Marco Aqueiva
Tradições, tradições e o
circunstancial
É lugar-comum na crítica aludir-se à
inexaurível riqueza do texto literário. Sim, a despeito da
competência e do esforço hábil e atento do crítico, o texto não é um
sistema objetivo, preciso e controlado. Ora, a interpretação é um
processo de aproximação que revela não só a realidade do objeto
estudado mas também valores e cosmovisão do intérprete. Falamos,
assim, do relativismo e limites do processo interpretativo.
Em “Um Homem e suas Sombras”, do poeta Samuel Penido, falecido ano
passado, impressiona à primeira leitura a recorrência do termo
“sombra” e seus correlatos, aludindo a uma espécie de aventura em
busca do conhecimento. Aventura do ser humano como poeta; do poeta
como ser humano.
Sombras, sombras fugitivas.
Teimo em agarrá-las, tocar-lhes as faces
sempre voltadas para um outro lado
um lado que minhas retinas jamais atingiriam.
(“A derradeira aventura”, p.11)
Pudéssemos livremente
em suas águas deslizar
como peixes leves e inocentes
mas é outro esse mar
que agora nos arrasta
acerbamente
mar de sombras
cada vez mais fundo.
(“Esse mar de sombras”, p.20)
Arqueologia das lembranças e virtualidade do incognoscível. O que se
ignora do passado e o que se supõe da existência mas não se alcança,
a consciência do poeta é aquela que procura ir pela última vez –
como o sugere o título do primeiro poema citado – ao encalço das
sombras, da “própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes”
, da(s) resposta(s) ao questionamento inexaurível e essencial da
existência humana. Trata-se, então, de uma viagem que o poeta
empreende à procura do conhecimento da condição humana. Aventura ao
autoconhecimento: sempre a mesma em todos os tempos e lugares. Não é
à toa, portanto, que nesta viagem primordial Penido se remeta como
marco inicial à paradigmática viagem de Ulisses, como também não o é
a presença de outro guia espiritual: não outro que Eros.
Porque deve ser ferido
de morte precoce,
quem de corpo nu
e alma livre
só ao deus do amor
louvou?
E louvando-o, mais se humanizou?
(“Eros-Tanatos”, p.15)
E eis o poeta a revoltar-se contra este daimon Eros-Tanatos. Não é
sem arrepanhada exasperação que ele se confessa seguidor de Eros;
porém, como ser adepto de Eros se ele é também ambiguamente Tanatos?
É notável que o termo dessa obsessiva busca pelo conhecimento e pela
verdade é antecipadamente sabido.
Estarei pronto para despitar a morte,
seus cantos de sereia?
(“Barco, eterno sobrevivente”, p.12)
Não o sabe, no entanto, essencialmente que o conhecimento cabal da
condição humana (e que humano soube, sabe saberá?!) é em si
inalcançável e é em si incomunicável. Já disse Octavio Paz que a
imagem, qualquer imagem arquetípica, é cifra da condição humana.
Inalcançável mas permanentemente buscada. O conhecimento que se
acolhe então na obra estudada é o da experiência literária. O
inefável não é senão um esforço da linguagem poética de alcançar o
que não pode ser efetivamente alcançado. A obsessiva busca é
ilusória. A palavra poética confina e limita-se a miúde com o que
não pode ver-se além: coisas fugidias, irreais e mutantes. Sombra.
Sombras.
Ave solta, branca, sensível
transpões colunas de ar condicionado
e espaço afora avanças
cercado de papéis em branco.
Atrás, sinais de rubra jornada:
letras, números de tinta viva.
Agora avanças, alado e branco
em céu também branco.
Nesse grande branco, descansas.
(“Tua história”, p.41)
Por fim é necessário ainda dizer que, se Samuel Penido em “Um homem
e suas sombras” encarna os mais íntimos transes do homem, o faz
refazendo o gesto elegíaco que tanto influenciou, sedimentou e
caracteriza a tradição lírica de língua portuguesa. Engana-se,
contudo, quem confina Penido nos limites do sentimentalismo
acrítico. “Eu sou eu mais a minha circunstância”, cravou o espanhol
Ortega y Gasset. “Modernidade é consciência”, o fez o mexicano
Octavio Paz. Se razão é razão e sentimento é sentimento, quem negará
que a poesia, não só de língua portuguesa, produziu muitos bons
frutos quando à polpa da confissão a razão arreganhou os dentes.
Assim é o viscoso sentimento difícil de apreender, como o é lícito
presumir que Samuel Penido tinha toda a certeza quanto à extensão,
grande extensão, de sombra e sombras que há em cada homem.
Melancólico e baudelaireano diz sobre a impossibilidade de sonhar em
tempos como o nosso
Já ouvimos todos os ruídos
e os olhos se cansaram de ver.
Embora em maus lençóis
tentamos ganhar
uns minutos de trégua.
Falta-nos, porém, a chave mágica
para desligar tanta realidade
a chave de uma câmara secreta
onde seria possível adormecer
talvez sonhar.
(“A ópera do mundo”, p.45)
“Em um homem e suas sombras” compraz-se o poeta com essa obsessiva e
ilusória busca pelo conhecimento de si mesmo, como o fizeram e o
fazem os poetas das mais diferentes tradições, de todos os tempos e
latitudes. Compraz-se também o leitor que compartilha dos mais
íntimos transes do poeta – que não outro é contraditório, é ambíguo,
é daimônico em toda a turbulência da natureza humana, demasiadamente
humana. Compraz-se enfim a Poesia acima do circunstancial: em que
pese o contexto da produção literária contemporânea, época em que os
poetas se multiplicam e os leitores minguam, quiçá o descentramento
das possibilidades de divulgação da obra literária leve o poeta a um
público cada vez maior e o leitor novamente descubra que a boa
literatura não está morta.
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* resenha publicada em O Escritor, revista da UBE – União Brasileira
de Escritores, N. 115, abr. 2007.
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