É preciso descobrir por que Clarice Lispector favorece estudos
como o de Cixous.
Helène Cixous, crítica literária, escritora
e professora de literatura e “estudos femininos” da Universidade de Paris,
é tida como a pessoa que introduziu a literatura de Clarice Lispector
na Europa.
Parte da interpretação que Cixous – 62 anos, argelina
de nascimento – faz da obra de Clarice está neste “A Hora de Clarice
Lispector” em edição bilíngüe francês/português.
Dividido em três capítulos, o texto, ao menos
nos dois primeiros, sugere ser um “livro de meditação” (palavras
da professora) sobre a literatura clariciana, que Cixous descobriu em 1977,
ano em que a escritora morreu. O primeiro capítulo, “Viver a Laranja”,
descreve a importância dessa descoberta na vida de Cixous. O original
“Vivre l’Orange”, é de 20 anos atrás 91979).
Dali por diante, parece que a crítica argelino-francesa entrou
numa espécie de surto feminista- lésbico-literário,
inédito na teoria da literatura. É ela a criadora da fantástica
tese de que há, sim, uma “écriture féminine” (escrita
feminina), porque a mulher escreveria com o corpo, com as pulsões
e as fruições de sua “economia libidinal” (?!), única
capaz de se abrir ao outro (numa generosidade que Cixous chamou de “bissexualismo”).
Sua teoria seria inspirada no pensamento do filósofo
francês Jacques Derrida, expressão da “masculinidade capaz
de feminilidade”.
Ligada à editora francesa Editions des Femmes, particularmente
dedicada à publicação de obras de mulheres e de literatura
lésbica, Cixous é explícita no primeiro capítulo.
Trata-se de uma narrativa em que a “voz-texto” de Clarice vai permeando
o texto da professora, como se este fosse um prolongamento daquele, numa
apropriação algo ridícula.
A laranja da narrativa é às vezes a própria
Cixous (que a voz “borbulhante” do texto clariciano vem salvar) e, outras
vezes, Clarice (que Cixous vai lésbica e paulatinamente descascando).
É tudo muito estranho e difícil de ler. “Era uma laranja
reencontrada. Através da pele fina da palavra, senti que era sangüínea.
Por uma fina vibração na tela, senti que Clarice fechava
os olhos para tocar melhor a laranja, para segurá-la mais levemente,
deixá-la pesar mais livremente sobre seu texto, atentava com os
olhos fechados para ouvir mais internamente o canto secreto da laranja.
(...) Eu tinha laranja por toda parte, a luz pacífica escorrendo
laranja diante de minhas janelas era o meu gozo filosófico, eu estava
úmida(...).
O livro é um verdadeiro abacaxi (ou uma salada de frutas).
O segundo capítulo chama-se “À luz de uma maçã”
(alusão ao romance “A Maçã no Escuto”, de Lispector).
A certa altura, abundam “nonsenses” do tipo: “O amor da laranja também
é político” ou “ler mulher? Escutem: Clarice Lispector. (...)
A cor de seu nome em movimento é evidentemente lispectalaranja”;
ou ainda “como invocar claricemente?”.
Diante desse quadro, já não é mais possível
levar a sério o terceiro capítulo, único, aliás,
em linguagem inteligível e com cara de crítica literária.
Resta que alguém pesquise urgentemente por que o texto (ou
“estilo-texto”) clariciano se presta a esse tipo de invasão parasita,
como se fosse uma obra aberta em que todo mundo se sente no direito de
meter a mão – especialmente um bando de mulheres loucas. Cixous
foi apenas uma das primeiras. Há várias. Ainda bem que Clarice
morreu antes de ler essa besteirada.
O “mal”
Para quem procura seriedade, o estudo “Metamorfoses do Mal – Uma
leitura de Clarice Lispector”, de Yudith Rosenbaum, é recomendado.
Apresentado como tese de doutorado em teoria literária, na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o trabalho analisa
dois romances e alguns contos da escritora em busca das instâncias
do mal na temática e na organização textual de sua
obra.
O objetivo é privilegiar a representação
literária do sadismo, que segundo Rosenbaum, como elemento constitutivo
da gênese do eu, “articula-se ao tema maior da obra clariciana: a
construção da subjetividade”. Ela explica que o sadismo é
uma “modulação bastante peculiar e contundente da presença
do mal, notadamente da desconstrução da sintaxe tradicional,
na transgressão dos modos convencionais da narração
e na expressão de um sujeito pulverizado e descentrado”.
Psicóloga de formação, a autora se utiliza
dos recursos da psicanálise e da filosofia para recortar a perversidade,
a crueldade e as transgressões dos personagens de Clarice. Sobre
a Joana, de “Perto do Coração Selvagem”, diz: “O jogo infantil
de Joana (...) escancara fantasias sádicas e reparatórias
(...). Manipulando os brinquedos, Joana exercita sua onipotência”.
Entre os contos analisados, estão clássicos como
“Os Desastres de Sofia” e “Felicidade Clandestina”. O estudo dos romances
destaca também “A Paixão Segundo GH”, em que Rosenbaum analisa
não apenas a problematização do mal, mas também
a própria forma do romance, “transgredido em seus alicerces fundamentais”.
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