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Manoel Hygino dos Santos


 


Amazônia revisitada


(Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, 18 de junho de 2006)
 


 

Um português vive no Brasil de meados do século XVIII momentos cruciais. Destinado a morrer e servir de alimento a canibais tupinambás do Amazonas, aproveita aquelas tormentosas horas para refletir sobre a vida e a morte, mas também para usufruir do que ainda lhe for possível. 'Carpe diem'.

O autor, romancista Nicodemos Sena, é paraense mas reside em São Paulo, onde encontrou ambiente e meios para construir uma obra rara na literatura brasileira contemporânea; esta época em que tanto se fala em nossos silvícolas, em que tantas campanhas se fazem para preservá-los quando milhões já morreram. Em todo caso, preservar o que ainda sobrevive, inclusive no que tange à língua, aos costumes, à cultura, é preciso.

O drama é resumido já no começo de "A noite é dos pássaros": "Não fosse a sombria expectativa da minha morte próxima, eu, Alexandre Rodrigo Ferreira, naturalista português, no verdor de meus vinte e cinco anos, poder-me-ia julgar um homem feliz, porquanto, já em 1751, quando o caso se deu, não havia cristão no velho mundo que não tivesse ouvido falar do modo hospitaleiro como os tupinambás no Brasil tratavam os seus prisioneiros, dando-lhes do bom e do melhor, e de um tudo, para depois devorá-los a 'cauim pepica', isto é, assados e regados com bebida. Nem na casa paterna, onde dormi anos no mesmo quarto com onze irmãos, nem depois, naturalista formado na Academia de Lisboa, em minhas andanças pelo mundo, sentira-me melhor instalado."

Há marcas de ironia no registro de quem se sabe sendo preparado para morrer, sem perspectiva de salvar-se do cruel fim. Nada o impede, porém, de aproximar-se de Potira, a jovem e bela filha do chefe do grupo. É uma paixão tangida pela espera do sacrifício, o português e Potira estão conscientes de ser inexorável.

Dentro dessa linha se desenrola o entrecho, que revela o aprofundado conhecimento do autor sobre a região, suas lendas, seus costumes. E, enfim, com sua língua, indígena, usada amplamente por Nicodemos Sena nos diálogos do desventurado lusitano com os selvagens, inclusive a doce Potira.

A narração se desenvolve entre o prazer e o martírio, título aliás de um dos capítulos. Mas há também cenas e diálogos de amor, evidentemente em tupi, entre a cunhatã e o prisioneiro, a quem desagradava a conquista amorosa, que tinha sabor de um troféu. Não apreciava ser tido como um 'cunhã-mucu manguitauêra', ou seja, um sedutor de mocinhas.

"A noite é dos pássaros" é, assim, uma preciosa enciclopédia ilustrada, com direito a enredo, sobre a vida na Amazônia, em plena metade do século XVIII. É um livro que interessa pelo inusitado que propicia, pois à grande maioria dos editores deste milênio há desconhecimento do que foi aquele pedaço do planeta há mais de dois séculos e meio.

As informações adicionais e a bibliografia constituem subsídios valiosos a quem se interessar pelo tema. O autor declara que pelo menos três dos sete anos que gastou na elaboração de "A espera do nunca mais" (seu primeiro livro, cuja leitura estou concluindo) foram utilizados com pesquisa bibliográfica. O autor não faz apenas ficção. Reconstrói um período da vida brasileira, para o que se fundamentou em mais de uma centena de fontes, livros escritos preponderantemente no século XVIII. Ou seja, na época em que viveram os personagens.

Justifica também o uso do tupi antigo. Não advoga uma volta ao passado, mas julgou imprescindível ao sabor e calor da narração o emprego da língua nativa. Mas também por reconhecer a importância dessa língua à cultura brasileira, tanto que serviu para argamassa de grandes obras de nossa literatura.

Quem se importa pela história em si, não se arrependerá, certamente.

(*) Manoel Hygino dos Santos é jornalista e escritor, da Academia Mineira de Letras

 



Nicodemos Sena
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06/07/2006