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Denilson Lopes




De Frankenstein ao Transgênero

Jornal do Brasil
09.10.2004


 

Ágora da Ilha
Maria Consuelo Cunha Campos
140 páginas
Preço não definido


 

Esta coletânea traduz uma longa trajetória desta professora da Uerj e pesquisadora na área dos estudos de gênero. Num primeiro momento, resgata os trabalhos de pioneiras, como Mary Wollstonecraft, na Inglaterra do século 18, e Nízia Floresta, no Brasil do século 19, figuras esquecidas pelo cânone. Ao evitar um discurso teórico sem solo sócio-histórico, a autora está atenta para a recriação desta problemática na nossa realidade.

Das pioneiras do feminismo vamos para o debate do trasngênero, termo que inclui hoje todas as transitividades entre o masculino e feminino, dos transformistas em casas de espetáculo ao travestis que modificam seu corpo com hormônios até os transexuais que realizam a passagem do sexo masculino para o feminino ou vice-versa, por cirurgia. Este salto histórico e teórico fica sem uma explicação. É um momento em que a demasiada síntese faz com que a autora perca uma oportunidade de estabelecer relações ricas entre os estudos feministas e de transgêneros, mas nada que não possa ser feito em outro livro.

Já é uma grande contribuição colocar no plano cultural a questão dos transgêneros, para além dos trabalhos fundamentais e de caráter mais etnográfico sobre os travestis brasileiros realizados por Hélio Silva, Neuza de Oliveira, Don Kulick, Hugo Denizar, entre outros. O estudo dos transgêneros foi uma das coqueluches da teoria queer norte-americana, nos anos 90, que visava, ao mesmo tempo, repolitizar os estudos e as identidades gays cada vez mais integradas de forma conservadora na sociedade de consumo e fugir das análises dualistas de gênero. Daí o uso do termo queer, no seu duplo sentido, como estranho, diferente; mas também como palavrão, bicha. Poderíamos pensar com uma espécie de GLS politizado, que coloca os estudos gays e lésbicos num patamar semelhante ao quadro do pós-feminismo ou feminismo nômade. E que, longe de estabelecer uma dualidade entre as reflexões culturalistas identitárias norte-americanas e o pensamento da diferença francês, realizam um diálogo criativo.

O mérito de Maria Consuelo Cunha Campos é colocar em circulação o termo transgênero na universidade brasileira, em sintonia com o que vem acontecendo nos próprios movimentos militantes.

A autora nunca perde a concretude cotidiana da experiência transgênera, como fica claro na análise das autobiografias de transexuais, especialmente de Roberta Close, num esforço de colocar uma agenda de orientação sexual dentro das narrativas de testemunho.

Daí a autora parte para a análise de filmes, especialmente, M. Butterfly, de Cronenberg, reafirmando uma tradição que ultrapassa o clichê do travesti que se prostitui, colocando-a como central em várias culturas ou na história do teatro. Neste sentido, o transgênero é um personagem alegórico de uma modernidade inconclusa e em crise, figura da ambigüidade que tem várias encarnações, dos xamãs aos ciborgues da tecnofeminista Donna Haraway, das amazonas aos eunucos, das dames do teatro inglês aos onnagata do teatro japonês, dos castratti às divas da ópera, do cinema e da música pop; do andrógino original aos deuses hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos homens ultra-musculosos às drag queens e drag kings.

No último momento do livro, temos a sensível análise do tema do exílio sob a perspectiva de gênero. Ao se deter em Três exlios e uma guerra, de Edyla Mangabeira, as marcas do feminino complexificam a condição do exílio e recuperam a trajetória de Nísia Floresta, cuja militância feminista a colocou à margem no seu próprio país.

Nísia Floresta, Edyla Mangabeira e Roberta Close são exiladas que rompem as fronteiras culturais de suas épocas e permanecem como aventureiras do gênero neste novo milênio.



*Coordenador da Pós-Graduação em Comunicação da UnB e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura