Márcia Cavendish Wanderley
O terceiro Jardim
O terceiro jardim de Márcia
Cavendish Wanderley brinda o leitor com um itinerário por assim
dizer discretamente autobiográfico, se bem que generoso. A primeira
parte do livro, homônima, começa no Recife e termina no Rio de
Janeiro. Já Exteriores, enfoca os Estados Unidos e o Canadá. [ Na
última parte, Sentidos e sentimentos, a geografia não conta tanto.
Explica a autora, o livro é uma homenagem a Jorge Wanderley, seu
"iniciador no mundo da poesia e do amor". “Não compreendi”, poema de
Wanderley, inicia O terceiro jardim, a sugerir o mistério da vida,
ante o qual ele se inclina. E realmente, a surpresa e, por vezes, a
perplexidade caracterizam este belo livro de poemas de Márcia
Cavendish Wanderley, poeta cuja atitude inquisitiva (seus "por
quês?”) eleva as indagações poéticas a nível freqüentemente
metafísico, não raro iluminado por fina ironia.
Incisiva e muito pessoal, a poeta tece
episódios a revelarem uma vida de "beleza e alegria", na qual
evidentemente a tristeza tem seu lugar. Discreta, ela o faz mais
através de paisagens preferidas ou marcantes do que de personagens
determinadas. Locais tornam-se, assim, veículos de metáforas de
sentimentos e ações, ajudando a estabelecer uma variedade de climas
internos. Isto não quer dizer que estas paisagens não sejam
admiráveis como tais.
O instrumento poético aqui examinado é
rico, a evidenciar tanto o ouvido como a competência da poeta. Seu
verso flui, como, por exemplo, “Esta Rainha nua que te traz tem
manto leve, que arrasta docemente” (“O Passageiro da chuva”).
Contudo, em vários outros poemas, como “Retorno”, pode revelar-se,
contundente, “o nada o sujo a contaminada maçã/ pão queimado/
venenos desta manhã/ sem ti”. Recursos poéticos como a metáfora,
metonímia, elipse, personificação e ironia são sabiamente
utilizados, a enriquecerem os matizes e as possibilidades de
interpretação. Esta é poesia apaixonada, elegante e contida, com seu
quê de enigma -- elemento tão importante num poema. Através dele e
de seu questionamento e contemplação, a poeta consegue atingir nível
metafísico, como, por exemplo, neste verso, "Só o tempo do amor é
verdadeiro" (Bergson em Pernambuco) a evocar o rio de Heráclito. Mas
esta metafísica está longe de anular ou mesmo enfraquecer outro
importante aspecto dos poemas, a saber, o corpo como sede do erótico
(ex."Corpo", "Sexo em Pernambuco" e vários outros).
Alusões e citações ajudam a
estabelecer parentescos literários, através de epígrafes, títulos,
nomes e versos de outros poetas. Além do poema inicial de Jorge
Wanderley, epígrafes constam de trechos de João Cabral de Melo Neto,
Antônio Carlos Jobim (respectiva e apropriadamente sobre o Recife e
o Rio) e de Carlos Pena Filho. Aquelas de estrangeiros são de
Shakespeare, Wallace Stevens, Donald Justice, Louise Bogan e Zygmunt
Bauman. O "Não faça versos sobre acontecimentos” drummondiano não só
se torna título de poema, como também sua deliciosa refutação. O
poeta Ângelo Monteiro inspira “Estandartes”, e Borges e o romancista
Conrad são também citados. Outros comparecem obliquamente através de
suas personagens, como a Francesca de Dante e a Annabel Lee de E. A.
Poe. Sonoros ecos do grande João Cabral como que autenticam ainda
mais os poemas sobre o Recife, como o Capibaribe [“Não mereço”) além
da "faca só lâmina" em outro verso.
Outros escritores também ajudam na
construção deste alicerce literário através das epígrafes
mencionadas. O verso "Quem tem medo de Sylvia Plath?” (“Sylvia Plath),
por exemplo, ecoa o título da peça de Edward Albee. E o poema "E o
vento levou", celebra a tradução do título da estimável Margaret
Mitchell, tornado referência popular.
Notemos, também, o admirável e
divertido uso de processos surrealistas, a enriquecerem ainda mais,
poemas como “Bergson em Pernambuco”, “Yale”, “At nine” e “Sonho de
analisanda”. Neste ultimo neve e montanhas misteriosamente aparecem
na Rodovia Presidente Dutra.
Márcia presta justo tributo à corrente
feminina com poemas sobre duas poetas contemporâneas e a sua (e
dela) antepassada literária -- Sylvia Plath, Anne Sexton e Emily
Dickinson. Ao fazê-lo, a brasileira reconhece que além da poesia têm
em comum a temática do sofrimento ("embora algoz eu tenha").
Separa-se, contudo, das estadunidenses (duas das quais suicidas).
Pois, briosa proclama, com laivo irônico, "Não preciso/ ser Anne
Sexton nos trópicos./Não tenho psicanalista."
Concluindo, voltemos brevemente aos
itinerários de Os três jardins. O Pernambuco da infância se
assemelha ao Rio de Janeiro, mas também contrasta com a antiga
capital brasileira. Esta -- representada por Botafogo – assim como
Recife e Olinda, decaem, de certa maneira, a perder muito de seu
passado glorioso. Sua beleza e vitalidade não escondem por completo
os perigos do mar e das favelas. O Rio, visto pela poeta adulta,
amedronta mais que o Recife, “onde começa o amor, mas não acaba”
(“Para Jorge”). Já os poemas de “Exteriores” propõem contraste entre
a zona boreal do continente norte-americano (Nova Inglaterra dos EUA
e o Canadá) e o Brasil, representado pelo Recife, “lá onde o inverno
aquece e o verão é eterno” (“Para Jorge”). Apesar das queixas contra
o frio, a poeta se encantará com a paisagem outonal
e,principalmente, com a neve que cai (“Canadá”).
O Terceiro Jardim merece ser lido, não
só como experiência estética, mas também como lição de vida.
M. Angélica Guimarães Lopes.
University of South Carolina
Columbia, S. Carolina, EUA.
Sentidos e sentimentos
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