Canudos e-ra
a fonte de onde jorravam distúrbios sertanejos que significavam
os pródromos de uma vasta conspiração contra as instituições
recentes e punham a República em perigo. Assim pensava até
Euclides da Cunha, o torturado épico que passaria a limpo, no estilo
carrasquento da amostragem acima, tão áspero quanto a região,
esse episódio crucial da história brasileira. De fato, em
julho de 1897, ainda em São Paulo, o autor de Os sertões
imaginava o cenário da luta na Bahia como "veredas estreitas por
onde passam, nesta hora, admiráveis de bravura e abnegação,
os soldados da República". Em agosto, em Salvador, a caminho do
sertão, escrevia, na correspondência ao jornal que o mandara
à guerra: "Em breve pisaremos o solo onde a República vai
dar com segurança o último combate aos que a perturbam".
Uma vez no terreno do levante, os relatos de Euclides, rascunhos da obra
monumental mais tarde saudada como livro vingador, inverteriam as impressões:
os perturbadores configuravam "rocha viva da nossa raça" e não
havia bravura abnegada, mas "multidão criminosa, paga para matar".
O tom da grande imprensa em geral continuava no entanto a insistir em que
nos grotões baianos os "fanáticos do Conselheiro" serviam
a uma grande conjura monarquista que pretendia a restauração
do trono. Eram místicos e sebastianistas. E isso era o mínimo
a dizer, mesmo após anos de distanciamento: para o historiador Pedro
Calmon, por exemplo, concentrara-se ali "a ralé celerada dos sertões".
O Conselheiro, na descrição quase fotográfica de Euclides,
vestia camisolão de brim azul, calçava sandálias,
cobria-se com chapéu de abas largas e derreadas, portava um bordão
e carregava às costas, num surrão de couro, livros religiosos
e material de escrita. Era um homem baixo, moreno e acaboclado: assim pareceu
ao tenente-coronel Durval Ferreira de Aguiar, que com ele esteve em 1882,
conforme conta no livro Descrições práticas da Província
da Bahia. Trazia do verdor dos anos, como testemunha o jornalista João
Brígido, seu amigo de infância em Quixeramobim, no Ceará,
a mania de rezar, acentuada a cada infortúnio pessoal de uma extensa
relação que lhe caberia provar. Ao organizar Canudos nas
ruínas de uma fazenda desativada, em 1893, vinha à frente
de um arrastão messiânico arregimentado em anos de pregação
andarilha Nordeste adentro.
O assentamento em Canudos é uma virada imposta pelos antecedentes
imediatos. Naquele ano, o governo federal autorizara os municípios
a cobrar impostos. As populações pobres do interior se queixam
da novidade, recebida como uma extorsão. Há protestos em
várias localidades. Em Bom Conselho, um dia de feira reúne
a gente da terra e dos arredores. O Conselheiro está ali com seus
seguidores e toma a dianteira das reclamações: manda arrancar
os editais de cobrança dos tributos e com eles faz uma fogueira
na rua. Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, um estudo clássico
das insubmissões sertanejas, atribui ao incidente "o ponto de partida
da inculpação ao Conselheiro de uma atitude anti-republicana".
O ato de rebeldia custaria aos conselheiristas a primeira perseguição
armada, da parte da polícia baiana, com uma força de 30 soldados,
repelida e posta em fuga. Depois do choque, o Conselheiro aquartela-se:
funda Canudos, a cidadela que abalaria a República.
Os liderados do Conselheiro não passavam então de duas centenas.
Em poucos anos - a comunidade não chegou a completar um lustro -,
Canudos, uma megalópole de taipa, abrigava uma população
de 25 mil pessoas: era a maior cidade da Bahia, depois de Salvador. O Conselheiro
atraía adeptos pela pregação e pelo pragmatismo. Havia
20 anos, "acompanhado da farândula de fiéis", na expressão
de Euclides, rasgava aqueles sertões e, por onde errava e passava,
ajudava na construção de açudes, reformava igrejas
e cemitérios. Quando fixou-se em Canudos, recebeu a chegança
de multidões. Eram mestiços - mulatos, mamelucos e cafuzos
-, brancos e negros. Renomado estudioso de Canudos, o professor José
Calasans afirma que o arraial do Conselheiro, erguido passados apenas cinco
anos da abolição da escravatura, foi o último quilombo
do Brasil. "Os negros livres não aceitavam permanecer na terra onde
haviam trabalhado como escravos. Para eles, isso era uma questão
de honra. Sem ter para onde ir, acabaram engrossando o séquito do
Conselheiro", esclarece o especialista.
A essa assembléia de pobres do campo, a exegese evangélica
do Conselheiro acenava com um dia em que as águas e barrancas do
Vasa Barris, o rio da região, virariam lençóis de
leite e prateleiras de pão. A miragem não embaçava
a realidade de que em Canudos os miseráveis chegaram a conhecer
casas cobertas de telhas, a ter rebanhos de vacas, cabras e carneiros e
a comerciar mandioca, milho e feijão com as praças vizinhas
de Jeremoabo e Monte Santo. A produção era de tal monta que
não faltaram gêneros sequer durante os dias mais duros da
guerra. Havia uma administração informal, compatível
com o nível de desenvolvimento social do acampamento.
Personalidades fortes desempenhavam funções essenciais. João
Abade, que viria a dar título a um romance histórico de João
Felício dos Santos, recebia os recém-chegados. Era o "comandante
de rua", obedecido por todos. Em A guerra de Canudos, Macedo Soares chamou-o
de "o general das cortes fanáticas". Era o chefe leigo, de fato,
do gentio, o Conselheiro já limitado a guia espiritual. Manuel Quadrado
era uma espécie de primeiro-curandeiro. Antônio Fogueteiro
foi o aliciador de combatentes. Manuel Faustino, talhador de altares, era
o principal mestre de obras.
Os irmãos cearenses Antônio e Honório Vilanova, influentes
e poderosos, conseguiram sobreviver ao massacre e fugiram de volta ao Ceará,
onde Honório, ainda lúcido aos 105 anos, em 1969, relatou
sua saga em livro do jornalista Nertan Macedo. Na quadra dramática
do conflito com as expedições, a chefia das operações
militares coube a Pajeú, o guerrilheiro que teria ferido de morte
o comandante expedicionário general Moreira César. Nessa
etapa de luta armada, ele e outros cabos de guerra improvisados - Pedrão,
Estêvão, Joaquim Tranca-Pés, Chico Ema, tantos mais
-, estrategistas insuspeitados, ofuscaram Conselheiro, que passa a mero
símbolo.
DETONADOR
O detonador aparente do assalto a Canudos foi uma transação
comercial mal consumada. O Conselheiro havia encomendado e pago, a negociantes
de Juazeiro, uma partida de madeira para a construção de
casas e pontes no arraial. Protelava-se a entrega da mercadoria e difundiu-se
o boato de que Canudos ia buscá-la a mão armada. Um clima
de pânico tomou as cercanias. Era novembro de 1896. O governo da
Bahia enviou tropas. Canudos não esperou inerte: foi ao encontro
das colunas e as rechaçou, embora com um número de baixas
mais de 10 vezes superior às perdas da força oficial. Uma
segunda expedição experimentou o mesmo fracasso, envolvida
pelos camponeses. Euclides observou: "As caatingas são um aliado
incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também na luta.
Armam-se para o combate; agridem".
Entre uma expedição e outra, Canudos crescia. Reforçava-se
com a cascata de desertores da semi-servidão das fazendas, chegados
detodos os cantos da Bahia e dos estados limítrofes. Ganhava cara
de monstro. Rui Facó retrata um quadro de ansiedade: "Quando as
tropas do governo sofriam derrotas sucessivas em frente dos sublevados,
os grandes fazendeiros, não só das vizinhanças de
Canudos, mas também de outras regiões, tremiam de medo ante
a perspectiva de perda de seus domínios. Uma carta publicada em
junho de 1897 - depois de espetacularmente esmagada pelos camponeses a
terceira expedição regular contra eles enviada - traduzia
o pânico em que viviam: 'Cada qual prepara suas fazendas para reagir
contra os pequenos grupos de fanáticos; se porém estes forem
grandes, ignoramos a sorte que nos aguarda".
Essa terceira expedição - 1.300 homens, bateria de artilharia,
esquadrão de cavalaria, canhões, fuzis Mannlicher e Comblain,
16 milhões de tiros - foi comandada pelo general Moreira César,
o implacável sufocador dos federalistas no Rio Grande do Sul. Poderosís-sima,
para a época, foi aniquilada. Moreira César e seus principais
imediatos foram mortos, a perda de armamento e munições foi
total, o ministro da Guerra teve de reconhecer que "as nossas armas estão
cobertas de crepe" e O País, então o maior jornal da capital
federal, passou a noticiar a campanha sob o título geral de A catástrofe.
Para o capítulo final, o do extermínio, a República,
que praticamente passara a só se ocupar dos acontecimentos de Canudos,
decretou mobilização geral. Mais de 8 mil homens de todo
o país, até navios de guerra, o ministro da Guerra, marechal
Carlos Machado Bittencourt, na base de operações, a apenas
algumas léguas da linha de tiro e do corpo a corpo mortal. Euclides
repassa a penúltima página: "Canudos não se rendeu
(...), resistiu até o esmagamento completo. Expugnado palmo a palmo,
na precisão integral do termo, caiu no dia 5 de outubro de 1897
ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e
uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados".
A tarefa não estava, ainda, terminada. Restava a degola de corpos,
a queima de cadáveres, o incêndio dos escombros de casas e
casebres. Cumpria nada deixar que lembrasse a existência um dia,
ali, de uma convergência de pobres inconformados.
Exterminava-se até o futuro, como constataria o historiador, memorialista
e general Nelson Werneck Sodré, em contato com remanescentes do
tempo do Conselheiro, numa visita ao local mais de meio século depois:
"Fui fardado, em viatura militar; senti na pele, passados 55 anos da carnificina,
o medo daquela gente ao soldado. Queria ouvir deles alguma coisa e foi
dificílimo, não arranquei nada de importante, nada de novo.
A visita parecia estar ocorrendo meio século antes; e encolhiam-se,
agachados no canto sombrio dos casebres, como se algum outro Moreira César
estivesse diante deles, ameaçando-os de nova mortandade". |