde as vanguardas históricas, de que o Cubismo de Apollinaire,
o Futurismo italiano de Marinetti, o Cubo-futurismo russo de Khlebnikov, o
Dadaísmo de Tzara e o Surrealismo de Breton constituem as manifestações
mais exemplificativas, que a criação literária (aliada, num vasto
movimento trans-semiótico, à pintura, à escultura e à música)
se debruçou quase exclusivamente sobre os modos de transformação da
funcionalidade utilitária da língua em erupção lúdica e erótica do
corpo da língua. As parolibere e a destruição da sintaxe proclamadas
por Marinetti nos manifestos que constituem a sua verdadeira obra
futurista, a par do neologismo que, na formulação dos futuristas russos,
permitia ampliar o volume de vocabulário da língua, sedimentam a explosão
verbal que estará na base de grande parte das neovanguardas que irrompem
após a Segunda Grande Guerra, sejam o Letrismo de Isidore Isou, a Poesia
Experimental, ou, no caso da literatura brasileira,
a Poesia Concreta, Neoconcreta e Praxis. Neste contexto histórico-literário,
a obra poética de Murilo Mendes firma-se indubitavelmente como um
dos exemplos mais representativos na poesia em língua portuguesa da
dissolução e transfiguração policentrada do discurso convencional. Tempo Espanhol e
Convergência nascem sob o signo do concreto. Não por acaso, por altura
da morte de Murilo, em 1975, E. M. de Melo e Castro se comprazia no
reconhecimento de que «com o tempo o discurso Muriliano foi-se
concretizando cada vez mais até atingir um elevado grau de pesquisa linguística
e experimental que o coloca (com Convergência) na primeira linha dos
Poetas de vanguarda da década de 60 e dos anos 70»[47]. A verdade é que, se Convergência irrompeu
como o ponto-limite desse experimentalismo no plano da manifestação
linguística, até porque se assumiria igualmente como o ponto de chegada
de uma obra em incansável metamorfose, o certo é que Tempo
Espanhol revelava os primeiros passos de um Murilo Mendes cansado de uma
poesia dominada por preocupações de carácter semântico, ou seja,
expunha os primeiros passos de um sujeito poético alterado que fazia
implodir a própria expressão. É neste sentido que o livro publicado em
Portugal deve ser encarado como uma obra crucial, quando se pretende traçar
o percurso das sínteses progressivas que singularizam a poesia de Murilo
Mendes: Tempo Espanhol representa o lugar de uma alteração, e portanto
de uma alteridade, do sujeito e da poesia murilianas. É o lugar onde a
imagem surrealista, sémico jogo de espelhos, se dissolve para dar espaço
a uma infinita refracção dos significantes, prenunciando o que em
Convergência se transformará no que se poderia denominar a imagem
concretista - o mesmo jogo de espelhos projectado no plano morfológico. O
que significa que, não sendo ainda uma obra concretista no que este
Concretismo implicava como movimento historicamente datado, mesmo que o
decisivo A Luta Corporal de Ferreira Gullar já tivesse visto a luz do dia
(1954), Tempo Espanhol se apresentou como «uma proposta, paralela mas
independente, de relativa concreção poética»[48]. Esta concreção é desde logo
evidente, não apenas na recorrência do próprio lexema «concreto» ao
longo de todo o livro, mas também no anúncio do que viria a ser, em
Convergência, o intenso e exaustivo investimento na concretude do
significante. Tempo Espanhol prenunciava a opção do seu autor, na obra
seguinte, por um investimento produtivo no pólo metonímico da linguagem,
em detrimento do pólo metafórico que até então se apresentava como
princípio de organização estrutural de grande parte das composições. À altura da publicação
de Convergência, em 1970, e ao longo dos anos em que o poeta foi compondo
os textos que integram o livro, entre 1963 e 1966, a poesia brasileira,
assim como a portuguesa e também alguma poesia europeia, vivia o embate e
a maturação de um novo movimento de vanguarda, semioclasta na sua origem.
Tendo como nomes principais Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio
Pignatari, o Concretismo brasileiro nasceu e desenvolveu-se ao longo da década
de 50, altura em que, simultaneamente, na Europa, o suíço Eugen
Gomringer e o sueco Öyvind Fahlström criavam uma poesia visual de
constelações inspirada na música e na pintura concretas. Em rigor, na
década que assistiu à eclosão do movimento concretista no Brasil,
Murilo Mendes encontrava-se
praticamente ausente do seu país: entre 1952 e 1956 - os anos em
que Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari criam o grupo
Noigandres e lançam o primeiro número da revista homónima, em que
escrevem grande parte dos textos teóricos do movimento e em que este é
lançado oficialmente na Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada
no Museu de Arte Moderna de São Paulo - o poeta fez a sua primeira
digressão à Europa. Regressou precisamente em 56, por pouco tempo, dado
que no ano seguinte viajaria definitivamente para Itália, a fim de ocupar
o cargo de professor de cultura brasileira na Universidade de Roma,
estando portanto de novo ausente do Brasil aquando da publicação, no número
4 de Noigandres, do texto-manifesto «Plano-Piloto para a Poesia Concreta»,
e por altura da dissidência do grupo concretista, que daria origem ao
Neoconcretismo liderado por Ferreira Gullar. Ainda assim, Convergência
nasceu sob o signo do concreto, na
linha de Tempo Espanhol, mas também sob o signo do Concretismo. Os poetas
concretistas pretenderam antes de mais arrogar-se uma «responsabilidade
integral» perante a própria linguagem[49], apresentando-se como o caso-limite de uma modernidade
que tinha como «eixos radiais», na expressão de Haroldo de Campos[50], as figuras de Mallarmé, de e. e. cummings, de James
Joyce e de Ezra Pound, e, em segundo plano, as experiências de
Apollinaire e dos futuristas e dadaístas. O exercício bivalente de
destruição-construção da linguagem, que pretendiam operar, tinha como
objectivo fundamental a transformação e reestruturação das formas
instituídas. Negando a norma enquanto exercício do poder no seio da língua,
os concretistas ambicionaram mover-se no lugar do sistema, isto é, no lugar da língua
em liberdade, conjunto infinito de possibilidades. A sua acção
concentrou-se antes de mais sobre o
texto como unidade tridimensional: proclamando-o como elemento dotado
de qualidades espácio-temporais, a poesia concreta começava «por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural»[51], criando assim uma tipografia funcional de que «Un Coup
de Dés» de Mallarmé havia sido o texto matricial. A valorização do
espaço como elemento substantivo da estruturação poética implicava
naturalmente a ruína de um discurso temporal-linear, que passava pelo repúdio
liminar do verso, já que este não reconhecia o «espaço como condição
de nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo,
lombar, e não como elemento relacional de estrutura»[52]. Para os concretistas, o texto poético deveria
apresentar‑se com um duplo isomorfismo: um isomorfismo «fundo-forma»
e um isomorfismo espaço-tempo, gerador do movimento. Este duplo
isomorfismo permitia-lhes desde logo afastarem-se da poesia pictográfica
dos caligramas de Apollinaire, a quem criticavam o «preconceito
figurativo», o «puro desenho figurativo», e o «decorativismo sem
sentido»: «poemas em forma de bandolim, de Torre Eiffel, de metralhadora
- o que, desde logo, impossibilitava toda e qualquer estruturação rítmica
e escamoteava a visão do verdadeiro problema que, em substância, era o
problema do movimento». Em «Ovo Novo no Velho», Décio Pignatari
chegaria a reproduzir o milenar «ovo» de Símias para desvalorizar os
caligramas de Apollinaire e sublinhar a natiguidade da poesia «em forma
de»[53]. A estrutura-conteúdo do poema concreto manifestava-se,
antes de mais, sob a forma de uma estrutura dinâmica, o que afastava à
partida rótulos reducionistas como o de «poesia da forma» e aproximava
a nova poesia de um método de composição diagramático ou, como preferiram
os próprios concretistas, ideogramático, baseado na justaposição
directa - analógica, não lógico-discursiva - de elementos:
tratava-se, nas palavras de Haroldo de Campos, «de organizar de maneira
‘sintético-ideogrâmica’ ao invés de ‘analítico-discursiva’
[…] a totalidade do poema»[54]. Tratava-se então de abolir o
discurso ou o discursivismo ocidentais, silogísticos e fundados numa lógica
de identidade, substituindo-os pela reflexão analógica característica
do pensamento chinês, baseado numa lógica de correlação[55]: «Rejeitando o ordenamento lógico-discursivo,
abrindo-se às sugestões do método ideogrâmico de compor, que é do
tipo analógico e não do tipo digital, lança-se a poesia concreta à
fascinante aventura de criar com dígitos, com o sistema fonético, uma área
linguística não-discursiva»[56]. Por esta via, a linearidade ou monovalência temporal do discurso era
fracturada num movimento de ruptura com
a sintaxe lógico-discursiva. À abolição do discurso
correspondeu a uma «mudança de atitude sintáctica»[57], actualizada na ausência da crono‑sintaxe habitual e na criação de uma sintaxe visual, analógica,
relacional, paratáctica e paralelística, em textos onde as posições
das unidades se tornavam variantes livres, e não mais variantes combinatórias.
Como resultado desta comutação, e porque «em muitos poemas concretos o
próprio verbo pareceu dispensável», a relação sintáctica passou a
fazer-se entre os substantivos[58]. Contrariando
uma das linhas de força das vanguardas do século XX, o Concretismo
tendeu a respeitar a integridade morfológica da palavra, considerando
assim ter superado as experiências linguísticas deformantes e
atomizantes de James Joyce ou de e. e. cummings. Aos concretistas interessava a palavra
enquanto entidade «verbivocovisual», o que os inseria numa antiga tendência
da literatura de criação de uma relação erótica com a língua e a
linguagem. Os concretistas apropriaram‑se do termo de James Joyce (Augusto
de Campos é o primeiro a fazê-lo, em
1955, no ensaio intitulado «Poesia Concreta»), com o qual pretendiam
chamar a atenção para a tridimensionalidade da palavra enquanto objecto.
Haroldo de Campos figuraria ainda de outra forma essa tridimensionalidade,
num texto de 1956 intitulado «Olho por Olho a Nu»:
a palavra tem uma dimensão gráfico-espacial
uma dimensão acústico-oral
uma dimensão conteudística
agindo sobre os comandos da palavra nessas 3 dimensões
3[59]. A instauração de
uma barthesiana erótica do texto actualizava-se assim numa renúncia da transparência dos signos e na sua consideração material:
«poesia concreta:
tensão de palavras-coisas no espaço -tempo»[60]. Abolida, num primeiro
momento, a linearidade do significante, os concretistas pretenderam também,
a um nível microtextual, proceder à anulação da arbitrariedade do
signo, expondo e contestando essa falsa solidariedade entre o significante
e o significado[61]. O que lograram foi a transformação
do signo - estrutura ternária implicando duas relações radicalmente
distintas: de significação entre o significante e o significado, de
denotação destes dois com o referente - em símbolo
enquanto estrutura binária conhecendo apenas uma relação entre os seus
dois termos constitutivos. Juntaram‑se assim à generalidade das práticas
vanguardistas, todas marcadas por esse fascínio pela dimensão corpórea
do significante e pela sua prevalência sobre o significado. Por isso se
assiste, em grande parte dos poemas concretistas, a operações metaplasmáticas
que inscrevem o texto no domínio da teratologia verbal, mas sobretudo
à criação de jogos de palavras assentes em atracções paronímicas e
homonímicas e num interseccionismo morfológico. A tal ponto e com uma
tal intensidade que, retomando a definição jakobsoniana da função poética,
Décio Pignatari propôs que se considerasse a paronomásia, e não a metáfora,
como «a figura adequada ao eixo paradigmático das similaridades»[62].
O intuito
experimental do último livro de poesia publicado em vida por Murilo
Mendes foi desde cedo evidente no título original de uma das suas partes,
que seria posteriormente alterado, Exercícios, inscrito no âmbito de um desejo
expresso pelo escritor de proceder a uma reformulação da sua linguagem
poética[63]. O intuito especificamente
concretista tornou-se visível no facto de Murilo ter divulgado uma série de poemas da obra no número 5 da revista
Invenção (de Novembro de 1966 -Janeiro de 1967), mas sobretudo em
algumas referências explícitas dentro do próprio livro ao movimento ou
aos seus protagonistas, como a que faz ao «plano-piloto» no «Grafito
para Mário de Andrade»: «Avante epos do homem / Avante plano-piloto /
Contra o autosatisfeito / Caos» (p. 636). Repare-se
ainda que não escapou ao livro nenhum dos autores do paideuma
concretista ou com ele relacionado, com destaque para Mallarmé (no «Murilograma
para Mallarmé» e na citação do célebre verso do poeta francês que
integra o soneto «Ses purs ongles très haut dédiant leur onyx» - «Aboli bibelot d’inanité sonore» -, no «Murilograma a Clara Rocha»), Ezra Pound (no «Murilograma
a Ezra Pound» e no «Murilograma a c.
d. a.»), e. e. cummings (no «Murilograma a c. d. a.») e James Joyce (o Finnegans Wake do autor irlandês
comparece por duas vezes em Convergência, quer em referência explícita,
no «Murilograma a António Nobre»,
quer na citação da expressão com que Joyce definiu o seu livro, «a
work in progress», no «Murilograma ao Criador»), Apollinaire (na epígrafe do «Murilograma a n.
s. j. c.»), Maiakovski (o
«Plano-Piloto para a Poesia Concreta» viu-se acrescentado, após a sua
primeira publicação, de dois versos do poeta russo, e Maiakovski está
presente no livro de Murilo Mendes, quer no «Murilograma» que lhe é
dedicado, quer em referência e citação directas no «Grafito para Mário
de Andrade»), Sergei Eisenstein (no
«Grafito para Sergei Eisenstein») e
Sousândrade (no «Grafito para Sousândrade» e no «Murilograma a c. d. a.», texto onde surge colado à referência a
Noigandres: «Além de Cummings & Pound / Além de Sousândrade / Além
de ‘Noigandres’»). e. e. cummings
seria ainda objecto de um poema no livro em italiano, Ipotesi, onde Murilo
Mendes chama a atenção para as
operações sobre a sintaxe e o discurso levadas a cabo pelo autor
norte-americano - «Un poeta spezza il texto / cambia la sintassi /
tronca il discorso» (p. 1560) -, dilucidando a génese de poemas como «Dido»,
de Convegência (pp. 730-731), onde é óbvia a influência do processo
de construção atomística característico da poesia de cummings. Mas
foi sobretudo Anton Webern o artista ligado à poesia concreta a ter presença mais vincada em Convergência, a ponto de
Murilo confessar antropofagicamente, em «Texto de Informação», «Webernizei-me».
A música dodecafónica e a melodia de timbres do compositor haviam sido
apropriadas pelos poetas concretistas, nomeadamente por Augusto de Campos,
que em 1955 escrevera «Poetamenos», nelas directamente inspirado. Numa
entrevista concedida à Folha de S. Paulo, o alemão Claus Clüver
afirmaria mesmo que, se «tivesse que citar um modelo para a poesia
concreta brasileira, diria que é musical - é a música de Webern»,
precisando que na música de Webern se poderiam encontrar «todas as
características, transplantadas, obviamente, para a música». O que
esclarece na íntegra a apóstrofe com que no «Murilograma a Webern» Murilo
se dirigia ao compositor: «tu / Intacto Anton Webern / És concreto» (p.
696). No caso particular de Murilo Mendes, a assunção desta influência
da Escola de Viena mais não faz do que clarificar e conferir um substrato
sólido a uma das vertentes mais significativas da sua poesia: o tão
criticado carácter amelódico, que o poeta assumiu com indisfarçado
prazer num artigo de 1959: «Persegui sempre mais a musicalidade que a
sonoridade; evitei o mais possível a ordem inversa; procurei muitas vezes
obter o ritmo sincopado, a
quebra violenta do metro, porque isso se acha de acordo com a nossa atual
predisposição auditiva; certos versos meus são os de alguém
que ouviu muito Schonberg, Stravinsky, Alban Berg e o jazz»[64]. Talvez só um artista concreto estivesse assim em condições
de entender o desconforto sonoro do verso de Murilo Mendes não como um
defeito mas como um traço imanente praticado com intencionalidade estética,
tal como faria com inteira pertinência o próprio Haroldo de Campos num
ensaio célebre, ao aproximar a poesia muriliana da música, para a
inserir numa estética moderna radicada na dissonância, no amelódico e
na polifonia[65]. Falar de influência
ou de afinidade concretistas em Convergência implica todavia a constação
de que tais laços se atenuaram em certas opções poemáticas,
especialmente no que diz respeito à eleição do espaço gráfico a
elemento estruturador do poema, à valorização da página em branco, à
abolição do verso e à criação de
uma sintaxe visual ou espacial. Tais procedimentos encontram‑se, com
efeito, muito moderados ao longo de toda a obra. O que se presencia,
fundamentalmente, é a criação obsessiva de uma sintaxe de justaposição
paralelística e um jogo incessante com a loucura dos significantes nas
suas relações de atracção e de repulsa. Depois de reconhecer que a
poesia analítico-discursiva estava em crise[66], Murilo Mendes decidiu optar por uma exploração ainda
mais eficaz e assumida daquele «mundo substantivo» de que a sua poesia já
se havia arrogado no famoso aforismo de O Discípulo de Emaús - «Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo»
(p. 851) -, que originou o ensaio de Haroldo de Campos, e que o poeta
concretista considerou valer por toda uma programação estética. O fascínio
pela dimensão erótica da palavra sobressai logo no pórtico de Convergência
- «Lacerado pelas palavras-bacantes / Visíveis tácteis audíveis» (p.
625) - numa afirmação explícita dessa qualidade «verbivocovisual» do
signo defendida pelos criadores da poesia concreta. Luciana Stegagno
Picchio viu nesta tendência de Murilo a sua grande afinidade com os
concretistas: «dentro das famílias de poetas auditivos e poetas visuais
Murilo era essencialmente um visual. Ou melhor, era um poeta de substância
tanto fónica como visível da palavra. O que explica também as suas ligações
com os concretistas e com um poeta de palavra seca e irradiante, por ele tão
admirado, como João Cabral de Melo Neto»[67]. Para o poeta d’ As Metamorfoses tratou-se então de «Conhecer
os limites da linguagem / Afrontando as palavras travestidas», de «Truncar
a palavra / coisa / Podá-la nas patas / Estilhaçá-la consciente» (pp.
698-699). Tratou-se portanto de entrar na lalangue, nesse lugar maternal
onde língua e desejo se encontram e se fundem[68].
A tentativa de substituir um discurso analítico por um discurso sintético
actualizou-se, sobretudo, na criação obsessiva de holofrases e de
neologismos do tipo do mot-valise, visível em construções como «alicaído»
ou «Itabiromem claroenigmático» (pp. 629 e 689), e em neologismos como
«dinamistificam», «datilotoquei» ou «jaguardentes» (pp. 652, 693 e
710). E foi justamente por esta via que a justaposição e a fusão se
transformaram nos dois mecanismos estruturantes de todo o livro, gerando
puras maravilhas lexicais como «ovalbranca», «gentilhomem», «soaveforte»,
«ásperoanguloso», «largoespacial», «eternofísico»,
«aviãopássaro», «campoconcentração», «gatopardo», «reinoilhasalão»,
«barcobêbedo», «cavalomens», «guerromem», «sacraltura», «autorfeu»,
«pluravós», «fortespuma» ou «ventomemwagner». Tais
mecanismos fazem-se acompanhar de uma obsessiva presença de
jogos de palavras homonímicos e
paronímicos que, anunciados desde o primeiro momento, dominam
essencialmente a segunda parte da obra, «Sintaxe», e, de forma
particular, a sequência de poemas intitulada «Metamorfoses». Aliados à
criação neológica, presente sobretudo no poema intitulada «Palavras
Inventadas (Em Forma de Tandem)», todos estes processos integram um vasto
movimento de telescopagem de significantes que a primeira composição já
prometia na declinação lúdica[69] da palavra Orfeu: «Orfeu Orftu Orfele / Orfnós Orfvós
Orfeles» (p. 625). Influenciado ou não pela poesia concreta, o certo é
que, no último livro de poemas que publicou em vida, Murilo Mendes
abandonou o onirismo projectado no plano do conteúdo, que havia
caracterizado as suas obras anteriores, concentradas no pólo metafórico,
para se dedicar a uma exploração do onirismo projectado no plano da
expressão, concentrado no pólo metonímico[70]. Facilmente se entende
que dois anos depois Murilo tenha dedicado a Haroldo de Campos uma secção
da colectânea em prosa Poliedro, também constituída por textos
produzidos em meados da década de 60 - significativamente, uma secção
que intitulou «Setor a Palavra Circular», invocando assim uma das linhas
concretistas herdadas de «Un Coup de Dés» de Mallarmé e do Finnegans
Wake de James Joyce, que ele próprio havia praticado em Convergência: a
organização da obra numa estrutura circular. Tal como as últimas
palavras do poema de Mallarmé são as primeiras, tal como a frase inicial
do livro de Joyce é a continuação da última, o último poema da
primeira parte de Convergência repete o poema que abre o livro, com
alteração apenas do título e acrescento do verso «fim?»
no verso que remata o texto. A dedicatória de Poliedro a Haroldo de
Campos é ainda menos inesperada se se tiver em conta que este é sem dúvida
o poeta concretista de cuja obra
Murilo Mendes mais se aproximou. A sua posição não foi porém
nunca clara no que diz respeito a esta «dívida» à poesia concreta. Em
1959, na já citada entrevista a Walmir Ayala, o poeta sublinhava que «a
teoria concreta não é a solução da crise». Dois anos após esta
declaração, numa entrevista concedida ao Jornal do Brasil, respondia
à questão «Sente-se influenciado pelo Concretismo?» com um peremptório
«Não», atenuando embora esta liminar negativa pela afirmação: «de
qualquer modo, constato a crise da poesia, por esgotamento dos esquemas».
Ao que acrescentava: «Neste ponto, minha posição, de certo modo,
coincide com a dos concretistas»[71]. Uns anos mais tarde, contudo, referindo-se a Convergência,
Murilo assumia que o livro era certamente um dos seus livros maiores, «resumindo
a experiência de três gerações, inclusive concretos e praxis»[72]. É preciso não
esquecer que Murilo Mendes tinha conhecimento profundo e directo dos
autores franceses seus contemporâneos, em particular dos surrealistas e
dos que do Surrealismo se afastaram por razões de carácter estético. E
o facto é que Robert Desnos, Benjamin Péret, Jacques Prévert, Henri
Michaux e Raymond Queneau escreveram obras repassadas por essa exploração
de uma sintaxe paralelística e por jogos de palavras assentes na homonímia
e na paronomásia, assim como na criação de mot-valises e de
neologismos, tentando fundar, na formulação de Péret, une langue à la
place du sexe, pelo que não se poderá anular a importância e influência
que estes poetas terão tido na análise feita por Murilo Mendes, na última
fase da sua escrita, das potencialidades estéticas e lúdicas das
palavras na sua dimensão corpórea. Mas o que importa salientar, para que
esta obra possa ser entendida em toda a sua complexa amplitude, é o
seguinte: a anamorfose infinita dos significantes exibe-se como a última
metamorfose, ou supra-metamorfose, se quisermos retomar o termo com que
Jorge de Sena descreveu os seus Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, de
Murilo Mendes e da sua obra. Por isso
Carlos Drummond de Andrade pôde apregoar, no poema que lhe dedicou
em Discurso de Primavera: «Por ter sido futuro, entre passados
/ e estagnados: / futuro intensamente, poeta / a nascer amanhã, sempre
amanhã»[73]. A poesia de Murilo Mendes
experienciou diversos nascimentos, e com precisão se pode dizer que
sempre que alguma coisa de novo nasceu na poesia brasileira do século XX,
a poesia de Murilo renasceu no mesmo instante. Porque na
singular temporalidade da história literária um Poeta é sempre o
primeiro poeta, a obra de Murilo Mendes apreendeu a totalidade do tempo
captando-lhe o ser e a sua negação, nas suas múltiplas refracções. E
por isso na sua poesia «Não se trata de ser ou não ser, / Trata-se de
ser e não ser» (p. 433). [1]
Benedito Nunes, Apresentação de Murilo Mendes, Suplemento
Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, 29 de Julho de 1972,
p. 2. Sublinhado meu. |
![]() Joana Matos Frias (Portugal, 1973). Ensaísta. Autora de O Erro de Hamlet - Poesia e Dialéctica em Murilo Mendes (2002). |
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