Duas obras recém-chegadas ao mercado iluminam as longas e
invariavelmente penosas viagens a que a escritora submeteu sua obra com
intenções catárticas e libertadoras
Existem aquelas que escrevem para nos fazer bem, mesmo que seja por
meio de uma incursão pelo mal. Um de seus nomes é Clarice
Lispector. E existem quelas que lêem o que esta escreveu, dialogam
com ela, incorporam-na a seu discurso. São vozes femininas, ecos
de mulheres escritoras e ensaístas. E o tema que se vai seguir é
a relação entre a escrita e a mulher, a escrita e o mal,
a escrita (o saber) como o fruto proibido que uma vez mordido nos lança
no sem-fim dos questionamentos e porquês dos quais a literatura consegue
nos oferecer um objeto verbal, uma poiesis. E a arte de Clarice é
uma dessas bênçãos que de tempos em tempos vêm
ao mundo para nos dizer uma(s) verdade(s).
Inveja, medo, rejeição, admiração e paixão.
Sentimentos contraditórios e
complementares que a obra de Lispector aprofunda e desperta. Lê-la
é sempre uma experiência sui generis, e toda mulher que escreve,
de alguma forma, em algum momento, quer ser como Clarice. Imitá-la
e incorporá-la é correr o risco de ficar sempre aquém
de sua voz, ser um arremedo. Mas eis que aparece alguém capaz de
correr esse risco, escrevendo para que todas possamos nos chamar Clarice
e possamos aprender a ser como uma rosa, porque “Uma rosa por excelência
se dá para ser dada”, assim como Clarice existe para ser irradiada:
“Preciso lhes dizer Clarice. Dizê-la a vocês claricemente:
sob sua influência. Lembrar-lhes:
Clarice! É de auroras que se trata. De dizer-lhes tudo o
que chama como Clarice. Tudo o que se chama Clarice. E que vocês
também possam se chamar Clarice.”
Assim fala Hélène Cixous, que vem do estrangeiro,
como Clarice também
veio; é judia, como Clarice também era. Nasceu em
Oram, Argélia, em 1937,
e vive em Paris, onde leciona literatura inglesa na Universidade
Paris VIII, na
qual criou o centro de estudos femininos e o jornal Poétique.
Sua bibliografia é
enorme: mais de 50 livros publicados, entre romances, ensaios de
crítica literária, peças de teatro (como dramaturga
do Thêàtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine), além de
artigos e entrevistas.
Em 1978, descobriu Clarice, e um ano depois publicou Viver a Laranja,
ensaio poético que agora é editado no Brasil, no livro A
Hora de Clarice Lispector (tradução de Rachel Gutiérrez,
Exodus, 214 págs., R$ 20,00), e que inclui também os ensaios
“À luz de uma maçã” e “O verdadeiro autor”.
O livro de Helène interessa, e muito, às leitoras e leitores
do Brasil, porque é um canto de amor a Clarice e, ao mesmo tempo,
uma análise literária extremamente fina e percuciente.
Nem todo mundo pensa assim. Seu companheiro de diálogo há
30 anos, Jacques Derrida, que publicou com ela o livro Voiles (1998), diz
que a obra de Cixous é muitas vezes malvista “por razões
que, explicitadas, revelariam tudo que, nesse século e nesse país,
se proíbe”. No nosso País também há dessas
proibições, como a da resenhista Marilene Felinto, que traduziu
a laranja de Cixous por um enorme abacaxi que não soube descascar.
Para ela, incorporar e celebrar Clarice é coisa de mulheres loucas.
Esqueceu que a paródia, canto paralelo, é homenagem e não
deturpação: “Tudo está escrito; leia-se pois, principal,
e reescreva-se”, disse Guimarães Rosa. E se Clarice vivesse acataria
o livro de Cixous que tem o mérito de traduzi-la amorosamente, revelando
toda a sua enorme influência e fazendo questão de divulgá-la
a um público muito maior - privilégio para quem está
no exterior, já que por aqui esse hino de louvor é visto
como “surto lésbico”! De todo modo, a própria Cixous não
se preocupa em ser aceita pelo juizo crítico. Ela paga o preço
pelo que escreve porque sabe (lição de Clarice) que ou se
entende ou não se entende, ou se acredita chorando, ou não.
Cixous não defende uma “escrita feminina”, porque ela sabe
que não há pura
feminilidade ou masculinidade. Seu pensamento é muito mais
complexo e
paradoxal do que pensa a nossa resenhista. O que há é
a dicotomia homem/mulher, que ela faz questão de pensar a partir
não da distinção biológica, mas da desigualdade.
É ou não é verdade que o artigo feminino “a” é
tão ínfimo que quase não existe frente à predominância
de seu parceiro masculino? Dizemos o homem como sinônimo da espécie
humana, e por conseguinte, o leitor, o ser humano, o Deus. Por que é
tão difícil dizer a mulher, a leitora, a ser humana, a Deusa?
Conheço e recomendo um livro que tem o título corajoso de
Eva Será Deus. Seu autor, um homem: Jacob Pinheiro Goldberg. Ele
contesta poeticamente a cena do pecado original, como Ilka Brunhilde Laurito,
que, em Genetrix (Massao Ohno, 1982), diz: “No princípio era o Ventre
(...) até que se deu à Luz.” Lido no exterior, mas inédito
no Brasil, esse autor também escreveu que: “Antes de sermos homens,
mulheres, transexuais, homossexuais, lésbicas, ou o que for,
somos seres humanos definidos pela intuição, pelo desejo
mais profundo”; “O indivíduo pode ter todas as características
físicas de uma mulher mas não se sentir como tal, nem se
sentir um homem, e portanto não ser nada disso. Eu posso me sentir
uma terceira coisa, posso me sentir as duas coisas e posso não me
sentir nenhuma delas, independentemente do meu genital. Esse é o
pleno exercício da liberdade.”
E por que Clarice gera livros como o de Cixous? Porque Clarice é
o arquétipo de Eva. Se naqueles tempos Eva tivesse uma máquina
de escrever portátil, provavelmente falaria como Clarice falava,
daí sua enorme pertinência e importância para uma outra
história original do gênesis e dos gêneros.
Vivemos num sistema discursivo binário, que opera por oposições:
homem/mulher, natureza/cultura, colonizado/colonizador, progresso/atraso.
Cixous quer encontrar uma outra via; escapar da dialética e da gramática,
da língua que nos forma, em busca da língua que nos inventa.
Poder desgovernar e portanto desconstruir as hierarquias e discutir as
estruturas de pensamento das quais somos vítimas e algozes; se a
língua é dicotômica, queremos buscar o terceiro elemento,
o que não foi dito, o que não pode ser dito, o que merece
ser dito. Mas essa liberdade criativa sempre foi vista como herética
e maldita - e desde o Livro, lembra Cixous, coube à mulher arriscar-se
no proibido: é Eva quem morde a maçã desafiando a
lei, diferente de Abraão que acata a ordem incompreensível
de sacrificar seu filho; essa é a sina que nos cabe. Refleti-la,
entendê-la e mesmo privilegiá-la é tarefa de quem tem
coragem de buscar a felicidade, nem que seja clandestina.
E “viver a laranja” é refletir sobre tudo isto, sobre o fruto
nosso de cada dia:
“Na tradução da maçã (para laranja),
eu tento me denunciar. Um jeito de agarrar a minha parte. Da fruta. Da
fruição”; “E a todas as mulheres para quem a necessidade
de refletir a fruta é uma tarefa da vida, eu dedico os frutos suculentos
da meditação”.
Antes poeta do que crítica, a escrita de Cixous é circular
e alusiva, por isso é preciso lê-la com calma e sem pré-conceitos.
Sua voz do interior, do inconsciente, é também lisérgica
e surrealista, porque tenta falar de fora dos cerceamentos. Politicamente
correta, mas explicitamente incorreta frente às convenções
do logos, do certinho, do bem-dito. Louca? “Santa loucura se o fora!.”
Lendo-a penso que devemos tentar falar no feminino em busca de uma
fala outra, capaz de abarcar e gerar uma outra e melhor humanidade.
Ao invés de pensar a mulher como falha, falta, ausência, pensá-la
como exuberância, êxtase, excesso, propõe Cixous, que
inclui também a necessidade de uma reescrita feminina da psicanálise.
E se a condição pós-moderna é descrita como
morte do sujeito e fim da história - podemos encarar esse dado positivamente,
como a falência de uma estrutura unívoca que domina a cena
discursiva e todas as outras e tem se mostrado catastrófica. A poesia,
a música, a Musa, são femininas, como a criação,
gestação de uma obra, de um filho, de um projeto, de uma
vida. Nosso desafio então é o de reinventar esse sujeito
e essa história incluindo nela também a sujeita, de forma
a acabar com a sujeição - o lugar da outra e do outro, diferentes
na sua semelhança, em busca da alteridade, da outridade. No
ensaio “O verdadeiro autor”, Cixous analisa a duplicidade que se estabelece
entre a autora Clarice (que se apresenta entre parênteses) e o narrador
Rodrigo S. M, de A Hora da Estrela. Por que a autoria precisa ficar entre
parênteses para poder falar sem piedade de uma ínfima mas
fundamental Macabéa? Ao mesmo tempo, por que é a mulher Clarice
que se metamorfoseia em Rodrigo? A duplicidade mulher-homem vivida ao mesmo
tempo na escrita libera uma outra fala, um outro tipo de hino à
vida, mesmo que seja a vida de uma quase-nada, mas que brilha quando morre.
Simultaneamente à “chegada” de Hélène Cixous ao Brasil,
Yudith Rosenbaum publica As Metamorfoses do Mal - Uma Leitura de Clarice
Lispector (Edusp/Fapesp, 184 págs., R$ 20,00), originalmente escrito
como tese de doutorado em Teoria Literária na USP. E assim temos
duas mulheres escrevendo sobre a Mulher Clarice: uma destacando sua clarividência,
a outra, sua obscuridade.
Enquanto Hélène analisa o bem que a obra de Clarice
lhe despertou, Yudith se debruça sobre uma das faces do mal: o sadismo
como força mobilizadora dos enredos de nossa autora. Curioso paralelismo:
mal e bem, bem e mal. Nesse intervalo parece situar-se a obra de
Clarice, nesse hiato, nesse paradoxo. Lugar do meio.
Com o instrumental da psicanálise e da estilística,
Yudith analisa os romances Perto do Coração Selvagem e Paixão
Segundo GH, assim como uma série de contos. A metáfora que
sintetiza sua visada crítica é o conceito de “odisséia
negativa”: “viagem de retorno à pulsão primordial com passagem
inevitável pela ilha do mal.”
Acentuar a incursão pelo mal cumpre a função
de desnudar a dificuldade que a obra de Clarice impõe a seus leitores,
e Yudith analisa a relação também sádica e
catártica que os textos de Clarice tramam. Ao revelar com tanta
força essa “maldade” dá vontade de retomar a travessia, unicamente
porque se intui que ela é também bienfaisante.
Por exemplo, a “insanidade” de Laura (personagem do conto “A imitação
da
rosa”) é também de uma extrema sanidade e cura. Ela
foi capaz de se tornar
uma rosa cuja beleza e existência se encontra no dar-se, na
entrega, o que
não significa entrega de pontos, mas, espera-se, entrega
e encontro de uma
verdade mais profunda, mesmo se, infelizmente, solitária.
A solidão pode ser o
preço a pagar. E a solidão das personagens de Clarice
é também o que prova sua autenticidade. Não gostaríamos
que fosse assim, mas parece que tomar plena assunção de si
mesmo, assusta, afasta do convívio com as regras do belo e adequado;
mas Clarice, nós sabemos, privilegiava a feia, a desgraçada,
a desmiolada, a grotesca, a gauche na vida.
Uma carta a ela atribuída foi publicada por Caio Fernando
Abreu em O Estado de S. Paulo, em 1995, e confirma a tese de Yudith. Na
carta, ela diz: “Para me adaptar ao que era inadaptável (...) cortei
em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei
também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é
ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim
em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma
- é esse seu único meio de viver.” Respeitar o que há
de ruim em nós como condição de autenticidade. Fugir
a essa “ruindade” é que pode ser a grande traição.
Não ter mordido o fruto é que seria o pecado? E Deus disse:
vá e coma a fruta mesmo se eu tiver dito o contrário. Contradiga-Me!
Condição do diálogo com Deus. Para nascermos é
preciso também uma expulsão, e o paraíso é
também sinônimo de morte. Incentivar o demônio de cada
um dá medo porque temos medo do caos, mas se o calamos ele cresce
como o monstro verde. É preciso verbalizá-lo, expulsá-lo
contra todas as conveniências. Manifesto. Púlpito. Gorjeio.
Condição do Canto, “porque o instante existe e minha vida
não está completa”. Não reconhecer esses sentimentos
impede-nos também de vivenciar os outros, e Clarice, completa Yudith,
“faz parte daquela espécie incômoda de escritores que denunciam
a face suja e perversa da polidez social”.
Por isso, penso que a incursão pelo mal é também
esclarecimento do bem. É preciso ser invadido pela chama da vida,
mesmo que chama e fogo lembrem inferno, mas também magma incandescente,
condição também da fênix. De modo que,
após a leitura destes dois livros, o que fica é a influência
benéfica de Clarice que se irradia numa obra poética como
a de Cixous e num tratado ensaístico como o de Yudith. Criação
engendrando criação, favorecendo a passagem do luto à
criação, como testemunha o trabalho de Yudith, dedicado à
memória de João Luiz Machado Lafetá. A ele é
dedicado o livro; a elas, é dedicado o livro de Cixous. A nós,
portanto, cabe apreciar o sabor desses frutos.
Marília Librandi Rocha é mestre e doutoranda em Teoria
Literária (USP)
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