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Mário Dirienzo


 


A Garça e a graça - Matizes do branco


 


 

Em agosto de 1992, a poeta Dora Ferreira da Silva passou a contemplar as garças, que, em agosto, como flores grassam à margem das águas e na copa das árvores do Parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo. Tal contemplação ensejou a série de poemas intitulada “Garças”.
Os poemas foram escritos sob o signo do alvor e das asas, sob os auspícios da “graça” e em torno do vôo e do pouso das garças. A par da graça natural da garça, surge nos poemas a presença enigmática de um “amigo”.

Acredito que o amigo possa ser interpretado como o aspecto sobrenatural que afirma e transcende o natural. Aceita tal premissa, pode-se concluir que o amigo, branco e alado como as garças, – é um anjo.

No primeiro poema da série, Dora está só com a Natureza. Se há empatia entre a poeta e as garça, há, também, um abismo entre o ser natural, o ser animal e esse ser que é o homem, que tem o angustiante saber da separação entre sujeito e objeto; que tem consciência da morte e sente a vertigem da liberdade. Assim, no segundo poema da série, Dora se coloca tanto “além da cena da caçada (as garças caçando o peixe no lago do Ibirapuera)” quanto “aquém” dessa cena “e de qualquer moldura”. Ou seja, Dora não se enquadra na Natureza. O ser humano traz desgraça para a graça natural. Embora apenas veja a Natureza com alheamento contemplativo, Dora, ciente da natureza predatória do Homo sapiens, declara: “eu sou o maior perigo.”

Daí, aparecer no segundo poema, ao lado da poeta, “o” poeta. Poder-se-ia, em princípio, entender o aparecimento do poeta como um desdobramento da consciência da própria Dora. Mas tal desdobramento da consciência tem raízes no Inconsciente e no Ser no seu sentido mais profundo. O poeta, em sendo um desdobramento da consciência, é, outrossim, um mensageiro de algo que ultrapassa todas as coisas: é um mensageiro do Self ou de Deus.

O poeta, a princípio, assoma como um ente masculino. Contudo, tão agregado está ao Inconsciente da poeta e ao invisível contido na brancura das garças que transcende a separação dos sexos e tem a androginia e a assexualidade dos anjos.

Dora alude a “alguém” além dela e do poeta, sendo que esse poeta “contempla do invisível”. Esse alguém é Deus, o Pai da Graça, na qual estão imersas as garças. Deus, tecendo em silêncio e solidão finíssimos fios numa tela erguida além da poeta, do poeta e das garças, em primeira e última instância, é o autor do Poema ou da Pintura, que é a Vida.
Versos lapidares da série são estes do terceiro poema: “E elas (as garças) compuseram na fronde verde a música do alvíssimo.”

Há, com efeito, um contraste entre Dora e seu amigo poeta. Os poemas do amigo são o seu olhar. Seus poemas “se internam no indizível”. Se a representação arquetípica do masculino é celeste, abstrata, espiritual, a feição simbólica do feminino é telúrica, concreta, material. Assim, os poemas do amigo perdem-se nas plagas do impronunciado. Já os poemas de Dora são como os reclamos de Maria nas bodas de Caná por vinho para os convivas. O amigo é o Verbo desencarnado. Dora tem fome de Encarnação, de plantar os poemas celestes nesta Terra.

Mas, deveras, há um conúbio entre o inefável e o dizível, entre o visível e o invisível, entre o celeste e o terrestre. O manifesto ou patente, de um lado, e o latente ou virtual, de outro, são os “diversos dons do contemplar”: os ângulos inseparáveis da visão.

Um poema é tecido ao arrepio dos conceitos. No jogo metafórico, as garças são brancos botões que desabrocham. E essas aladas flores “afloram” – tocam ligeiramente a superfície – das águas com seu vôo “lunar”. No conúbio entre o masculino e o feminino, “o corpo e a alma”, pelas asas da garça, a flor ascende aos céus, tem seu ser assimilado à brancura da Lua.

A palavra “graça” pode significar dádiva natural, humana ou divina, um milagre, um dom, algo “gratuito” ou algum favor dispensado, um ato de clemência ou benevolência. Graça igualmente designa o nome das pessoas. “Qual é a sua graça?” quer dizer: “qual é o seu nome?” O termo também significa beleza, leveza, elegância. O vocábulo possui ainda a acepção de “coisa engraçada”, pilhéria, caçoada, galhofa, – brincadeira.

Nas garças, Dora enxerga toda essa gama de significados. Se as garças são um “estado de graça”, não possuem a aura severa dos ícones bizantinos, tampouco o astral estressado do citadino e contínuo labor. Até o próprio trabalho poético, caindo em desbragada pilhéria, não se leva a sério, pois Dora ri-se das rimas e da armadilha que são as rimas, esgarçando-se entre as garças e a graça.

O Sol aparece no quarto poema, observando, de seu “alto reino” a lunar e sublunar árvore de garças. O astro-rei indaga, munido das apolíneas e simétricas luzes da razão, o que fazem aquelas pálidas criaturas. Dora responde que elas “fazem nada”, assim como o poema, que, “lunático”, jamais tem uma índole utilitária, pois é sempre sem porquê.

O amigo, esse “anjo da guarda”, é uma figura tutelar e, portanto, secundária. Como Virgílio e Beatriz na Divina Comédia, o amigo é uma mediação que prepara a eclosão de um mistério desmedido. Esse mistério é um infinito disco de giro branco, cuja circunferência está em nenhures, cujo centro está em toda parte. O disco de perpétuo giro é branco porque efetua a soma de todas as cores. Todos os matizes se diluem no branco: o amigo, as garças, Dora Ferreira da Silva, seus leitores, o consumar dos séculos, tudo, rumo à “Noite Escura”.

No sexto poema, a garça adquire a aparência de uma alma, “desertada por um corpo amante já distante”. A cada poema, à medida que a noite se aproxima, vão perdendo o nome, pois “flutuam as garças do tudo ao nada/e a tarde com suas sombras nos apaga.”

As garças, diz o décimo quinto poema, “precisam de um olhar mais alto”, assim como a poeta, depois que seu amigo foi-se com tempo, precisa que Deus acenda seu olhar.

Já na calada da noite, Dora está vestida de branco; revestida de garça: “Ser numa garça: graça de Deus”. Como o esvaído amigo, as garças são anjos, que estranham a cor de terra. O vôo e o dialeto das garças são um segredo que ultrapassa até o Amor e sua sede de toque: de Encarnação. O Eterno estaria sob a forma dessa “ave pensativa”, mas esse alado pensar está aquém e além do conceito ou definição – é a “curva de um sorriso que significa e nada diz”.

Foi com um sorriso que Beatriz se despediu de Dante na Divina Comédia: “E ela, embora parecendo estar tão distante, olhou-me e sorriu, para logo voltar a contemplar a Fonte Eterna”. E foi com um sorriso que o amigo de “Garças” se afastou. E as garças são essa alva “curva de um sorriso”. Um sorriso que vai desaparecendo inaugura um melodioso e melancólico noturno que, todavia, confere um tom verdadeiro e auspicioso à alegria: a Graça para além das desgraças; para além das tragédias – a Divina Comédia.

A “música do alvíssimo” soa na “Noite Escura”, evocada pelo poeta S. João da Cruz, amado e traduzido por Dora. S. João da Cruz, em seu poema “Noite Escura”, fala de uma “noite-guia” mais segura que a luz do meio-dia; “noite mais amável que a alvorada”, que transforma quem ama no que é amado.

As garças são como as açucenas com as quais o mencionado místico espanhol encerra o seu poema: alvas flores que viçam a horas mortas. Por entre as garças, Dora “deixa o seu cuidado olvidado”.

 



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12/04/2006