Marco Aqueiva
Um outro Quintana
1918 abarcando e sendo abarcado por
1969. Cambridge às margens do rio Charles junto ao Ródano em
Genebra. Um velho com 70 anos, por um extravio espaço-temporal,
encontra-se consigo mesmo aos 19 anos. Não o jovem aos 19 sendo
evocado pelo ancião septuagenário. Previamente se diga que não se
trata de uma mera licença poética. Ou de um indecoroso atentado
contra o bom senso, e bom gosto. É sim um desafio à compreensão
humana este insólito e vertiginoso encontro, tão real quanto se
torna para o narrador evidente e terrificante ver-se aos 70
inexplicavelmente frente a frente consigo mesmo na juventude. Ambos
profundamente desorientados e feridos por se verem retirados de sua
época e lugar para encontrarem-se em um “banco que está em dois
tempos e dois lugares”. Por tomar forma e presença diante de si
aquele que não é outro senão ele mesmo. “Éramos demasiado diferentes
e demasiado parecidos. Não podíamos enganar-nos, o que torna difícil
o diálogo.” A percepção de ambos colide frontalmente com a hipótese
de sonho, pois o insólito aceito vai impondo-se no chão ficcional
como fato registrado insistentemente como inequívoco. “O fato
ocorreu no mês de fevereiro de 1969”: proposta de base que se
identifica desde a primeira linha, o texto astuciosamente
engendra-se nessa confluência extremamente perturbadora de algo que
nos parece impossível mas que efetivamente teria ocorrido. É esta
uma súmula da fábula bastante conhecida do conto “O Outro”, do
prestidigitador argentino Jorge Luis Borges.
É provável que um leitor médio não familiarizado com literatura
fantástica se escandalize com o citado texto, julgando-o tão-só um
disparate. Ocorre que experiências a partir do uso do nonsense em
Borges parecem ter o propósito de produzir um “choque” no leitor.
Não é outra a leitura que faz de Mario Quintana o ensaísta e também
poeta Armindo Trevisan: promover o “choque” à maneira do koan
zen-budista. “Fazendo o leitor experimentar a sensação de que lhe
tiraram a escada em que estava apoiado, deixando-o suspenso sobre o
vazio.” Segundo Trevisan: “Toda a poesia de Quintana é uma poesia da
inteligência. Mesmo quando ele pratica exercícios lúdicos, sua
finalidade é expulsar o leitor do mundo bem-comportado, arranjado
dentro de princípios lógicos e tecno-lógicos em que ele costuma
habitar.”
Mario Quintana, de quem se comemora o centenário de nascimento em
2006, tem recebido justíssimas homenagens de tal sorte que parece
estar só agora efetivamente logrando sair dos limites regionais a
que tem sido de certo modo confinado. Conseguindo ultrapassar o
transitório da consagração em vida (O bom velhinho foi e é sucesso
de público!) adentra no simpósio intemporal em que já estão
confabulando animadamente Bandeira, Drummond, Cecília... – amados
por ele Quintana, sendo igualmente amado por eles Deuses que no
pináculo saúdam seus pares. Se é conveniente julgar um grande poeta
pela sua qualidade no manejo das palavras, pode-se medir sua
genialidade também pela extensão dos amigos de letras valorosos que
cultiva: não são outros que Drummond, Vinicius, Bandeira – o que me
lembra uma chapa tirada em 1966 em casa de Rubem Braga, e na qual
ainda toma parte Paulo Mendes Campos, como também necessariamente
figuram o anfitrião, possivelmente atrás da ocular da câmera, e
ainda, embora in absentia, Cecília Meireles, Erico Verissimo,
Augusto Meyer, Paulo Rónai etc etc etc.
Mario Quintana Desconhecido (Porto Alegre: Brejo, 2006) é um belo
ensaio sobre o “Poeta-Mor do Rio Grande do Sul”: entre o gaúcho,
homem da fronteira, cosmopolita auto-exilado na capital gaúcha, e o
poeta aos olhos do leitor e das lentes televisivas há “alguns”
Quintanas sondáveis, por descobrir. Eis assim o que propõe o autor
do ensaio, Armindo Trevisan, o dileto amigo de Quintana que se
incumbiu de dar continuidade à Agenda Poética, quando este não o
pôde mais fazer. Se o poeta é com muita razão uma imagem do homem,
poucos em verdade sabem que Mario Quintana se ocupou da tradução de
aproximadamente 120 títulos de autores como Marcel Proust e Virginia
Wolf. Se o poeta insere sua experiência literária na procura de uma
voz própria, poucos em verdade sabem o quanto Quintana dialoga com,
dentre outros, Camões e Shakespeare, António Nobre e Cesário Verde,
Machado de Assis e Manuel Bandeira. Se este poeta gaúcho de
além-fronteiras se tornou {{pop}}, como bem o assinala o ensaísta,
ele o faz “com magnífica ironia’ (para utilizarmos uma expressão de
Jorge Luis Borges)”, pois, a despeito da mitificação midiática, não
outro que o leitor atento ao texto se vê jogado contra si mesmo,
contra as próprias convicções. “Os verdadeiros versos não são para
embalar – mas para abalar.”. Uma das sábias e diretas lições de um
grande feiticeiro das letras.
Méritos para Trevisan que expõe ao leitor o quanto de grandeza e
condição humana se revela no gênio Quintana. O quanto tem se
escondido aos olhos do leitor. “Não sei de outro poeta em que o
poema seja uma consubstanciação tão perfeita entre viver e cantar,
entre sofrer vivendo e sofrer cantando.” Sorte nossa que Armindo
Trevisan tenha ignorado a lição do Mestre: “Se é proibido escrever
nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever
sobre Shakespeare e Camões.”
2006 é ano comemorativo de Borges e Quintana, embora desconhecidos
de vida e obra, velhos companheiros de labirintos e espelhos,
inteligência, vigília e memória, sonho e arte, finamente amalgamados
na obra de ambos.
Iniciamos esta resenha remetendo o leitor a um conto de Borges em
que passado e futuro se encontram à maneira de um espelho mágico. “O
poeta canta a si mesmo / porque de si mesmo é diverso” – diz-nos o
alegretense de Espelho Mágico e Esconderijos do Tempo, publicado em
1951 e 1980 respectivamente. Citando uma bem conhecida analogia
borgiana, da mesma forma que o homem de ontem não é o de hoje nem
poderá ser o de amanhã, “o texto é o rio mutável de Heráclito”.
Trevisan logrou retirar as máscaras midiáticas que pesam sobre
Quintana, preparando o leitor para o fluir caudaloso de súbitas
revelações.
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* resenha publicada em O Escritor, revista da UBE – União Brasileira
de Escritores, N. 114, dez. 2006.
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