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Majela Colares


 


As coordenadas poéticas de Társio Pinheiro



Fortaleza, Ceará - Sábado 27 de fevereiro de 1999

 

No livro “Cartas de Navegação”, de Társio Pinheiro, UECE, 1998, os poemas ali sedimentados, feito um mural em cores, exibem uma confluência de imagens poéticas de exuberante beleza plástica, quase palpáveis. Imagens que nos fazem galgar, com a imaginação, o sol a sangrar num fim de tarde; que nos trazem à boca um sabor de mormaço antigo; imagens inusitadas, que trituram os dias e celebram as noites. Ressalte-se, ainda, o ritmo que Társio Pinheiro impregna em seus poemas, como se fluísse uma margem entre um e outro verso:

Um marujo disperso em mil caminhos,
dividido entre os ventos que ele harpeja;
um marujo de sal mudado em vinho
sobre um mar de gaivotas, sem que seja
numa tarde de cinza ou de sol-posto...
silhueta invisível que veleja

 

Mas as coordenadas poéticas de Társio Pinheiro vão mais além. Nos transportam, também, a um outro mundo de sombras e inquietações, um mundo circunstancial e reflexivo, de teor metafísico, mais introspectivo e filosófico:

Contemplei longamente o azul do mar
abri os braços - linha do horizonte -,
rasguei minha extensão com minhas unhas
e com as mãos tirei minhas entranhas;
despi-me de mim mesmo e me fiz barco,
e, atirando-me às ondas, descobri
que a liberdade que eu buscava ao longe
cabia nos limites de uma concha.

 

Portanto, “Cartas de Navegação” é a condensação de um telurismo belo e incandescente com o pensamento fino e silencioso que inunda a voz do poeta. Ao cavalgarmos seus versos nos deparamos com o universo secular da poeira inexplicável que habita os livros e conspira as idéias. E é, quem sabe, entre esta presumida poeira cosmológica e a fragilidade pálida do papel que reside a sabedoria humana, que dignifica e ao mesmo tempo atormenta o próprio homem.

É aí, então, que surge a poesia como essência substancial, transmutada em sabedoria; no pensar de José Lezama Lima, poeta e ensaísta cubano, poesia transformada em “substância que procura recobrir o vazio...”, “aproximar ou cezir o espaço da queda”.

Em suas “Cartas de Navegação”, Társio nos conduz a caminhos distantes, longínquos, que, talvez, somente o sonho e o fazer poético os alcancem - caminhos onde repousa e adormece o verbo.

Afirmamos que um poeta é verdadeiramente poeta quando percebemos e sentimos a densidade, a dimensão e a beleza de suas imagens poéticas. E poesia se faz é com imagens e não com palavras, como pensava Marlammé, mestre do Simbolismo francês. Neste caso, a palavra dissolve-se, perde a sua conotação meramente literal, transformando-se em algo abstrato e irreal para o convencionalismo dos nossos sentidos. É este “algo irreal e misterioso“, penso, o que podemos denominar de imagem poética; segundo Lezama, “a última das histórias possíveis”, proveniente da própria palavra metamorfoseada; como assinalou certa vez Guimarães Rosa: “Em meus textos quero chocar o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns das expressões acostumadas e domesticadas. Quero obrigá-lo a sentir uma novidade nas palavras”.

O poema a seguir demonstra muito bem a qualidade da poesia elaborada por Társio Pinheiro:

Era quase sol-posto; um sol de estio
como um boi na sangria agonizava
e um desencanto azul se misturava
à cantiga enigmática do rio...
sobre a pele das águas um arrepio
espantava o verão que ali se olhava...
fresca brisa marinha que chegava
como alívio de dor quase tardio.
Era a tarde desfeita em cataventos...
era um sol em desuso e um desalento
mugindo sombras sobre a minha face
e encantamentos sobre o mês de agosto,
enquanto se esvaía o sol já posto
como um enorme boi que agonizasse.
 

Cultuando a linha clássica modernizada, Társio Pinheiro segue a trilha da melhor tradição literária brasileira. Sei de suas incursões em torno de Drummond, Bandeira, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, dentre muitos outros. Daí a riqueza da sua poesia. Esculpe com desenvoltura tanto o verso metrificado, destacando-se o decassílabo, quanto o verso livre. Toda esta dimensão e consistência poéticas transbordam em “Cartas de Navegação”, num estilo moderno, original e consciente.


Majela Colares, poeta.
 



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25/05/2006