Luciano Maia
Mocidade, amor e morte: Eminescu e
Castro Alves
Os dois poetas de quem falaremos aqui
pertencem à estética romântica, um movimento artístico e literário
que se iniciou na Europa do final do século XVIII e início do século
XIX, um movimento cultural que negava a estética neoclássica e
visava a uma maior liberdade criativa. O Romantismo nos trouxe,
principalmente na literatura (mas também nas artes plásticas, como a
pintura e a escultura e mesmo na arquitetura), nomes que são, ainda
hoje, objeto de estudo por parte de especialistas, em todo o mundo:
Goethe e Schiller, na Alemanha; Puchkin, na Rússia; Chateaubriand e
Victor Hugo, na França; Byron e Walter Scott, no Reino Unido, para
ficarmos apenas com os mais conhecidos. Também em nosso país temos
nomes de poetas e prosadores que foram, dentro do movimento
romântico, responsáveis pela criação da verdadeira literatura
nacional, como é o caso de José de Alencar, na prosa, e de Gonçalves
Dias, na poesia.
O movimento romântico coincide,
cronologicamente, em vários países, com os movimentos visando à
independência política, como é o caso da Romênia de Eminescu, e à
emancipação de um povo, como é o caso do Brasil de Castro Alves.
Pode dizer-se, assim, que tanto Eminescu quanto Castro Alves viveram
numa época em que os ideais de independência da Romênia e de
ultrapassagem de um tempo de indignidade no Brasil encontravam em
seus poetas verdadeiros arautos das novas idéias de emancipação
política e social.
Eminescu, em suas “Epístolas”,
principalmente na “Terceira Epístola”, criou verdadeiros hinos de
amor à pátria e de defesa do povo romeno frente à dominação
estrangeira, verdadeiros libelos em que o poeta brada contra a
injustiça e a ignorância. Castro Alves, em seu livro Os Escravos,
principalmente nos poemas “O navio negreiro” e “Vozes d’África”,
conclama os brasileiros à consciência dos ideais de libertação, de
superação da escravidão, poemas que nos comovem ainda hoje.
Os poemas sociais de ambos os poetas
alcançam alturas elevadíssimas, mercê do gênio que os engendrava. E
os seus poemas líricos conformam-se numa feitura magnífica. É
suficiente que lembremos aqui, de Castro Alves, “Os anjos da
meia-noite”, em que o genial brasileiro vê desfilarem, à sua pena,
sete sombras de mulheres que ele amou e uma última sombra, “a glória
talvez, talvez a morte!...”;
De Eminescu, lembremos o genial poema
“Vésper”, que muitos críticos apontam como autobiográfico, em que o
gênio, do alto de sua dor, jamais conseguirá ser feliz entre os
mortais.
São de fundo temático as semelhanças
mais evidentes entre os dois poetas: a vocação do cosmos, a sede do
Absoluto, os tormentos e as delícias do amor, Thanatos e Eros, são
os temas mais constantes tanto em um quanto no outro poeta. Não são
raras as passagens de Eminescu e Castro Alves em que ambos atingem
um estado de – diríamos – plenitude, em face do Infinito, nos
umbrais do encontro com o Todo. Também os poemas de cunho social, em
ambos, como já se disse, são um ponto relevante nas tangenciais que
se podem apontar no sentido da aproximação entre Eminescu e Castro
Alves.
Mas há outras semelhanças na vida dos
dois que se aproximam da coincidência, quase: ambos os poetas
viveram pouco (Eminescu faleceu aos 39 e Castro Alves aos 24 anos),
embora seja de registrar-se que quase todos os poetas românticos
tiveram curtas existências terrenas. De qualquer modo, isto é também
um dado que os aproxima.
Ambos começaram a escrever versos
ainda adolescentes (Castro Alves tinha apenas 14 anos quando recitou
um poema seu em público pela primeira vez, em Salvador; e os
primeiros poemas de Eminescu foram escritos ainda em seu tempo de
liceu, em 1866, portanto, aos 16 anos. Ambos se iniciaram com poemas
em louvor dos seus mestres de ensino ginasial. Ambos nasceram em
localidades afastadas dos grandes centros urbanos da época: Castro
Alves na fazenda Cabaceiras, a poucos quilômetros de Curralinho,
hoje Castro Alves, no interior da Bahia, nordeste do Brasil e
Eminescu na aldeia de Ipotesti, comuna de Botosani, nordeste da
Romênia.
Ambos percorreram muitos caminhos e
conheceram grandes cidades, fato raro para a época em que viveram. O
poeta brasileiro saiu do interior da Bahia para Salvador, depois
para o Recife, onde começou a se tornar conhecido como poeta, passa
depois pelo Rio de Janeiro e vai viver em São Paulo, onde
consagrou-se poeta nacional. O poeta romeno saiu de sua aldeia,
primeiro para Botosani e depois Bucareste e conheceu e viveu em
Berlim, Praga, Viena (onde estudou na Universidade) e muitas outras
cidades européias, antes de regressar a Bucareste, também já
consagrado como o poeta nacional da Romênia, onde morreu no dia 15
de junho de 1889, pouco depois das três horas da manhã. O seu
sepultamento, na tarde do dia 17, foi acompanhado pelos estudantes
de Bucareste que o prantearam.
Ambos escreveram teatro e saíram com
suas peças a representá-las em vários pontos da Romênia e do Brasil.
Um outro dado que os aproxima: não concluíram os cursos superiores
aos quais se matricularam. Quando, em 1869, Castro Alves se
matriculava na Faculdade de Direito de São Paulo, para o seu quarto
ano jurídico, curso que não concluiria, vindo de um mal sucedido
início de estudos jurídicos no Recife, Eminescu se matriculava na
Faculdade de Filosofia da Universidade de Viena, curso que também
não concluiria.
Há ainda que se falar de uma certa
semelhança física, realçada pelo gosto de ambos os poetas de se
vestirem com requinte e ostentarem aquele semblante em que o olhar
profundo parece revelar, na calma aparente, todas as inquietações da
alma do gênio.
De tudo o que podemos extrair dos
biógrafos de um e de outro poeta, vemos que tanto Eminescu quanto
Castro Alves foram pessoas extremamente afetuosas, afáveis com
todos; talvez até que se pudesse dizer generosas; por outro lado, os
dois poetas provaram do amor atormentado: Eminescu, com sua paixão
por Veronica Micle, ela também artista das letras, e Castro Alves
com o seu atribulado amor por Eugênia Câmara, ela atriz de teatro.
Um outro dado coincidente: as suas amantes morreram após a morte dos
dois – Eugênia Câmara morreu aos 28 de maio de 1874, três anos após
Castro Alves... e Verônica Micle faleceu em 3 de agosto de 1889,
apenas dois meses após o desaparecimento de Eminescu. Como se pode
ver, estes dois poetas têm, em comum, muitos avatares.
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Damos aqui algumas passagens de poemas
de um e do outro poeta, em que Eminescu e Castro Alves como que se
parafraseiam. Dir-se-ia que as semelhanças que adiante apontamos têm
um caráter de coincidência, ou seja, aparecem em circunstâncias do
ato da criação – diríamos – preparadas por ambos os poetas sob o
mesmo fervor criativo. As semelhanças são notórias:
Eminescu, no poema “Melancolia”:
A igreja destruída
Está contrita, triste, vazia, envelhecida,
Por janelas e portas silva o vento veloz
Ate parece um bruxo de quem se escuta a voz [...]
Castro Alves, no poema “A Boa Vista”:
Meu lar está deserto... [...]
Como tudo mudou-se!...O jardim ‘stá inculto
As roseiras morreram do vento ao rijo insulto...
Eminescu:
Contornos tristes, sombras, só sombras restaram.
[...]
O coroinha é um cupim roendo a sacristia [...]
Castro Alves:
E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas,
Os grilos que cantavam, calaram-se nas furnas...[...]
Eminescu:
A crença que desenha os ícones nos templos
À alma deu-me os contos de luz e seus exemplos.
Mas sob as tempestades da vida naufragaram,
[...]
Castro Alves:
A estátua do talento, que pura em mim se erguia,
Jaz hoje – e nela a turba enlaça uma ironia!...
Eminescu, no poema “Desejo”:
Vem ao bosque, até a nascente
Que treme nos calhaus, onde
A relva fresca do prado
A rama pendida esconde. [...]
Castro Alves, no poema “Sub Tgmini fagi”:
Vem! Nós iremos na floresta densa
Onde na arca gótica e suspensa
Reza o vento feral.
Enorme sombra cai da enorme rama... [...]
Eminescu, no poema “Ó mãe...”:
E se juntos um dia tivermos de morrer,
Não nos levem aos tristes murais do cemitério; [...]
Castro Alves, no poema “Quando eu morrer”:
Quando eu morrer, não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério... [...]
Eminescu, no poema “Vésper”:
Da minha esfera, a duras penas,
Atendo ao teu chamar;
Meu pai é o céu azul distante,
A minha mãe o mar. [...]
Ó, vem, tesouro meu, comigo,
Do teu mundo de nada,
Eu sou o luzeiro das alturas,
Sê minha noiva amada!
[...]
Castro Alves, no poema “O vôo do gênio”:
“Onde me levas mais, anjo divino?
Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas,
O canto das esferas namoradas [...]
Eminescu:
Vésper partiu. Cresceram tanto
Suas asas de gigante,
Que ele milênios percorreu
Ao passar de um instante.
Um céu de estrelas por debaixo,
Acima um céu de estrelas,
Igual a um raio que não cessa,
Vagava em meio delas.
Pelas caóticas paragens,
Ao redor dos azuis, [...]
Viu irromper a luz [...]
Castro Alves:
E fui... e fui...ergui-me no infinito,
Lá onde o vôo da águia não se eleva...
Abaixo – via a terra – abismo em treva!
Acima – o firmamento – abismo em luz!
Eminescu: no poema “Sonolentos passarinhos”:
Sonolentos passarinhos
Pedem que o ninho os acoite;
Se escondem por entre os ramos –
Boa-noite.
Somente as fontes suspiram
Silêncio o horto negro faz.
Dormem flores jardim –
Dorme em paz!
Passa o cisne pelas águas,
Por entre os juncos deitou-se.
Que os anjos estejam perto –
Sono doce!
Da noite na feeria
Ergue-se a lua de açoite.
Tudo é sonho e harmonia –
Boa-noite!
Castro Alves: no poema “Murmúrio da tarde”:
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto, [...]
Larga harmonia embalsamava os ares
Cantava o ninho – suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.[...]
Eminescu, no poema “Tenho ainda um desejo”:
Ainda um desejo:
Tarde a findar,
Deixai que eu morra
À beira-mar.
Um sono calmo
No bosque ameno
Vizinho às águas
E ao céu sereno.
Não quero tumba,
Não quero flamas,
Mas dai-me um leito
De tenras ramas [...]
Castro Alves, no poema “O laço de fita”:
Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova, formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c’roa... teu laço de fita.
O nosso poeta nacional despediu-se
desta vida no dia 6 de julho de 1871, às três e meia da tarde,
segundo a sua irmã Adelaide, contemplando uma nesga de azul que
entrava pela janela do palacete do Sodré, em Salvador. Em agosto
daquele mesmo ano, Eminescu conclamava, nos seus 21 anos, o povo
romeno à sua unidade cultural e independência política, ideais
semelhantes aos valores com os quais Castro Alves escreveu os seus
melhores poemas, em que conclamava à superação da escravidão entre
os brasileiros.
Castro Alves, nascido em 1847 e Mihai
Eminescu, nascido em 1850, os poetas nacionais do Brasil e da
Romênia, completam neste ano de 2006, respectivamente, 159 e 156
anos de nascimento. Lembro estas datas porque nunca serão
suficientes as homenagens que nós, seus contemporâneos, lhes
prestamos. Há 117 anos da morte de Eminescu e 135 da morte de Castro
Alves, a nós cabe o dever e a honra de enaltecer a sua memória, que
é, em suma, a memória das letras da Romênia e do Brasil.
Muito obrigado!
Luciano Maia é poeta,
lingüista e tradutor. Cônsul Honorário da Romênia em Fortaleza,
capital do Estado do Ceará. Mestre em Literatura Brasileira, é
professor na Universidade de Fortaleza - UNIFOR e ocupa a cadeira 23
da Academia Cearense de Letras.
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