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Massaud Moisés

Nos ‘Cadernos de Lanzarote’, a imagem do ‘eu’ de José Saramago
Num estilo que preserva, ou mesmo intensifica, a oralidade dos romances, graças à instantaneidade requerida pela anotação dos eventos cotidianos, os diários do escritor português, cujo segundo volume acaba de ser lançado em edição brasileira, reúnem condições para atrair e ampliar o círculo de leitores do último ganhador do Prêmio Nobel de Literatura – o primeiro de um autor de língua portuguesa

 
Por Massaud Moisés

in Jornal da Tarde,
Sábado, 29.05.1999
 

É sabido que os ficcionistas, sobretudo os prolíferos, sempre dão a impressão de estar redigindo um diário enquanto fantasiam e constroem o enredo das suas narrativas. Ou, ao menos, de pensar no registro do seu dia-a-dia de modo a recolher o vaivém da sorte e a matéria que não cabe nas suas histórias ou ainda não sofreu o caldeamento imaginário para converter-se em obra literária. Se muitos escritores férteis se contentam com a transfiguração do seu viver cotidiano, aproveitando dele aquilo que mais lhes serve como fonte de inspiração, outros há cuja experiência diária, variada e múltipla, extravasa a ponto de requerer um espaço próprio. É o caso de José Saramago. 

As circunstâncias o levaram a preferir a ilha de Lanzarote a Lisboa, num momento em que a sua obra havia alcançado renome internacional. O resultado não se fez esperar: os Cadernos de Lanzarote. Iniciados em 15 de abril de 1993, cinco volumes já foram publicados. Os três primeiros, correspondentes aos anos de 1993, 1994 e 1995, foram reunidos num largo tomo de 664 páginas e lançados pela Companhia das Letras, em 1997. Agora vêm a público pela mesma editora os Cadernos de Lanzarote II (496 páginas, R$ 29,00), enfeixando os anos de 1996 e 1997. 

Que o autor tinha plena consciência do artefato que lhe saía das mãos, dizem nitidamente as palavras de abertura a toda a série. E dum tal modo que praticamente funcionam como guia ao navegante que se lança nas suas ondas. Diz ele: “Escrever um diário é como olhar-se num espelho de confiança, adestrado a transformar em beleza a simples boa aparência ou, no pior dos casos, a tornar suportável a máxima fealdade. Ninguém escreve um diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com uma só personagem.” De onde ter ele sentido “a necessidade de juntar aos sinais que me identificam um certo olhar sobre mim mesmo. O olhar do espelho”. E por fim, para a tranqüilidade do leitor, avisa que “este Narciso que hoje se contempla na água desfará amanhã com a sua própria mão a imagem que o contempla”. 

Como se vê, tem-se o esboço duma teoria do diário e, a um só tempo, as notas caracterizadoras dos Cadernos, ao ver de José Saramago. Sem entrarmos a fundo nas questões implícitas nessas palavras de pórtico, de resto encimadas por uma significativa epígrafe tomada de empréstimo a Ortega y Gasset (“Eu sou eu e a minha circunstância”), podemos observar que os Cadernos constituem um diário em que há de tudo, desde as trivialidades do cotidiano até as reflexões suscitadas por um fato novo, uma visita, uma leitura, uma viagem, um rasgo da memória, escritos de ocasião, notas para um romance, um ensaio, uma conferência, etc. Nem faltam mesmo algumas páginas do diário de viagem de Pilar, a sua companheira, conselheira e musa de tantos anos, a mostrar-nos que o autor dos Cadernos se dispõe a dar conta do seu cotidiano nos mais variados aspectos. As impressões de viagem ou do dia-a-dia da sua mulher não podiam faltar, assim como as cartas ou escritos de leitores e amigos, porquanto fazem parte do seu universo: são indispensáveis à imagem do “eu” que os Cadernos vão definindo no fio dos dias. 

O resultado é que o diário, como uma gaveta de sapateiro, nos franqueia a privacidade (possível) do autor, aí talvez resida todo, ou quase todo, o seu fascínio: ao escrever os Cadernos é como se Saramago convidasse os leitores a participarem todos os dias, ou quase, do seu viver cotidiano, satisfazendo-lhes desse modo a curiosidade e o prazer de privar do seu microcosmos de homem e de escritor. Prato cheio tanto para os leitores sofisticados como para os voyeuristas meio bisbilhoteiros que, assistindo aos trabalhos e aos dias do escritor, sentem que por momentos refletem o brilho que dali se irradia. É como se fossem, ainda que por breves instantes, exclusivos senhores de particularidades somente disponíveis a uns poucos, os “de casa”, tendo acesso aos “segredos” que os romances e as peças de teatro do hospedeiro escondem ou que não podem revelar, salvo indiretamente. E alguns deles, pelas cartas enviadas a Lanzarote, podem até desfrutar o sabor especial de integrar a massa pulsante dos Cadernos, como se entrassem numa cidadela interditada ao comum dos mortais. 

O diarista bem sabe que escancara as portas da sua casa aos leitores, decerto consciente de que lhes permite aceder a algo mais do que os apontamentos recolhidos nas páginas dos Cadernos. Sabe, pelo menos, que nelas se “encontra alguém (eu próprio) que tendo vivido toda a sua vida de portas fechadas e trancadas, as abre agora, impelido, sobretudo, pela força de um descoberto amor dos outros, com a súbita ansiedade de quem sabe que já não terá muito tempo para dizer quem é”. E nem importa, como é o caso, que os Cadernos sejam “também destinados a serem livro”, mesmo porque, se isso não acontecesse, o diário perderia a sua razão de ser. 

O convite ao leitor para privar da intimidade do escritor é ao mesmo tempo, para este, um ato permanente de exorcismo ou de catarse, que os romances geralmente não facultam com a mesma intensidade e vigor. Daí as dúvidas recorrentes do autor acerca do caráter do seu diário, num exercício de intratextualidade em que o benefício que disso colhe acaba sendo também do leitor. Se lhe ocorre dizer que “o leitor não lê o romance, lê o romancista”, não será porque assim o leitor dialoga com o “outro” que se esconde por trás da narrativa? Ora, é “a pessoa invisível, mas onipresente, que é o autor”, o que o leitor busca, e de certo modo, encontra, não nos romances, mas no diário. 

E que, como observa o autor dos Cadernos, nos seus livros se esconde “a vida labiríntica, a vida profunda, aquela que dificilmente ousaria ou saberia contar com a sua própria voz e em seu próprio nome”. Uma autobiografia poderia ser o expediente para que a própria voz do autor se fizesse ouvir, mas apelando para a memória muito depois que se desenrolaram os acontecimentos dignos de serem lembrados. Diferentemente, o diário registra sur le champ o cotidiano do escritor, sem que este perca a sua identidade sob a camuflagem dum “outro” imaginário, ou suposto. E para ter à mão o espelho que lhe devolve instantaneamente a imagem do passar dos dias. Se ele dispensasse este registro dos eventos em cima da hora, o leitor teria de perscrutar-lhe os outros livros à procura duma face esquiva, divergente, embora presente em todos os momentos. 

Dessa perspectiva, todas as obras dum mesmo autor participam do universo da autobiografia, mas o leitor tem mais gosto em contemplar, na superfície da narrativa, uma fabulação imaginária do que em buscar ali a vera efígie civil de quem a compôs com o magma da sua multifacetada existência. O diário supre a ausência vertiginosa do autor nos seus escritos ficcionais, e com a vantagem de permitir ao leitor a sondagem de recantos que nem mesmo na ambiência imaginária da narrativa poderiam estar abertos à visitação. 

Desfeita assim a dicotomia autor/narrador, que José Saramago mais de uma vez discute, chamando a atenção para a importância do primeiro termo, o leitor tem diante de si, nos Cadernos, o rosto fugidio que procura nos romances. E descobre que a pessoa até então oculta nas dobras da narrativa está agora visível sem perder a sua condição de fabulador. Antes pelo contrário: o prazer que o diário desperta vem de ser redigido por um romancista, que se revela como pessoa, mas uma pessoa especial, que escreve ficção, num incessante movimento circular ou numa seqüência de imagens em espelhos paralelos. 

Por outras palavras, no jornal íntimo desdobrado à sua frente, o leitor percorre o romance do autor, isto é, a vida, ou “a vidinha” que Alexandre O’Neill recomendava que não se contasse, como em certa altura Saramago recorda. Agora porém o leitor desfruta um prazer novo, semelhante ao prazer de acompanhar as notícias nos matutinos que lhe chegam à porta, com a diferença fundamental de que esta emoção desconhecida prolonga ou repercute o sentimento euforizante que nasce das ficções que o escritor engendra com os materiais da sua imaginação. 

Sem forçar a nota, pode-se dizer que o fascínio dos Cadernos, ou uma das suas fontes mais abundantes, vem precisamente de o autor viver (também) com a imaginação os lances do seu dia-a-dia, pois não os pode viver doutro jeito. A idéia de que entre a pessoa civil e o escritor, seja ele quem for, há uma um abismo, não corresponde aqui à verdade dos fatos. Supor que Saramago é romancista apenas quando se põe ao computador para narrar o ano da morte de Ricardo Reis, significa acreditar que nesse momento fica em suspenso a pessoa que ele é. O próprio autor não o diz quando pondera que “um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser um romance se a função da sua única personagem não fosse a de encobrir a pessoa do autor, servir-lhe de disfarce, de parapeito”? 

Nesta mesma passagem, no entanto, diz que “um diário não é um confessionário”, o que está certo no seu caso, em que os Cadernos são polivalentes e não raro dão voz a outros convivas do seu mundo de relações. E em que, por isso, diferem do diário dum Amiel ou do Livro do Desassossego, centrados egolatricamente na figura do autor/narrador, a ponto de criar atmosferas líricas, por vezes destacáveis como poemas em prosa, a exemplo de “Na Floresta do Alheamento”, do livro-caixa de Bernardo Soares. O diário de Saramago estaria, verdadeiramente, mais próximo da dramaturgia. 

De qualquer modo, aqui se levanta uma vez mais a questão essencial do diário como obra de um narrador voltado para as suas peripécias cotidianas – o narcisismo –, de que o autor vinha sendo acusado. Espelho de Narciso, os Cadernos? Por certo, as mais das vezes. Somente porém os diários o serão? Não espelhará qualquer obra literária pendor narcisista? Além disso, há uma diferença entre o diário aparentemente aberto, em razão de a folhagem metafórica recobrir os acontecimentos e as reflexões, e o diário francamente aberto, porque se trata de um narciso que se desnuda aos leitores, para melhor se conhecer ao dar-se a conhecer sem máscara. Nesta alternativa se situa Saramago, tanto mais que revela cristalina lucidez ao responder a um repórter que “toda a escrita é narcísica” e que “a escrita de um diário, sejam quais forem as suas características aparentes, é narcísica por excelência”. 

Contudo, uma coisa é uma escrita narcísica em que o autor se inventa, ou inventa um “eu” com as excelências (ou as deficiências) criadas por sua imaginação e sua exacerbada sensibilidade. Outra, muito diversa, é a escrita narcísica de quem se pretende “dizer quem é” ainda que levado pela força imaginativa que convoca para a tessitura das suas ficções. De alguém que recebe uma carta de uma psicanalista argentina a dizer-lhe, com referência ao narcisismo comentado nas páginas do diário, que “há um narcisismo bom e um outro mau”, aquele “é o que nos cuida, o que faz que, quando temos febre, façamos repouso para curar-nos”, etc, e o outro “está ligado à soberba, à nudez dos sentimentos humanos, a não poder olhar a vida para além do umbigo e que em geral causa dano aos que o cercam”. 

Para a missivista, o autor dos Cadernos, está, obviamente, entre os primeiros. Sem recorrer à dualidade maniqueísta, que evidencia quão espinhosa é a questão do narcisismo, podemos dizer que Saramago quer-se dar a conhecer, sem disfarces ou autocomplacência: volta e meia lembra os começos infantis na Azinhaga e a luta incansável até chegar a Lanzarote, com um realismo que não cede senão a um confesso orgulho de ter vindo de baixo sem fazer concessões, sem perder as raízes e, mais ainda, tornando-as a razão de ser da sua vida, bem como da sua obra literária e da sua militância política. 

Aí se localiza provavelmente a fonte de onde provém tudo, ou quase tudo, para Saramago: a infância na Azinhaga. Como se guiado pelo aforismo nosso conhecido – “O menino é pai do homem” – reconhece que “a Azinhaga me deu o que Lisboa não me poderia ter dado: aqueles campos, aqueles olivais, a lezíria, o rio Almonda (o Almonda daquele tempo, não o de hoje, que é uma cloaca), o Tejo e as marachas, os porcos que o meu avô Jerônimo guardava, os passeios de barco, as manhãs à pesca, os banhos”. Nascido e criado nesse ambiente, o escritor ficaria para sempre preso à natureza e aos objetos à sua volta, como bem atestam as notas acerca do seu pequeno mundo doméstico e da deslumbrante paisagem vulcânica de Lanzarote: “Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que ainda hoje não me parece absurda, fi-la eu muitas vezes em criança, mas só a mim próprio me atrevia a fazê-la, não a pais e professores”. Em síntese: “Sábio da minha experiência (...), instruído na mágica arte de olhar o que as coisas escondem”. Aí se diria o fundamento mais remoto e mais sólido do mundo ficcional de Saramago, a chave que pode abrir o segredo da sua interpretação. E a “paixão pela leitura”, cedo despontada e mantida ao longo dos anos, faria o resto. 

Nem falta, nessa reconstituição proustiana de olhos abertos de um passado ainda presente na memória e na consciência como constitutivo do ser do escritor, uma espécie de “rosebud”, mas sem o travo de melancolia ou de tragédia que exalava na vida frustre do cidadão Kane. Ouçamos o narrador: “Tenho, desde há muitos e muitos anos, um pesa-papéis de vidro com efeitos coloridos no interior. Não tem qualquer anúncio. Se a menina daquele tempo deu um pesa-papéis de vidro a um senhor que ia a sua casa para classificar e arrumar livros, então o pesa-papéis é esse, e nós dois somos quem éramos.” Se ninguém se desgarra do passado (ainda que, ou porque, esteja submerso nas vagas do inconsciente), menos ainda o exilado de Lanzarote que passa os dias absorto na metamorfose alquímica das suas visões em tramas imaginárias: não só se sente preso às coisas e circunstâncias, que guarda ciosamente ao redor de se e nos confins da memória, como também as cultiva como amarras para continuar a presenciar o espetáculo da vida e nele intervir com o seu testemunho, com a sua voz, a fim de tornar mais justo e mais agradável a todos, independentemente da religião, credo político ou cor. 

Num estilo que preserva, ou mesmo intensifica, a oralidade dos romances, graças à instantaneidade requerida pela anotação dos eventos cotidianos, os Cadernos reúnem condições para atrair, e ampliar, o círculo de leitores de Saramago. Ainda mais agora, que o prêmio Nobel, coroando uma longa trajetória de êxitos editoriais, veio derramar luz mais intensa sobre os escritos que lhe saem das mãos. Se os Cadernos publicados pertencem à fase anterior ao grande galardão e já têm exercido considerável fascínio sobre o leitor, que se dirá dos que vierem a seguir? À ansiedade de Saramago para aproveitar o tempo que lhe parece cada vez mais escasso corresponde a do leitor, que deve estar aguardando impaciente o momento de compulsar as reações desencadeadas por um raro acontecimento quanto é este de um escritor da Língua Portuguesa merecer, pela primeira vez, tão cobiçado e honroso prêmio. 

Massaud Moisés é professor-titular da USP, autor, entre outros livros, de A Literatura Portuguesa e História da Literatura Brasileira e da seleção, introdução e notas de Contos de Machado de Assis


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