Mariano da Rosa
L’art pour l’art
“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Enquanto lutamos
Mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas tão fortes
Como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse teria
Poder de encantá-las
Lúcido e frio,
Apareço e tento
Apanhar algumas
Para meu sustento
Num dia de vida.”
(Carlos Drummond de Andrade)
Platão discute a palavra “poiesis” (da
qual deriva “poeta”), que, originalmente, significa “construir” ou
“fazer”, no sentido mais lato. “Toda causa de uma coisa que passa do
não ser para o ser é ‘poiesis’, de sorte que as atividades
manufatureiras em todos os ramos da indústria são formas de ‘poiesis’,
e todos os artífices e oficiais são ‘poietai’ (poetas). Entretanto,
não se chamam poetas, mas recebem outros nomes, e de toda a
‘poiesis’ só a parte que se refere à música e aos versos se
distingue por ser chamada pelo nome que realmente pertence a todas.
Pois só esta comumente se denomina poesia e só os que se ocupam
dessa parte da ‘poiesis’ são denominados poetas.” (Banquete – 205c)
Através desse argumento o filósofo
grego prova que artistas e poetas estão em igualdade de condições
com os demais manufatores quanto à sua atividade produtiva, havendo
apenas um porém: nos produtos dos ofícios industriais os seres
humanos criam coisas reais; mas na poesia, na pintura e nas outras
artes que proporcionam prazer criam simulacros ou imagens de coisas
reais, que têm as aparências de coisas destituídas, no entanto, de
realidade, tornando-se, conseqüentemente, em essência, uma ilusão,
um engano. Nessas condições, conclui, a atividade do artista é uma
“espécie de jogo a que falta seriedade.” (República, L. X, 602b)
O pensamento de Platão justifica-se
pelo fato de que os filósofos gregos se preocupavam mais com a
função educativa e o impacto social das artes (incluindo a música e
a poesia), julgando as suas obras, como os outros produtos da
indústria humana, pelos seus resultados, minimizando o valor
estético que cada uma delas expressava. Tanto os gregos como os
romanos tinham uma atitude eminentemente objetiva em relação às
artes: todas as suas obras eram feitas com uma finalidade. Não havia
o conceito das “belas-artes” (“designação dada às artes plásticas,
especialmente a pintura, a escultura e a arquitetura”) – todas as
artes eram artes de uso. Dois princípios regulavam a sua avaliação:
a excelência do trabalho e a sua eficácia na consecução dos
propósitos para os quais tinham sido criadas.
A arte cumpria uma função social,
servindo, a sua influência, para “modelar” a vida do indivíduo e a
estrutura da sociedade. A poesia, por exemplo, não era monopólio de
um público selecionado, mas, como ocorria com os poemas épicos
nacionais, formava a base do sistema educativo, ocupando lugar de
destaque em todas as reuniões sociais, tanto quanto nas cerimônias
religiosas, além de tratar-se de um elemento fundamental durante a
realização dos grandes certames atléticos. De acordo com esta ótica
– as obras de arte como artefatos produzidos com um objetivo
definido, tendo o artista status de manufator (manufatura era
sinônimo de indústria de oficina) – Platão chegou a propor, mais por
causa do perigo da sua influência, que se expurgasse Homero
(República, L. III, 387b). Segundo o filósofo, se “Homero fosse
realmente capaz de ajudar os homens a serem virtuosos, seus
contemporâneos teriam permitido... que ele vagasse cantando as suas
canções? Não o teriam tratado como ouro precioso? Não teriam pedido
a ele para que se hospedasse em suas casas? Não, poetas são
imitadores da virtude. Não dizem a verdade. O que escrevem –
continuou Sócrates (figura de ficção, protagonista de um conjunto de
peças ou dramas chamados ‘Diálogos’) – é como uma face envelhecida,
sem uma beleza de verdade.” Em um contexto social que avaliava
qualquer manufatura pela sua utilidade nada mais natural que Platão,
o Símbolo da Racionalidade, que usava os parâmetros da lógica para
sustentar as suas idéias, não concordasse com o emprego dos poetas
na instrução e educação dos jovens, considerando as suas obras
inferiores aos manuais técnicos e científicos.
Em seus estudos sociais, Platão
destacou a idéia da “especialização”, enfatizando que cada artífice
é um especialista no “bem” do seu ofício particular, ficando
incumbido o “estadista-filósofo” - o “artista supremo” – de avaliar
os diversos “bens” dos ofícios particulares de acordo com a sua
utilidade em uma sociedade planificada. É óbvio que estamos diante
da primeira utopia humana historificada, embora importa ressaltar
que, quanto ao aspecto sociológico, a teoria grega da arte
intersecciona-se com as noções marxistas relacionadas ao desejo de
avaliar as atividades artísticas em face da contribuição que se
presume que prestem à sociedade e à realização de um ideal mais
abrangente de valor social.
Mas, porque recorri a tais referências
para fundamentar essa análise?... A fórmula emprestada ao título não
confere, contudo, sentido absoluto à mensagem desse ensaio, pois,
embora não seja um fundamentalista quanto à defesa de todas as
idéias platônicas (sob pena até de autocondenação!), é inegável que
o princípio “L’art pour l’art” (simplesmente ininteligível para os
gregos do século V a.C.), uma vez assumido pelo Mundo Moderno que,
canonizando-as, elevou as artes a um altar cultural ao qual poucos
(apenas a “aristocracia” – ou “aristodemocracia”) têm acesso,
institucionalizando-as como ícones da elite social, culminou com a
imputação às obras artísticas de atributos negativos, alienantes,
narcotizantes – adjetivos estes que foram incrementados pelo poder
imperialista do Capitalismo Pós-Moderno, tanto quanto pela evolução
tecnocientífica que alcança o clímax na “Era do Computador”.
Testemunhamos, cada vez mais, a diminuição da influência das artes
sobre a sociedade, justamente porque, sob os auspícios da “Mídia
Desconstrucionista”, instituiu-se uma abísmica fronteira entre o
povo e a cultura que, mais do que nunca, tornou-se sinônimo de
hedonismo, tendo até como metáfora a lúxuria!...
Mas, porque recorri a tais referências
para fundamentar essa análise, se, como poeta, Platão proibiria a
existência da minha classe social na cidade ideal que delineou em “A
República”?! Nem mesmo quando uma obra de arte, seja ela qual for,
torna-se “inconseqüente” (- Se alguma delas chega a esse estágio ou
pode ter essa definição?), eu concordaria com a teoria platônica,
pois a própria democracia, contra a qual o filósofo tinha
preconceito (em virtude das suas experiências diante dos governos
democráticos gregos, como aquele que executou Sócrates, seu
professor e amigo, em 399 a.C., sob a acusação de irreligiosidade e
corrupção da juventude), faculta a estas obras (e aos seus autores)
a possibilidade de existirem, mesmo porque só em face destas (e
destes) as verdadeiras (veículos de valores eternos que sobrepujam o
esteticismo superficialista, como o idealizavam os filósofos
gregos), e os verdadeiros, se auto-afirmam como tais.
No entanto, não podemos apenas
culpabilizar os efeitos colaterais do evolucionismo histórico pela
“Síndrome de Desertificação Cultural” que, extrapolando as
fronteiras terceiro-mundistas, seu paradisíaco berço, neste Terceiro
Milênio – a hipotética “Era de Ouro da Humanidade”, procura, em nome
do Ideal Imperialista da Globalização, criar raízes transnacionais,
formando um Nicho Sociológico de microorganismos futuristas –
potenciais reprodutores das pragas “neo-pós-modernas” do “Animalismo
Psicossocial” e do “Alienismo Tecnocientífico”, sintomas da perda de
identidade de uma geração e o conseqüente aborto da consciência do
“zeitgeist” (o “espírito da época”)! Nós, os Sacerdotes da
Comunicação Social (Jornalistas, Artistas, Escritores, Desportistas,
Políticos, etc.) e os Profetas das Ciências Psicossociais
(Sociólogos, Antropólogos, Filósofos, Psicólogos, Historiadores,
etc.) somos co-partícipes do caos que “L’art pour l’art” – como
axioma da sociedade moderna – deflagrou!... “Qual é o fim do meu
trabalho?”, “Qual é o destino da minha obra?”; ou, “Que conteúdo
corporifica?”, “Que valores transmite?”(...). Estes deveriam (e
devem!) ser os objetos de instigação da nossa autocrítica!
Quanto a poesia, produto da manufatura
cultural, “artefato literário” (levando-se em conta que “artefato” é
derivado do latim “arte factu”, que significa “feito com arte” –
entendendo-se “arte” como “a atividade que supõe a criação de
sensações ou de estados de espírito de caráter estético carregados
de vivência pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo
de prolongamento ou renovação”), importa lembrarmos que de tão suma
importância é a sua existência, ora banalizada pela “Geração do
Mundo Virtual” (que não tem tempo para a essência!), que não há
sequer uma religião - como matéria filosófica, ética, metafísica –
sinônimo de “crença na existência de uma força ou forças
sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que
como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s) – que não a use como
forma de comunicação: do “Lirismo Metafísico” ao “Misticismo
Futurista”, do “Simbolismo Esotérico” ao “Racionalismo Materialista”
, do “Naturalismo Científico” ao “Espiritualismo Mítico”! Eis a
poética filosófica - Do “I Ching” (1500 a.C.) ao “Velho Testamento”
(1500 a.C.), de “Os Upanishads” (700 a.C. – 400 a.C.) ao “O Caminho
e Seu Poder – Lao Tzu” (Século III a.C.), de “O Avesta” (500 a C.)
ao “Analectos de Confúcio” (Século IV – V a.C.), de “O Novo
Testamento” (64 – 11- d.C.) ao “O Corão” (Século VII d.C.), entre
outros.
É desnecessário explicar a razão desse
fenômeno - envolvendo a arte poética e a religião – que, embora
ainda sobreviva historicamente no Oriente (fundamentalmente
“espiritualista”), no Ocidente (essencialmente “Materialista”) está
em vias de genocídica museificação, ficando o seu artífice relegado
ao “Reino das Animalescas Sub-Espécies” (em fase de extinção), cujo
destino não é outro senão o laboratório do sarcófago das bibliotecas
urbanas, onde os vermes necrófagos das “belas-letras” ficarão
isolados até a autofagia completa (visto serem considerados
antropofágicos).
“Ser poeta? É sobretudo não fazer
nada”. A frase – que, para mim, reclama mais uma interrogação do que
um ponto final - é de Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura. O que
o escritor mexicano quis dizer?!... Pressupondo que a reunião de
verbos, substantivos, conjunções, artigos, pronomes, advérbios, etc.
– a construção de uma expressão, enfim, independente da arquitetura,
objetiva transmitir, comunicar uma mensagem, somos obrigados a
entender, através da disposição das palavras, o óbvio: o que está
escrito – “Ser poeta é sobretudo não fazer nada!”- a despeito do
filosofismo subentendido que, entretanto, não pode
transcendentalizar o sentido do vocábulo, se o autor assim o
quisesse, a ponto de priva-lo de realidade! Prefiro a psicologia (da
“Composição”) de João Cabral de Melo Neto (que, aliás, com
“p-maiúsculo”, batiza o poema no qual mostra que a sua obra é fruto
de seu trabalho – e não do acaso). Eis alguns trechos: “Não a forma
encontrada / como uma concha, perdida... Não a forma obtida / em
lance santo ou raro... Mas a forma atingida / com a ponta do novelo
/ que a atenção, lenta, / desenrola, / aranha...”.
Mesmo que seja “um cão sem dono a
tecer os fios da canção” (Letra da música “Pedras Rolando” – CD “Sol
de Primavera” – Beto Guedes) o poeta não poderá fugir do compromisso
que, por força da sua natureza, ele tem consigo mesmo: “Grito e se
grito é para que meu grito / Seja a revelação deste Infinito / Que
eu trago encarcerado na minh’alma!” (Augusto dos Anjos). A angústia
de Picasso, por ocasião do ato de criação, pelo menos não o condena
ao papel de coadjuvante ou testemunha da sua obra, mas como um
réu-confesso diante dela (e de todos!) o “desmascara”! Os estudos
acerca da inspiração que recebia, parafraseando os especialistas no
assunto, podem ser resumidos dessa forma: Quanto aos momentos de
criação, “são dominados pela angústia.”; quanto ao seu único desejo,
“ser ele próprio.”; quanto a sua atitude, “agia de acordo com
sugestões que lhe chegavam de muito além dos seus próprios
limites.”; quanto a sua consciência, “via descer sobre si uma ordem
superior de exigências.”; quanto a impressão que tinha, “era
compelido a esvaziar o seu espírito de tudo o que acabava de
descobrir.”.
Conclusão: Nem preciso falar que uma
obra artística nasce quando o “finitu” e o “infinitu” “copulam”
dentro do Ser Humano! Se por instintividade apenas, ou por amor, o
tempo dirá... Enquanto isso não acontece importa que nos lembremos
de duas coisas, se quisermos que a poesia não se torne tão somente
um fóssil raro: primeiro – a poesia, como a tragédia grega (cujos
textos, apesar de escritos há 2500 anos, ainda exercem fascínio
hoje), deve ser, simultaneamente, “um fenômeno social, estético e
psicológico” (definição do filósofo e historiador Jean-Pierre
Vernant, especialista no homem grego antigo, a respeito da
onipresente atualidade da Tragédia Grega a despeito do progresso
tecnocientífico que, ao contrário do que se pensava, “tornou o
gênero mais atual do que nunca”); segundo – o poeta deve ser
protagonista do seu tempo, como enfatizou Drummond nos versos
abaixo, com os quais finalizo, por ora, este ensaio.
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, NÃO NOS AFASTEMOS.
NÃO NOS AFASTEMOS MUITO, VAMOS DE MÃOS DADAS.”
(Carlos Drummond de Andrade)
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