Marco Aqueiva
Sobre a publicação das obras
reunidas de Roberto Piva
“O menos estranho dos malditos”
Em mais de 45 anos sobram de seu
ofício radicalidade e coerência. Crítico radical do "Homo
normalis" e sua normalidade desinteressante e indesejável,
insubmisso às idéias dominantes, combatente ardoroso do domínio do
corpo pela razão, Roberto Piva ao longo de sua obra oferece-nos um
convite e um desafio.
Em Paranóia, a primeira realização de
maior fôlego e consistência deste paulistano inquieto, é recorrente
nos poemas a presença de um sujeito que, contrariando certo cânone
lírico vigente que confina o eu lírico em uma experiência meramente
ficcional, afirma-se em primeira pessoa buscando ex vi marcar suas
opções e recusas.
Da leitura dessa obra parece não haver
dúvidas de que teria sido insuflada por um mesmo sopro vital,
expressando o modo de inserção do sujeito no espaço urbano. De sua
deambulação noturna e alucinada pela metrópole pode-se dizer que um
olhar insubmisso excede os domínios do mundo visível, rebentando o
botox confortável da aparência que conforma e os espartilhos do que
se está habituado a ver: “noite profunda de cinemas iluminados e
lâmpada azul da alma desarticulando aos trambolhões pelas esquinas
onde conheci os estranhos visionários da Beleza”.
Hiperbólicas suas experiências ao
deambular pela cidade traduzidas em um ritmo pletórico, podendo ser
lidas como um fluxo tão dinamicamente contínuo que arrebenta os
limites das conexões sintáticas intra e entre versos, bem como as
grades divisórias que individualizam os poemas. A um só fôlego como
um único poema, Paranóia perfaz o dramático confronto entre Piva e a
metrópole em que se consubstancia, segundo nos parece, ora a
modulação de um verso mais arrastadamente alongado em que imagens
surpreendentes desenham não menos que a fé no onírico como meio de
resistir à desumanização, ora um tônus mais incisivo, expresso em
versos menores, e não menos vigorosos na força da recusa à cidade e
o que ela representa.
“eu preciso dissipar o encanto do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perjuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
perder o olhar nos telhados como
se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim”
No dramático confronto entre o “eu” e
o mundo, o sentimento de exílio e estranhamento assume sem recuos a
grande cidade contra a qual luta com visões, sonhos e alucinações
que, plasmados no real, a ele estão intransponivelmente ligados, vez
que a cidade é uma fantasmagoria interiorizada e o poeta contra suas
grades arremessa-se: “já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde
um enxame de Harpias vacilava com cabelos presos nos luminosos e
minha imaginação gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados
pela Noite”. Quer para dentro quer para fora trata-se ainda de um
sujeito ostentando o penoso sentimento de excesso de si em solitude
e étrangeté: “no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha
memória atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores
pulam no Caos”. À “Visão 1961”, do qual se extraíram as citações
acima, com referências à avenida Rio Branco e à rua Aurora juntam-se
“Visão de São Paulo à noite// Poema Antropófago sob Narcótico”,
“Praça da República dos meus Sonhos”, “Rua das Palmeiras”, “No
Parque Ibirapuera”, que trazem outras direções urbanas,
fantasmagorias e evocações que não cabem aqui citar, mas valem valem
a leitura e o assombro.
Do olhar que desce sobre uma obra como
a de Roberto Piva desejaria categorizar: não convém exigir menos que
a capacidade de compreendê-la em toda a coerência de sua realização
poética. Não me refiro apenas à Paranóia. Não é exato que, em face
das recorrentes citações, Piva reclame um leitor necessariamente
erudito. Podemos em boa medida lê-lo preguiçosamente, meio
distraídos, e talvez até seja mais fácil um leitor menos in(con)formado
alcançar a explosão que lhe desloque a visão para um sentido até
então despercebido.
Poesia absorvente, irresistivelmente
aliciante e como a mais fina iguaria exigente ao paladar. Poesia
assumida como palavra viva e palavra vivida, pois é assim que o quer
e o afirma o próprio autor nos inúmeros depoimentos que tem dado.
“Idéia e vida, poesia e vida, não podem estar separados”, tem
repetido Piva. Por mais que se dispensem ressalvas críticas a uma
declaração como essa, por mais que se contenha presentemente a voz
deste poeta, sua obra, é nossa aposta, será no futuro
inevitavelmente melhor assimilada. A despeito do homoerotismo e das
drogas. Um estrangeiro na legião até quando? Por tudo o que vem
publicando Roberto Piva, já não era sem tempo a iniciativa de
publicação de suas obras reunidas em três volumes pela editora Globo
sob a responsabilidade do crítico e professor Alcir Pécora. Além de
Paranóia, constam ainda do primeiro volume Ode a Fernando Pessoa,
Piazzas e Os que viram a carcaça. Piva não se limita ao tema do
confronto com a cidade e ao descomedimento da expressão embora a
transgressão esteja sempre presente no correr da obra. Mais além da
insubmissão e da embriaguez dionisíaca, o estrangeiro revela-se para
nós tão-só e fundamentalmente humano.
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