Márcia Cavendish Wanderley
A Carne e o Sonho da Memória
Carlos Lima
Em O Terceiro Jardim de Márcia
Cavendish Wanderley, há senderos luminosos da carne e sonho da
memória que tecem seus caminhos delicados com passos de lobo (ou
loba?); ficamos com a segunda hipótese. Como no poema que dá título
ao livro:
“O Recife já morto e sufocado/ na leveza desta areia e desta
aragem,/ na promessa da volta a esta praia./ Da Boa Viagem”.
Ou como em Sexo em Pernambuco:
“O Caule ereto tenta varar o infinito,/ a natureza é fálica,
desde a Grécia/ até porto do Recife”.
Freud nos ensinou que se buscássemos
fazer uma arqueologia do sonho poderíamos saber o que sonhava o
Homem primevo, o urmensch (ou a urfrau); aqui ainda, ficamos com a
segunda hipótese. Ao percorrermos este caminho é que começamos a
entrar neste Terceiro Jardim. Ao contrário de Dante, é preciso levar
consigo toda a esperança, para quando entrarmos estarmos preparados
para a oferenda-maior da ternura de sabermos que a Mulher é a mãe do
Homem. Rousseau e os românticos sabiam disso e buscaram, antes de
Freud, nos ensinar sobre os sonhos, e fizeram os ventos dos sonhos
adormecer a realidade. Como neste E o Vento Levou:
“Se tudo o vento leva,/ leva também a matéria de que é feita/ a
memória/ e torna ausente o que eras./ O que fostes...”
Aqui adentramos o território da
memória a que O Terceiro Jardim nos convida, em Bergson em
Pernambuco:
“Nossa visão do tempo é totalmente falsa,/ disse-me Bergson numa
noite de orgia./ O espaço se intromete sem ter sido chamado,/ e
busca assassinar a rosa da alegria./
Só o tempo do amor é verdadeiro./ Dura para sempre ou se apaga num
átimo/ É tempo raro, trêfego, medido pelo vento,/ penetra nas folhas
e esparge seu perfume./ Ao senti-lo sabemos a que horas estamos,/ em
qual península, em qual país estranho./
Quero em teus braços comandar o tempo,/ domar seus elementos, seus
espaços neutros,/ deixar que ele se estenda, extinga ou desanime/ de
passar ou ficar, porém se torne infindo”.
Com este poema Márcia nos lança no
interior de uma questão dimensionada primeiro por Bergson e
recentemente por Krzystof Pomian, o primeiro com a sua vingança
contra o tempo mecânico medido pelos relógios, criou o tempo da
verdadeira duração medido pelo relógio da metafísica, que mede o
tempo da consciência das grandezas intensivas; o segundo, na
preocupação de sistematizar a ordem do tempo numa cronosofia, acaba
por assumir que o tempo é filho da finitude. Neste poema temos um
agente infiltrado e a questão filosófica é colocada em termos
líricos, em que “Só o tempo do amor é verdadeiro”. E ainda mais, o
tempo é raro, “medido pelo vento”; e, são os braços do amor que
comandam o tempo e o torna infinito.
O Terceiro Jardim é um ágape, um
banquete amoroso, uma história de amor em que sobrevoamos, fiéis ao
juramento de Afrodite, a unidade ideal que é a unidade no outro
através dos afetos do coração. Lembremo-nos de Julia Kristeva quando
ela nos diz: “O fato de não termos hoje um discurso de amor revela a
nossa incapacidade de responder ao narcisismo... O amor é o tempo e
o espaço onde “eu” se dá o direito de ser extraordinário. Soberano
sem sequer ser indivíduo. Divisível, perdido, aniquilado; mas
também, e pela fusão imaginária com o amado, igual aos espaços
infinitos de um psiquismo sobre-humano”.
Há ainda, neste livro de Márcia
Cavendish Wanderley, um pátio secreto onde a terra devastada não
nutre e um outro pátio Eliotiano onde ecoa o fantasma de um poeta a
nos clamar: “Posso suportar tanta realidade?”
Mas, é a voz do feminino enquanto voz
de um Eros-Arcano que ouvimos neste jardim, e que “Converte corvos
agourentos/ em arautos da cor e da candura./ Chave da vida, enigma
decifrado./ Com ela abrem-se o quadro,/ os tempos e as idades”.
Temos aqui uma topografia da cesura
aquela que estava em Helena/Diotima/Safo, sobre todos os fogos do
fogo do amor e da poesia, encontrada em Heloisa/Sóror Juana Inês,
que nos fala sempre no cilício silenciada, esta Voz Embargada, que a
própria Márcia Cavendish Wanderley já mapeou.
É neste labirinto da solidão da nossa
América-Malinche que ouvimos ecoar as Sete Vozes e ainda outras
vozes dessa manhã feminina da utopia de um mundo melhor, que ecoam
em Suzana Albornoz, Rachel Gutiérrez, Angela Melim, Suzana Nunes de
Morais, Olga Orozco, Maria del Carmen Colombo, Suzana Vilhalba,
Edith Mirta Perez e ainda muitas outras vozes silenciadas que é
preciso resgatar.
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