Luciano Maia*
O país do Jaguaribe, no Siarah
Do País do Jaguaribe (jaguar-u-ipe?),
com as primeiras incursões destinadas à conquista e ocupação do
território a oeste do Rio Grande e da Parahyba, sem
esquecermos as lutas no Siarah Grande, com os guerreiros de
Mel Redondo, aquele Irapuã tão famoso; do País do Jaguaribe
até o território kiriri, onde nasce a grande enxurrada que
inunda os vales jaguaribanos, há um espaço de tempo e um tempo no
espaço dignos de uma demorada observação.
A história do Vale do Jaguaribe
comportou muita discussão e por certo ainda as comportará, partindo
de agora, quando as comportas do Castanhão vão se abrir, trazendo
uma água advinda dos sagrados mananciais celestes, que de quando em
vez fazem chorar um choro de água muita sobre o nosso chão rude.
Franklin Távora (natural do País do
Jaguaribe), com o seu juvenil trabalho, elaborou premissas e
conjecturas sobre os nossos índios; Capistrano de Abreu enveredou
também pelos mesmos caminhos de sertões e de outroras. E Raimundo
Girão (outro jaguaribeiro), historiador arguto, fala-nos,
outrossim, sobre este território, onde quem nasce traz uma marcada
ancestralidade, também esta digna de uma demorada observação.
1603: partindo da Parahyba do
Norte, o cristão-novo Pero Coelho aventurou-se para além do País do
Jaguaribe, industriado, com certeza, pelas notícias de que havia,
todavia, muita terra para além do Cotinguiba, esse marco de
penetração do País Maior do Nordeste. Fracassou. Nada além de uma
tentativa em Ararendá, na Ibiapaba, um revide vigoroso
dos tocarijus e o posterior massacre dos insubmissos,
indomáveis... A primeira notícia de uma seca medonha que se abateu
sobre o Siarah ãtyguo.
O País do Jaguaribe, começando pela
foz do rio da onça e subindo em busca do Cariri e dos Inhamuns,
conhece um rio com cerca de 750 quilômetros de extensão.
Interessante é verificarmos que este rio teve a sua nascente
assentada por historiadores, geógrafos e cartógrafos como sendo a
partir das águas que escorrem de oeste para leste em descendência da
Serra da Joaninha, divisor de águas entre o Siarah e o
Pihauhy. Tudo bem. Porém, não há como negar que as águas
kiriris, que se juntam ao rio à jusante do boqueirão de Orós,
são muito mais abundantes do que aquelas “dos irmãos do demônio”, as
quais a custo vão se avolumando no imenso açude, enquanto as que
passam pelo boqueirão de Lavras são uma enxurrada de respeito. E se
vemos o rio no mapa, não será difícil supormos que as águas
kiriris mereceriam, pacificamente, o epíteto de nascentes do
Jaguaribe, vez que descem em linha reta em demanda do litoral... e
assim, o Trici, o Truçu, o Carrapateira, o Bastiões, o Jucás e
outros se apelidariam de afluentes. O Salgado, de Jaguaribe.
O País do Jaguaribe, belo país da
minha infância, conta histórias ancestrais. Os chegados pela foz e
pelo Apodi devem ter-se encontrado com os chegados pelo Araripe. De
uma maneira geral, os chegados pela foz e pelo Apodi traziam
memoranças de Pernambuco, do Rio Grande, da Parahyba e do
mar; os chegados pelo Araripe nos contavam lembranças da Bahia, da
Casa de Garcia d’Ávila. E aí, esses senhores de baraços e cutelos
foram-se afazendando e povoando o nosso País. Já estavam, com
certeza, afeitos às relações interétnicas nos canaviais de Olinda e
do Recife e do Recôncavo. Mas aqui, em terras do Siarah, eles
se indianizaram um bocado: os nossos irmãos ibiporas (habitantes da
terra) tinham pela caça um tal fervor e pelas andanças mato adentro
uma tal fascinação, que não foi difícil a esses senhores induzi-los
a caçar rezes tresmalhadas, que eram muitas por aqueles tempos de
meados do século XVII e início do século XVIII... Os ibiporas
fizeram-se excelentes vaqueiros, de peitoral e gibão. De primeiro,
houve muitas matanças, promovidas pelos capitães-mores contra os
índios insubmissos. Valentia de índio contra fazendeiro armado de
arcabuz só pode ter sido uma temeridade, fruto, por certo, de uma
bela e altaneira indomabilidade.
Não é preciso que citemos os nomes dos
matadores. Aqui vamos nos contentar com o relato dessa cruza de
sangue ibérico com sangue aborígene, com uma pitada de sangue
africano, mescla que resultou em nós, habitantes do País do
Jaguaribe. O paisano do País do Jaguaribe é, antes de tudo,
hospitaleiro; um pouco nostálgico, talvez quase meio triste e sem
dúvida, valente.
Essas três características, em alguns
de nós menos, noutros mais, somam o fenótipo do homo
jaguaribanus. Em termos de aparência, é mesmo fruto dessa
mestiçagem de que se falou, preponderando aqui para o ibérico, ali
para o índio, acolá para o africano. Vale aqui, por certo, lembrar o
nome de Luciano Cardoso de Vargas, cognominado o Abraão do
Jaguaribe, em virtude de número de descendentes que deixou ao
longo do de sua longeva existência e de quem se orgulham de
descender os Maias do Vale do Jaguaribe.
Muito bem: foram esses homens e foram
essas mulheres, povoadores do País do Jaguaribe, que nos contaram as
histórias que eles mesmos viveram, de sangue e de sol, e que
repercutem aqui e alhures, testemunho que são de uma luta tenaz e
ininterrupta contra os elementos, numa região onde muitos rincões
são de uma aridez desencorajadora e inóspitos aos mais temerosos dos
castigos climáticos. Mas o nosso País do Jaguaribe ostenta,
igualmente, vales fertilíssimos, onde vicejam o verde e a esperança.
E por mor de que ouvi, criança,
relatos fantásticos advindos daqueles tempos heróicos de sertões
passados e encobertos pelo manto do tempo-muito, só queria lembrar a
de Pierre Labatut, fantasma assombroso deambulante da Chapada
do Apodi e a da Carimbamba, aquela ave mítica de canto
encantatório.
Escritores, poetas, romancistas,
artistas, políticos, religiosos, publicistas de um modo geral e
homens comuns, de uma severa dignidade, como lavradores e pastores
de cabras, o País do Jaguaribe tem-nos oferecido, ao Brasil e ao
mundo, em profusão.
*Luciano Maia, Mestre em Literatura
Brasileira, Professor de História da Arte na UNIFOR, ocupa a cadeira
23 da Academia Cearense de Letras.
Cônsul Honorário da Romênia em Fortaleza.
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