O que acontece com o
sentimento de identidade de uma pessoa que se depara, diante do
espelho, com um rosto que não é seu? Como é possível manter a
convicção razoavelmente estável que nos acompanha pela vida, a
respeito do nosso ser -essa ficção indispensável- no caso de
sofrermos uma alteração radical em nossa imagem?
Perguntas como essas
provocaram um intenso debate a respeito da ética médica depois do
transplante de parte da face em uma mulher que teve o rosto
desfigurado por seu cachorro em Amiens, na França.
Deixo de lado os aspectos da discussão motivados pela rivalidade
profissional, em que argumentos éticos podem mascarar a disputa por
prestígio e glória entre equipes médicas da França e da Inglaterra.
Interessa-me a relação subjetiva entre a identidade e o rosto. Essa
relação é tão íntima que, dentre as várias possibilidades de
mutilação física, consideramos hediondas as que destroem partes do
rosto. Nesses casos, empregamos o termo desfiguração.
Quando o rosto se
torna irreconhecível, a figura humana se desfaz. A legislação
britânica que condena o transplante de rosto em consideração à
(previsível) crise subjetiva ante uma transformação radical dos
traços da face desconsidera que, mais despersonalizante do que
encontrar no espelho um rosto alheio, é não encontrar rosto nenhum.
Ou não: talvez seja menos custoso para um acidentado suportar o luto
pela perda da figura facial -e manter sob as ataduras a
identificação imaginária com o rosto antigo- do que o estranhamento
diante de um rosto outro.
Ilusão necessária
Mas penso que vale a
pena o trabalho de refazer essa identificação. O que chamamos,
confusamente, de identidade não tem nada a ver com o ideal -sempre
fracassado- de nos mantermos idênticos, seja a nós mesmos, seja à
imagem ideal que pretendemos oferecer ao olhar do outro. A
identidade é uma ilusão necessária, de unidade e continuidade do eu.
Ocorre que o eu se constitui a partir da imagem corporal. Nosso
sentimento de permanência e unidade se estabelece diante do espelho,
a despeito de todas as mudanças que o corpo sofre ao longo da vida.
A criança humana, em um determinado estágio de maturação,
identifica-se com sua imagem no espelho. Nesse caso, um transplante
(ainda que parcial) que altera tanto os traços fenotípicos quanto as
marcas da história de vida inscritas na face destruiria para sempre
o sentimento de identidade do transplantado?
Talvez não. Ocorre
que o poder do espelho -esse de vidro e aço pendurado na parede- não
é tão absoluto: o espelho que importa, para o humano, é o olhar de
um outro humano. A cultura contemporânea do narcisismo, ao remeter
as pessoas continuamente a buscar o testemunho do espelho, não
considera que o espelho do humano é, antes de mais nada, o olhar do
semelhante.
É o reconhecimento
do outro que nos confirma que existimos e que somos (mais ou menos)
os mesmos ao longo da vida, na medida em que as pessoas próximas
continuam a nos devolver nossa "identidade" -aspas necessárias.
Sagrado e insubstituível
O rosto é a sede do
olhar que reconhece e busca reconhecimento. O rosto é sagrado, disse
e escreveu insistentemente Emmanuel Lévinas. Por que sagrado? O que
há de insubstituível em um rosto, que faz dele o centro da nossa
humanidade e a sede imaginária do eu? É que o rosto não se reduz à
dimensão da imagem: ele é a própria presentificação de um ser
humano, em sua singularidade irrecusável. Além disso, dentre todas
as partes do corpo, o rosto é a que faz apelo ao outro. A que se
comunica, expressa amor ou ódio e, acima de tudo, demanda amor.
A literatura pode
nos ajudar a amenizar o drama da paciente francesa. O Robinson
Crusoé do livro "Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico" (Bertrand
Brasil), de Michel Tournier, perde a noção de sua identidade e
enlouquece, na falta do olhar de um semelhante que lhe confirme que
ele é um ser humano. No início do romance o náufrago solitário tenta
fazer da natureza seu espelho. Faz do estranho, familiar,
trabalhando para "civilizar" a ilha e representando diante de si
mesmo o papel de senhor sem escravos, mestre sem discípulos.
Mas depois de algum
tempo o isolamento degrada sua humanidade. O Robinson de Tournier
passa a se identificar com os animais, falar com os macacos e rolar
na lama com os porcos. "Narciso de um tipo novo, abismado de
tristeza, com recrudescido nojo de si (...), compreendeu que o rosto
é essa parte da carne modelada e remodelada, aquecida e
permanentemente animada pela presença dos nossos semelhantes."
Na versão de
Tournier, a entrada em cena do selvagem Sexta-Feira vem salvar
Robinson Crusoé não da solidão, mas da loucura.
A paciente francesa,
que agradeceu aos médicos a recomposição de uma face humana, ainda
que não seja a "sua", vai agora depender de um esforço de tolerância
e generosidade por parte dos que lhe são próximos.
Parentes e amigos terão que superar o desconforto de olhar para ela
e não encontrar a mesma de antes. Diante de um rosto outro, deverão
ainda assim confirmar que ela continua sendo ela. E amar a mulher
estranha a si mesma que renasceu daquela operação.
Maria Rita Kehl é psicanalista
e ensaísta, autora de, entre outros livros, "Ressentimento" (Casa do
Psicólogo).