Marília Librandi Rocha
marilialibrandi@uol.com.br


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Todas as odisséias de
Clarice Lispector 


in Jornal da Tarde
9/10/99
Duas obras recém-chegadas ao mercado iluminam as longas e invariavelmente penosas viagens a que a escritora submeteu sua obra com intenções catárticas e libertadoras
 

Existem aquelas que escrevem para nos fazer bem, mesmo que seja por meio de uma incursão pelo mal. Um de seus nomes é Clarice Lispector. E existem quelas que lêem o que esta escreveu, dialogam com ela, incorporam-na a seu discurso. São vozes femininas, ecos de mulheres escritoras e ensaístas. E o tema que se vai seguir é a relação entre a escrita e a mulher, a escrita e o mal, a escrita (o saber) como o fruto proibido que uma vez mordido nos lança no sem-fim dos questionamentos e porquês dos quais a literatura consegue nos oferecer um objeto verbal, uma poiesis. E a arte de Clarice é uma dessas bênçãos que de tempos em tempos vêm ao mundo para nos dizer uma(s) verdade(s). 

Inveja, medo, rejeição, admiração e paixão. Sentimentos contraditórios e
complementares que a obra de Lispector aprofunda e desperta. Lê-la é sempre uma experiência sui generis, e toda mulher que escreve, de alguma forma, em algum momento, quer ser como Clarice. Imitá-la e incorporá-la é correr o risco de ficar sempre aquém de sua voz, ser um arremedo. Mas eis que aparece alguém capaz de correr esse risco, escrevendo para que todas possamos nos chamar Clarice e possamos aprender a ser como uma rosa, porque “Uma rosa por excelência se dá para ser dada”, assim como Clarice existe para ser irradiada: “Preciso lhes dizer Clarice. Dizê-la a vocês claricemente: sob sua influência. Lembrar-lhes:
Clarice! É de auroras que se trata. De dizer-lhes tudo o que chama como Clarice. Tudo o que se chama Clarice. E que vocês também possam se chamar Clarice.” 
Assim fala Hélène Cixous, que vem do estrangeiro, como Clarice também
veio; é judia, como Clarice também era. Nasceu em Oram, Argélia, em 1937,
e vive em Paris, onde leciona literatura inglesa na Universidade Paris VIII, na
qual criou o centro de estudos femininos e o jornal Poétique. Sua bibliografia é
enorme: mais de 50 livros publicados, entre romances, ensaios de crítica literária, peças de teatro (como dramaturga do Thêàtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine), além de artigos e entrevistas. 

Em 1978, descobriu Clarice, e um ano depois publicou Viver a Laranja, ensaio poético que agora é editado no Brasil, no livro A Hora de Clarice Lispector (tradução de Rachel Gutiérrez, Exodus, 214 págs., R$ 20,00), e que inclui também os ensaios “À luz de uma maçã” e “O verdadeiro autor”.  O livro de Helène interessa, e muito, às leitoras e leitores do Brasil, porque é um canto de amor a Clarice e, ao mesmo tempo, uma análise literária extremamente fina e percuciente. 
Nem todo mundo pensa assim. Seu companheiro de diálogo há 30 anos, Jacques Derrida, que publicou com ela o livro Voiles (1998), diz que a obra de Cixous é muitas vezes malvista “por razões que, explicitadas, revelariam tudo que, nesse século e nesse país, se proíbe”. No nosso País também há dessas proibições, como a da resenhista Marilene Felinto, que traduziu a laranja de Cixous por um enorme abacaxi que não soube descascar. Para ela, incorporar e celebrar Clarice é coisa de mulheres loucas. Esqueceu que a paródia, canto paralelo, é homenagem e não deturpação: “Tudo está escrito; leia-se pois, principal, e reescreva-se”, disse Guimarães Rosa. E se Clarice vivesse acataria o livro de Cixous que tem o mérito de traduzi-la amorosamente, revelando toda a sua enorme influência e fazendo questão de divulgá-la a um público muito maior - privilégio para quem está no exterior, já que por aqui esse hino de louvor é visto como “surto lésbico”! De todo modo, a própria Cixous não se preocupa em ser aceita pelo juizo crítico. Ela paga o preço pelo que escreve porque sabe (lição de Clarice) que ou se entende ou não se entende, ou se acredita chorando, ou não. 
 

Cixous não defende uma “escrita feminina”, porque ela sabe que não há pura
feminilidade ou masculinidade. Seu pensamento é muito mais complexo e
paradoxal do que pensa a nossa resenhista. O que há é a dicotomia homem/mulher, que ela faz questão de pensar a partir não da distinção biológica, mas da desigualdade. É ou não é verdade que o artigo feminino “a” é tão ínfimo que quase não existe frente à predominância de seu parceiro masculino? Dizemos o homem como sinônimo da espécie humana, e por conseguinte, o leitor, o ser humano, o Deus. Por que é tão difícil dizer a mulher, a leitora, a ser humana, a Deusa? Conheço e recomendo um livro que tem o título corajoso de Eva Será Deus. Seu autor, um homem: Jacob Pinheiro Goldberg. Ele contesta poeticamente a cena do pecado original, como Ilka Brunhilde Laurito, que, em Genetrix (Massao Ohno, 1982), diz: “No princípio era o Ventre (...) até que se deu à Luz.” Lido no exterior, mas inédito no Brasil, esse autor também escreveu que: “Antes de sermos homens,
mulheres, transexuais, homossexuais, lésbicas, ou o que for, somos seres humanos definidos pela intuição, pelo desejo mais profundo”; “O indivíduo pode ter todas as características físicas de uma mulher mas não se sentir como tal, nem se sentir um homem, e portanto não ser nada disso. Eu posso me sentir uma terceira coisa, posso me sentir as duas coisas e posso não me sentir nenhuma delas, independentemente do meu genital. Esse é o pleno exercício da liberdade.” 

E por que Clarice gera livros como o de Cixous? Porque Clarice é o arquétipo de Eva. Se naqueles tempos Eva tivesse uma máquina de escrever portátil, provavelmente falaria como Clarice falava, daí sua enorme pertinência e importância para uma outra história original do gênesis e dos gêneros. 

Vivemos num sistema discursivo binário, que opera por oposições:
homem/mulher, natureza/cultura, colonizado/colonizador, progresso/atraso.  Cixous quer encontrar uma outra via; escapar da dialética e da gramática, da língua que nos forma, em busca da língua que nos inventa. Poder desgovernar e portanto desconstruir as hierarquias e discutir as estruturas de pensamento das quais somos vítimas e algozes; se a língua é dicotômica, queremos buscar o terceiro elemento, o que não foi dito, o que não pode ser dito, o que merece ser dito. Mas essa liberdade criativa sempre foi vista como herética e maldita - e desde o Livro, lembra Cixous, coube à mulher arriscar-se no proibido: é Eva quem morde a maçã desafiando a lei, diferente de Abraão que acata a ordem incompreensível de sacrificar seu filho; essa é a sina que nos cabe. Refleti-la, entendê-la e mesmo privilegiá-la é tarefa de quem tem coragem de buscar a felicidade, nem que seja clandestina. 

E “viver a laranja” é refletir sobre tudo isto, sobre o fruto nosso de cada dia:
“Na tradução da maçã (para laranja), eu tento me denunciar. Um jeito de agarrar a minha parte. Da fruta. Da fruição”; “E a todas as mulheres para quem a necessidade de refletir a fruta é uma tarefa da vida, eu dedico os frutos suculentos da meditação”. 

Antes poeta do que crítica, a escrita de Cixous é circular e alusiva, por isso é preciso lê-la com calma e sem pré-conceitos. Sua voz do interior, do inconsciente, é também lisérgica e surrealista, porque tenta falar de fora dos cerceamentos. Politicamente correta, mas explicitamente incorreta frente às convenções do logos, do certinho, do bem-dito. Louca? “Santa loucura se o fora!.” 

Lendo-a penso que devemos tentar falar no feminino em busca de uma fala outra, capaz de abarcar e gerar uma outra e melhor humanidade.  Ao invés de pensar a mulher como falha, falta, ausência, pensá-la como exuberância, êxtase, excesso, propõe Cixous, que inclui também a necessidade de uma reescrita feminina da psicanálise.  E se a condição pós-moderna é descrita como morte do sujeito e fim da história - podemos encarar esse dado positivamente, como a falência de uma estrutura unívoca que domina a cena discursiva e todas as outras e tem se mostrado catastrófica. A poesia, a música, a Musa, são femininas, como a criação, gestação de uma obra, de um filho, de um projeto, de uma vida.  Nosso desafio então é o de reinventar esse sujeito e essa história incluindo nela também a sujeita, de forma a acabar com a sujeição - o lugar da outra e do outro, diferentes na sua semelhança, em busca da alteridade, da outridade.  No ensaio “O verdadeiro autor”, Cixous analisa a duplicidade que se estabelece entre a autora Clarice (que se apresenta entre parênteses) e o narrador Rodrigo S. M, de A Hora da Estrela. Por que a autoria precisa ficar entre parênteses para poder falar sem piedade de uma ínfima mas fundamental Macabéa? Ao mesmo tempo, por que é a mulher Clarice que se metamorfoseia em Rodrigo? A duplicidade mulher-homem vivida ao mesmo tempo na escrita libera uma outra fala, um outro tipo de hino à vida, mesmo que seja a vida de uma quase-nada, mas que brilha quando morre.  Simultaneamente à “chegada” de Hélène Cixous ao Brasil, Yudith Rosenbaum publica As Metamorfoses do Mal - Uma Leitura de Clarice Lispector (Edusp/Fapesp, 184 págs., R$ 20,00), originalmente escrito como tese de doutorado em Teoria Literária na USP. E assim temos duas mulheres escrevendo sobre a Mulher Clarice: uma destacando sua clarividência, a outra, sua obscuridade. 

Enquanto Hélène analisa o bem que a obra de Clarice lhe despertou, Yudith se debruça sobre uma das faces do mal: o sadismo como força mobilizadora dos enredos de nossa autora. Curioso paralelismo: mal e bem, bem e mal.  Nesse intervalo parece situar-se a obra de Clarice, nesse hiato, nesse paradoxo. Lugar do meio. 

Com o instrumental da psicanálise e da estilística, Yudith analisa os romances Perto do Coração Selvagem e Paixão Segundo GH, assim como uma série de contos. A metáfora que sintetiza sua visada crítica é o conceito de “odisséia negativa”: “viagem de retorno à pulsão primordial com passagem inevitável pela ilha do mal.” 
Acentuar a incursão pelo mal cumpre a função de desnudar a dificuldade que a obra de Clarice impõe a seus leitores, e Yudith analisa a relação também sádica e catártica que os textos de Clarice tramam. Ao revelar com tanta força essa “maldade” dá vontade de retomar a travessia, unicamente porque se intui que ela é também bienfaisante. 

Por exemplo, a “insanidade” de Laura (personagem do conto “A imitação da
rosa”) é também de uma extrema sanidade e cura. Ela foi capaz de se tornar
uma rosa cuja beleza e existência se encontra no dar-se, na entrega, o que
não significa entrega de pontos, mas, espera-se, entrega e encontro de uma
verdade mais profunda, mesmo se, infelizmente, solitária. A solidão pode ser o
preço a pagar. E a solidão das personagens de Clarice é também o que prova sua autenticidade. Não gostaríamos que fosse assim, mas parece que tomar plena assunção de si mesmo, assusta, afasta do convívio com as regras do belo e adequado; mas Clarice, nós sabemos, privilegiava a feia, a desgraçada, a desmiolada, a grotesca, a gauche na vida. 

Uma carta a ela atribuída foi publicada por Caio Fernando Abreu em O Estado de S. Paulo, em 1995, e confirma a tese de Yudith. Na carta, ela diz: “Para me adaptar ao que era inadaptável (...) cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver.” Respeitar o que há de ruim em nós como condição de autenticidade. Fugir a essa “ruindade” é que pode ser a grande traição. Não ter mordido o fruto é que seria o pecado? E Deus disse: vá e coma a fruta mesmo se eu tiver dito o contrário. Contradiga-Me! Condição do diálogo com Deus. Para nascermos é preciso também uma expulsão, e o paraíso é também sinônimo de morte. Incentivar o demônio de cada um dá medo porque temos medo do caos, mas se o calamos ele cresce como o monstro verde. É preciso verbalizá-lo, expulsá-lo contra todas as conveniências. Manifesto.  Púlpito. Gorjeio. Condição do Canto, “porque o instante existe e minha vida não está completa”. Não reconhecer esses sentimentos impede-nos também de vivenciar os outros, e Clarice, completa Yudith, “faz parte daquela espécie incômoda de escritores que denunciam a face suja e perversa da polidez social”. 

Por isso, penso que a incursão pelo mal é também esclarecimento do bem. É preciso ser invadido pela chama da vida, mesmo que chama e fogo lembrem inferno, mas também magma incandescente, condição também da fênix.  De modo que, após a leitura destes dois livros, o que fica é a influência benéfica de Clarice que se irradia numa obra poética como a de Cixous e num tratado ensaístico como o de Yudith. Criação engendrando criação, favorecendo a passagem do luto à criação, como testemunha o trabalho de Yudith, dedicado à memória de João Luiz Machado Lafetá. A ele é dedicado o livro; a elas, é dedicado o livro de Cixous. A nós, portanto, cabe apreciar o sabor desses frutos. 
 
 

Marília Librandi Rocha é mestre e doutoranda em Teoria Literária (USP)
 
 


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Leia o artigo de Marilene Felinto