Marcelo Pen
Romance finca as garras na má
consciência alemã
O romancista
Heinrich Böll (1917-1985), Prêmio Nobel de Literatura de 1972,
morreu sem ver a publicação de seu primeiro romance, "O Anjo
Silencioso". Se não houvesse escrito mais nada, não passaria de uma
promessa literária.
Uma promessa,
entretanto, em que salta aos olhos o talento descritivo, que inclui
a capacidade de criação de imagens fortes, em especial da Alemanha
destroçada do imediato pós-guerra, período denominado "hora zero".
Como o professor
Paulo Soethe aponta no prefácio ao livro, a obra constitui uma
espécie de "Proto-Fausto", referência ao texto de Goethe que contém
as sementes dos seus posteriores "Fausto I" e "Fausto II".
Em "O Anjo
Silencioso" também se encontram a temática e o estilo que Böll
aperfeiçoaria em seus romances futuros. Ele escreveu-o entre 1949 e
1951, e, em muitas idas e vindas, deixou a revisão final para a
"última e quarta versão", que nunca houve.
Essa peculiaridade
deu margem a erros (de caráter temporal, alguns) e também pode
explicar falhas mais graves de condução narrativa. No meio do livro,
Böll insere uma subtrama piegas, levada a cabo por personagens mal
delineados, e abandona um pouco seu exame realista do país
devastado.
Foi esse retrato em
preto-e-branco, como o dos filmes neo-realistas de Rossellini e
Vittorio de Sica, que demoveu os editores da idéia de publicar a
obra, considerada desagradável para a sensibilidade dos patrícios
ainda traumatizados.
O eixo principal da
história centra-se no soldado Hanz Schnitzler, que chega a Colônia
para entregar a Elizabeth Gompertz o casaco do marido, o sargento
Willi, fuzilado pelos alemães. Willi trocara de lugar com Hanz,
pouco antes do fuzilamento deste último por deserção.
Böll esmera-se na
descrição dos escombros, da sujeira, das ratazanas, da fome que
provoca câimbras, da miséria e da desesperança. Mas, em meio a essa
sordidez física e moral, também faz brotar o amor. O acaso une Hanz
a Regina Unger, cujo bebê morrera dias antes, vítima de bala
perdida. Mesmo abalada, Regina concede guarida ao soldado desertor.
Dessa relação, nasce um dos poucos focos de esperança do romance.
A subtrama
sentimental a que nos referimos está ligada ao casaco que Hanz
entrega a Elizabeth, em cujo forro está o testamento de Willi. A
família do sargento quer a todo custo garantir a fortuna para si,
procurando impedir que a viúva gaste a herança com caridade.
Coincidentemente, Hanz é o único que sabe onde Willi fora enterrado.
Como testemunha, também pode corroborar a versão de Elizabeth,
garantindo-lhe a herança. Porém, ignorante dessas maquinações, ele é
escorraçado da casa da viúva, quando depois lá vai mendigar pão.
Esse não é o único
dos paralelismos da narrativa. Antes, ao chegar à cidade, Hanz é
saudado, no hospital aonde vai procurar Elizabeth, pelo sorriso de
uma estátua de anjo. Ele se comove com essa imagem de pureza,
coberta pelo pó. Quando remove a sujeira, contudo, descobre que "o
sorriso era de gesso" e que a poeira "havia conferido aos traços a
nobreza do original a partir do qual a cópia havia sido feita".
Para Böll, é
paradoxalmente na sujeira que se acha o caminho para a pureza de
propósitos. A limpeza cosmética apenas revelaria uma realidade
plástica e mentirosa, que não se enxerga à primeira vista.
Essa imagem reflete
a estátua do anjo decaído, que surge no fim. O rosto, agora de
mármore, afunda na lama, sob o peso de dois personagens que nele se
apóiam, um deles o pai de Willi. Esses caracteres representam a
ganância e a erudição oca, que, capazes de estar sempre
"politicamente do lado certo", sobreviveram ao Reich e continuaram
ditando os rumos na Alemanha restaurada.
A força da denúncia
de Böll, ainda que arrefecida por certo simbolismo óbvio, atravessa
o realismo descritivo e atinge o nervo da consciência de uma nação.
Isso, talvez mais do que tudo, impediu a obra de vir a lume tão
cedo. Na Alemanha, a publicação póstuma do manuscrito deu ensejo à
revisão crítica de toda a obra de Böll, cujos primeiros volumes
estão previstos para este ano. No Brasil, a tradução dá fim a um
período de quase 15 anos sem lançamento de romances do autor.
15/05/2004 - 05h46 Folha Online - Ilustrada
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