Manuel da Costa Pinto
Palavra afiando palavras
Manuel da Costa
Pinto
Colunista da Folha
É impossível ler
"Geografia Íntima do Deserto", de Micheliny Verunschk, sem pensar em
João Cabral de Melo Neto.
Os versos de talhe
seco, a ambiência sertaneja, o rigor poético extraído da descrição
dos objetos expostos à luz violenta do Nordeste -tudo isso sugere
uma relação de descendência, reforçada por alguns paralelos
biográficos (já que, como o autor de "A Educação pela Pedra", ela
nasceu em Recife e cresceu no interior de Pernambuco).
E, de fato, há
várias menções a João Cabral nesse livro de estréia de Micheliny
Verunschk, como se pode ler, por exemplo, nos versos iniciais de
"Dois Temas para Meninos": "O menino desenha/ a bola ausente/ e o
muro cresce/ perante o menino./ O muro prossegue,/ o menino não./
Claríssima cal/ banha seu peito./ O vôo extinto/ no cimento duro".
Estão ali a
negatividade poética (o gesto de desenhar uma ausência) e a
persistência mineral das coisas sobre os seres -duas imagens ou
conceitos fundamentais na constituição da "antilira" cabralina,
aquela rejeição do subjetivismo e da abstração expressa em poemas
como "Psicologia da Composição" e "Antiode".
Em outros momentos,
a autora parece tornar explícita sua dívida, como no caso de um
poema longo como "Variação e Rito sobre uma Tourada Espanhola", em
que a arena clara, com seu touro "vermelho e arfante", "banha de
festa e luta/ toda a praça/ que, luminosa e nua,/ acende,/ uma a
uma,/ as suas facas".
Aqui, novamente, há
uma dupla alusão a João Cabral: ao universo da tauromaquia, tão caro
ao poeta, e ao livro "Uma Faca Só Lâmina" (que ele publicou em
1956).
Mas onde existe a
identidade também se produz a diferença. Micheliny Verunschk não é
um epígono, uma discípula de João Cabral. Por isso, nesse mesmo
poema vemos aparecerem imagens de caráter onírico ("muitos animais/
saem de entre as minhas pernas") e sequências de forte conotação
sexual ("sobre o branco puríssimo/ a rosa negra intumesce:/ seu
caule espesso,/ sua pétala áspera/ sua fúria intensa e violeta").
Talvez seja essa,
afinal, a grande singularidade dessa escritora: ela consegue anexar
ao árido continente cabralino um território corporal, sensual,
ausente daquela "lição de poesia" desenhada com o "carvão da emoção
extinta".
Se existe emoção em
Micheliny Verunschk, ela não se confunde porém com uma
interioridade. A emoção é coisa entre coisas, da mesma maneira que
(na expressão de Sartre) "o Eu é um objeto que temos diante de nós".
Daí o modo
brutalista com que ela configura uma sexualidade feita de sêmen e
chaga, axila e falo -como podemos ler em "Domingo", "O que Dizem os
Girassóis sobre a Morte", "Duo" e, sobretudo, "Anotação para um
Domingo da Ressurreição": "Domingo da Ressurreição/ e leio no
jornal/ que chegado é o tempo/ de amolar as facas./ Minhas facas/
estão todas míopes/ pelo mau uso/ (posso lamber-lhes o fio/ que a
língua permanecerá/ (virgem)./ A mão, esta sim,/ cega/ pelo tempo/
de não empunhar,/ de não acariciar/ o cabo das facas/ como a um
falo/ sedento/ do orgasmo/ do corte".
Esse processo de
objetivação da emoção, todavia, não se restringe à sexualidade, mas
se estende a toda sorte de experiência íntima -que, como indica o
título do livro, se materializa poeticamente na geografia sertaneja,
em que o tempo é um "réquiem de velhas lavadeiras", em que a dor é
um "verme de arame".
Obviamente,
percebe-se nesse cortejo de imagens a presença de Arcoverde, cidade
em que a poeta mora, às portas do sertão pernambucano, com seus
"pastores rudes", sua "fome branca", seu sol como um "imenso
carrapato/ agarrado no azul".
O fato porém é que,
dentro da tradição cabralina, a poesia não representa o deserto, mas
aprende, com sua aridez, a "inventar o próprio ferro".
Os animais que
circulam por essa poesia não são animais, mas palavras que
adquiriram a destreza daquilo que nomeiam. Enfim, como o galos de
João Cabral, que tecem e entretecem a manhã, o gato de Micheliny
Verunschk é um "gato geométrico", um "gato concreto": "palavra
afiando palavras".
Geografia Íntima do Deserto
Autor: Micheliny Verunschk
Editora: Landy
Quanto: R$ 25 (120 págs.)
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