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Mário Hélio


 

Invenção poética motiva coletânea

 

Diário de Pernambuco

25.06.2002
 

Seleção de 46 poetas para livro foi feita por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel e conta com pernambucana
Mário Hélio - Da equipe do DIARIO


 

Será lançado, amanhã, na livraria Fnac, em São Paulo, o livro Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil". A coletânea contém 46 poetas brasileiros da atualidade, selecionados por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel.

Poderia ser mais uma das tantas antologias e outros quantos cânones que têm aparecido com freqüência. No entanto, os autores assumem uma disposição ousada: já a partir do título, oferecem ao público uma coletânea assumidamente parcial, dentro do critério poundiano de invenção. Nada de mais com a parcialidade, aliás, defendida, junto com a paixão, por Baudelaire, como atitude crítica.

Frederico Barbosa é experiente no ramo. Já organizou uma antologia de autores clássicos brasileiros nos cinco séculos de história do País. Não se ocupou dos modernistas. Agora, toca no contemporâneo, nas 352 páginas da sua obra, feita em parceria, publicada pela editora Landy.

Do mesmo modo que é um lugar-comum referir as dificuldades de reunir uma antologia, é também freqüente lembrar-se do quanto derisco existe em avaliar (e avalisar) contemporâneos. Os autores e os apresentadores da obra sabem disso. Sebastião Uchoa Leite, autor das orelhas do livro, considera que essa antologia já nasceu clássica, mas mostra algum ceticismo quanto ao caráter de inventores dos que foram escolhidos.

As antologias brasileiras, de maneira geral, não são felizes. Pecam pelos critérios precários e envelhecem depressa. Uma das boas exceções foram aquelas realizadas por Manuel Bandeira. Convidado em 1936 por Gustavo Capanema (na época, ministro da Educação) para organizar antologias que iriam do período colonial ao modernismo, Bandeira declinou desta última parte: "o modernismo era cumbuca onde eu, macaco velho, não me atrevia a meter, já não digo a mão, mas sequer a primeira falange do dedo mindinho."

Frederico Barbosa e Claudio Daniel botam a mão no fogo pelos poetas novos. Há generosidade da parte deles em chamá-los de inventores (muitos são diluidores), e ainda mais na valorização dos inéditos. Vale referir que somente um pernambucano - ou melhor, uma pernambucana - foi selecionado. É autora totalmente desconhecida dos meios literários recifenses, mas já publicou poemas em periódicos importantes como a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional. Tem um nome exótico - Micheliny Verunschk - e vive anônima na cidade de Arcoverde (sertão de Pernambuco, há mais de 200 quilômetros da capital), onde é professora de História.

Verunschk (leia entrevista) caracteriza-se, como os seus colegas de antologia, pela busca, ou como dizem os organizadores, pela pesquisa de linguagem. Mas nada tem a ver com a herança vanguardista que ponteia em autores como Arnaldo Antunes e Carlos Ávila. Por enquanto, o seu timbre é mais de experimento que de experiência. Mas isto não quer dizer que seja uma experimentalista. A força das essências e medulas da sua poesia é mais de tensão interior que de malabarismos pra inglês ver.

Do mesmo jeito que Verunschk deve ser uma desconhecida para os paulistas e cariocas da antologia, nomes como Reynaldo Damazio e Matias Mariani são de todo ignorados em Pernambuco. O Brasil é uma ilha cercada de poetas por todos os lados. Essa antologia talvez contribua para diminui-la. Mas como reduzir realmente as distâncias num país continental sem bibliotecas em bom funcionamento nem público ledor bem formado ou boas distribuidoras?

Obras coletivas como essas, apesar das boas intenções, raras vezes ultrapassam o círculo de giz dos amigos e a nova forma de solipsimo cibernético. Reunindo autores de estados tão distantes e díspares, essa antologia é um trabalho honesto e modesto, por paradoxal que pareça. A seriedade do trabalho permite que autores tão autônimos como a pernambucana Verunschk terminem por integrar um livro de alcance limitado, mas representativo, como festeja um dos organizadores:

"Acabamos por selecionar 46 poetas, representados por 252 poemas. A escolha, de maneira alguma, representa uma afirmação categórica de que esses são o(a)s melhores poetas do Brasil hoje. Esta antologia é um amplo panorama da poesia de invenção, dentro dos limites do que conhecemos e pesquisamos, no Brasil da virada do século XX para o XXI. Erramos? Certamente. Só o tempo, o maior dos críticos literários, poderá trazer à tona os erros e acertos das nossas escolhas."

RECORRÊNCIA - Como o Brasil tomou gosto pelas antologias, outras virão, corrigindo e ampliando esta. Cada uma ao seu gosto. A poetisa Olga Savary está organizando diversas. Assis Brasil há muito trabalha nisso, tentando fazer um mapa poético do País no Século XX. Lourdes Sarmento vem organizando coletâneas temáticas. Almir Castro Barros acabou de lançar uma (também com 46 autores). Todas com suas falhas, omissões, idiossincrasias, quase nenhuma bem anotada (defeito comum à maioria absoluta dos livros publicados no Brasil), mas também com coisas positivas. As antologias, como os prêmios literários não tem regras nem métodos infalíveis, a não ser que se ponha em prática aquelas propostas de um leitor a Eugenio Montale:
 

Depois de escolhidos nas escolas primárias alguns garotos de gosto literário, eles deveriam ser separados do mundo exterior e educados em um colégio especial. Quando ficassem adultos formariam um corpo especial de funcionários, de onde seriam escolhidos os jurados dos concursos literários.

Esses juízes formariam uma espécie de monastério radical. A eles estaria proibido não só casar-se, mas publicar livros, e não deveriam sequer ter nomes - números seria mais adequado. As reuniões dessa comissão julgadora estaria totalmente vedada à imprensa. No caso de emparte, o voto de minerva deveria ser dado por um juiz eletrônico. A propósito disto, o leitor de Montale considerava fundamentar apartar esses jurados do contato humano. Para manter ativas as suas mentes bastariam os meios mecânicos, recursos audiovisuais e robôs. Conclui o leitor sua carta datada de 15 de setembro de 1963:

"O sistema que eu proponho deveria alcançar resultados objetivamente indiscutíveis. Trata-se, no entanto, de um método transitório, à espera de que os progressos do pensamento artificial (a cibernética) permitam uma seleção de valores literários conduzida com critérios rigorosamente científicos. Depois dos desastres do pensamento individual, só os supercérebros imunes às paixões e ressentimentos subjetivos podemos esperar que nos situem acima da confusão."
 



Entrevista : Micheliny Verunschk


"Escrever é tudo o que posso fazer"

Micheliny Verunschk, 28 anos, professora de História em Arcoverde (Sertão de Pernambuco) é poetisa quase totalmente inédita e desconhecida no Recife. Mas com textos publicados em sites na internet, como o Jornal de Poesia e Le Mangue, e nas revistas Cult e Poesia Sempre, despertou a atenção do poeta e professor de literatura, Frederico Barbosa. Foi a única voz da nova geração pernambucana a estar na antologia de 46 poetas que ele organizou com Claudio Daniel. Nesta entrevista, a autora fala das suas motivações literárias e seu compromisso vital com a poesia.

Diario de Pernambuco - Cecilia Meirelles, em poema famoso, diz que canta por que o instante existe. E você, por que escreve?

Micheliny Verunschk - Escrevo porque é o melhor e tudo que posso fazer. Literalmente, eu não viveria sem escrever.


DP - Para que poesia em tempo de crise?

Verunschk - A poesia oferece respostas para muitas angústias do ser humano, engendrando outros questionamentos. Algo paradoxal, próximo da filosofia, mas acredito que muito maior que ela.


DP - Nos últimos anos, têm aparecido muitas antologias de poesia. Agora você é incluída numa delas, e justo numa que glorifica a chamada poesia de invenção. Que tipo de invenção faz a sua poesia?

Verunschk - Acredito que a imagem é a grande força da minha poesia. Gosto de subverter as imagens, dar-lhes outros significados. É algo como criar o seu próprio dicionário.


DP - Fala-se muito em poesia feminina. Acredita no gênero?

Verunschk - Não, embora ache que há muito poeta por aí que faz gênero e insista em lugares-comuns para enquadrar a poesia. É muito chato esse negócio de poesia feminina, poesia engajada, etc. A poesia é muito maior que esses rótulos.


DP - Quais os poetas de que mais gosta? Que influência eles exercem sobre você?

Verunschk - Gosto de João Cabral, Carlos Drummond, Ezra Pound, Geraldino Brasil, Orides Fontella, citando aqui só os mortos. Acho que a maior influência que exercem sobre mim é a respeito do rigor na criação. Como leitora sinto na pele e na alma a seriedade e honestidade na feitura de cada poema desses mestres, então como alguém que lida com a poesia eu não posso exigir de mim menos rigor. O resultado é que nem sempre chega aos pés do que quero ou do que exijo de mim.


DP - Acredita na inspiração?

Verunschk - Acredito na elaboração. Um poema pode estar se gestando há anos e um dia ele chega até o papel como se fosse de uma tacada só. Aí muitos dirão que é inspiração, mas, que nada, ele já estava sendo feito há muito tempo.


DP - João cabral matou o lirismo, os concretistas sepultaram o verso. A sua poesia continua a cultivar os dois. De que espécie de lirismo é o seu, o da libertação a que se referiu Manuel Bandeira?

Verunschk - Talvez seja mesmo o da libertação. Quero a liberdade de escrever o que quiser na forma que quiser. Toda receita exige a criatividade do chef, seu tempero.


DP - Poesia é jogo de paciência ou de palavra cruzada?

Verunschk - Poesia é cubo mágico. Lembra daqueles cubos que você fica armando até que as cores todas se encontrem em todas asfaces? Pois é, poesia é isso para mim e o grande barato é que nem sempre dá pra montar e vencer o cubo. Acho que há um certo misticismo nisso, que alguns podem chamar de engenharia.


DP - Que influência exerce no seu trabalho de poesia a música popular brasileira? E o rap e o rock?

Verunschk - Acho que antigamente a MPB exercia uma influência mínima na minha poesia, hoje não exerce influência nenhuma. Em geral, é muito ruim o que se produz em MPB no Brasil. É interessante você me perguntar também sobre rap e rock, pois só agora é que tenho me aproximado desses ritmos, conheci Nirvana com um atraso de dez anos. Estou gostando muito dessa incursão, mas não saberia dizer se exercem ou exercerão alguma influência.


Poemas
 

Micheliny Verunschk

O Livro

Havia de encontrar
alguma velha ferida
e nela, supurando ainda
teu rosto:
outonos e infernos
esquecidos
entre páginas amareladas
e a dor, essa inútil traça.


Inventário

O armário
esconde coisas insuspeitadas:
sol
nudez
tintas
- esta coleção de peças íntimas.
O armário esconde ideogramas
e sedas chinesas
e, num canto escuro,
uma letra.


Rápido monólogo do caçador com sua caça

Trago
pardos
os olhos
de cobiça
que atiro sobre ti,
teu verbo/teu sexo:
tua presa de marfim.


De Geografia Íntima do Deserto
- A Presença Dolorosa do Deserto

Teu nome é meu deserto
e posso senti-lo
incrustado
no meu próprio território
como uma pérola
ou um gesto no vazio
como o amargo azul
e tudo quanto há de ilusório.
Teu nome é meu deserto
e ele é tão vasto
seus dentes tão agudos
seus sóis raivosos
e suas letras
(setas de ouro e prata
nos meus lábios)
são o meu terço
de mistérios dolorosos.


Da rotina

Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisível,
pelo chão,
nos objetos,
sobre os móveis da sala.
Varrer amanhã,
o pó de hoje.
Varrer.
Varrer hoje.
(E domingo
quebrar nos dentes
o copo
e sua água de vidro.
Segunda,
não esquecer:
varrer todos os vestígios.)
Serviço
 

[Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil, de Claudio Daniel e Frederico Barbosa, org.]
Editora: Landy (348 pp.)
Informações: (11) 3088-4776 ou www.landy.com.br


 

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