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Manuel da Costa Pinto

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Prefácio, ensaio, crítica, resenha & comentário:


Fortuna crítica:


Alguma notícia do autor:

Manuel da Costa Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan Banks, USA, Hanna

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Manuel da Costa Pinto


 

Bio-Bibliografia


 

Manuel da Costa Pinto nasceu em São Paulo em 1966. Formado em jornalismo pela PUC-SP e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, é autor de Literatura Brasileira Hoje (Publifolha, coleção “Folha Explica”) e Albert Camus – Um Elogio do Ensaio (Ateliê Editorial), co-autor de Ilha Deserta – Livros (Publifolha) e organizador e tradutor da antologia A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios, de Albert Camus (Editora Record). Foi editor-assistente da Edusp, editor-executivo do Jornal da USP, redator do caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, editor-executivo da revista Guia das Artes (especializada em artes plásticas) e, de 1997 a 2003, editor da CULT – Revista Brasileira de Literatura. Atualmente, é colunista da Folha de S.Paulo, onde assina a seção “Rodapé”, sobre literatura e livros, publicada aos sábados no “Ilustrada”. [Junho de 2004]


 

Livros publicados [inclusive co-autoria]:
 



 

Título: Livros - Ilha Deserta
Autor: Bernardo Ajzenberg
Co-autor: Manuel da Costa Pinto
Editora: Publifolha
I.S.B.N.: 8574025321



Título: Literatura Brasileira Hoje -
Col. Folha Explica

Autor: Manuel da Costa Pinto
Editora: Publifolha
Edição: 1 / 2004

I.S.B.N.: 8574025828
 



Título:
A Inteligência e o Cadafalso e Outros Ensaios

Autor: Albert Camus

Organizador e Tradutor da Antologia : Manuel da Costa Pinto

Editora: Record

I.S.B.N.: 8501053392
 



Título:
Albert Camus - Um Elogio
do Ensaio
Autor:  Manuel da Costa Pinto
Editora: Ateliê

I.S.B.N.: 8585851708

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Manuel da Costa Pinto



Título: Fahrenheit 451
Autor: Bradbury, Ray
Editora: Globo
Edição : 1 / 2003

I.S.B.N.: 8525037249

Prefácio de Manuel da Costa Pinto

 

Em 1933, quando os nazistas queimaram em praça publíca livros de escritores e intelectuais como Marx, Kafka, Thomas Mann, Albert Einstein e Freud, o criador da psicanálise fez o seguinte comentário a seu amigo Ernest Jones: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros”.

Deixando de lado o fato de que a ironia de Freud logo se tornaria ingênua diante dos fornos crematórios de Auschwitz e Dachau, podemos nos perguntar: o que aconteceria se os livros fossem incinerados, varridos da face da Terra até o ponto em que o único vestígio de milênios de tradição humanista estivesse alojado na memória de alguns poucos sobreviventes? Qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios homens, para apagar de vez a memória dos livros?

É essa a pergunta que reverbera na mente no leitor após a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Pois esse romance visionário – cuja justa celebridade foi amplificada pela repercussão do filme homônimo de François Truffaut (com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis principais) – trata justamente de uma sociedade em que os livros foram proscritos, em que o simples fato de manter obras literárias ou filosóficas em casa constitui um crime.

Fahrenheit 451 foi publicado em 1953, mas sua ação se passa num futuro não muito distante dessa época. Em uma passagem do livro, aliás, uma personagem comenta: “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas!” – o que leva o leitor a deduzir que o futuro de Bradbury corresponde mais ou menos ao nosso presente.

O enredo é ambientado numa cidade dos EUA, mas não há nada de futurista em sua paisagem; não há grandes aparatos tecnológicos ou aquela assepsia que costuma cercar as narrativas localizadas num porvir em que a ciência transformou o habitat humano num grande laboratório. A cidade de Fahrenheit 451, em resumo, é apenas um pouco mais sombria e opressiva do que a maioria das metrópoles contemporâneas, com seu misto de progresso industrial e deterioração do tecido urbano, onde moderníssimos meios de transporte atravessam bairros decadentes.

Há, porém, uma grande diferença em relação às nossas cidades: as casas de Fahrenheit 451 são à prova de combustão. Por isso, os bombeiros desempenham agora uma nova função: em lugar de apagar incêndios, sua tarefa é atear fogo. Os bombeiros de Bradbury são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas com doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão.

Esse dado inverossímil, que imanta a sociedade fictícia de Fahrenheit 451, faz com que o relato de Bradbury seja incluído na categoria das “distopias”. Em geral associadas à ficção científica, as distopias são “a descrição de um lugar fora da história, em que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do controle social” – segundo as palavras de Roberto de Sousa Causo (um importante estudioso do assunto e escritor de FC). Como o próprio nome diz, a distopia é o contrário da utopia, ou uma “utopia negativa” – e vale a pena refletir um pouco sobre esse gênero, tão peculiar ao nosso tempo, antes de avaliar a importância de Fahrenheit 451.

As utopias surgiram como uma imagem invertida do real, como uma espécie de contrapartida positiva da razão crítica: se uma das atitudes filosóficas mais persistentes ao longo do tempo é o antidogmatismo e a denúncia de uma sociedade construída sobre um sistema de mistificações (o mito, a religião, a ideologia), a utopia seria o mundo possível a partir do momento em que todas essas crenças tivessem sido superadas.

Ressalta daí uma das características das utopias: elas parecem irreais porque são racionais em excesso, porque contrastam com a irracionalidade reinante nas relações sociais. A Cidade do Sol de Campanella, o Eldorado de Thomas More (autor de Utopia ou Sobre o Ótimo Estado da República e Sobre a Nova Ilha Utopia) e o falanstério de Fourier criam em termos meramente hipotéticos uma idade do ouro do racionalismo. As utopias são constituídas por nações idílicas, em que homens solidários e justos mantêm relações de cordialidade em meio a uma natureza dadivosa e domesticada, que serve de celeiro e jardim da humanidade. As utopias são, por assim dizer, o sonho da razão, além de uma vulgarização do humanismo – e por isso as grandes utopias ocidentais estão compreendidas entre o Renascimento e o fim do século XIX.

Num século anti-humanista como o que acabamos de atravessar, porém, a razão deixou de ser o antípoda da desrazão, da mitologia e da religião, para se tornar, ela mesma, um desdobramento dessa fúria dominadora. “O esclarecimento [ou seja, a razão instrumental]  é a radicalização da angústia mítica”, escreveram Adorno e Horkheimer – e a imaginação literária do século XX foi pródiga em criar sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma num fim em si mesma: abstrata, mecanicista, reduzindo o existente a um utensílio, alienando a consciência na linha de montagem e produzindo massacres com planejamento industrial. No século XX, como na famosa gravura de Goya, o sonho da razão produz monstros. Ou, em outras palavras, distopias.

Os universos opressivos descritos em romances distópicos como Nós, de Ievguêni Zamiátin (também publicado no Brasil sob o título A Muralha Verde), Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell, seriam assim os antecedentes imediatos de Fahrenheit 451. A exemplo desses livros, encontramos em Bradbury uma sociedade policialesca, com propensões totalitárias, em que a individualidade é sacrificada a razões de Estado. Em certo sentido, porém, Fahrenheit 451 é bem mais realista – e isso não apenas no sentido da representação naturalista (livro é muito menos rico em invenções de um mundo alternativo do que seus precursores), mas na estranha verossimilhança que esse livro adquiriu cinqüenta anos após sua publicação.

A trama de Fahrenheit 451 é bastante simples e apresenta vários pontos de contato com as obras de Huxley e Orwell. O romance conta à história de Guy Montag, um bombeiro que, após várias incinerações de livros, começa a se perguntar sobre o fascínio que essas páginas impressas exercem sobre algumas pessoas obstinadas, que desafiam a ordem estabelecida pelo simples prazer de ler. Dois fatos são decisivos na urdidura do romance. Numa ação dos bombeiros, ele testemunha a auto-imolação de uma senhora (cujo sugestivo nome de família é Blake) que se recusa a abandonar sua casa, preferindo  morrer no incêndio de sua biblioteca pessoal. Paralelamente, Montag conhece Clarisse McClellan, uma jovem adolescente que instila nele o prazer de coisas simples e espontâneas – como a conversa entre amigos (coibida numa sociedade que administra o ócio por meio de atividades programadas) e a indagação sobre o porquê das coisas (uma excrescência no mundo utilitário de Fahrenheit 451, onde só importa o como de vivências protocolares).

Esses dois acontecimentos têm como pano de fundo o cotidiano asfixiante das demais personagens. Assim como em Admirável Mundo Novo (em que existe um narcótico, o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante), em Fahrenheit 451 a mulher de Montag, Mildred, vive à base de pílulas que embalam sua irrealidade cotidiana. E, como em 1984 (no qual a privacidade era devassada pela onipresença do Grande Irmão), as casas têm murais televisivos que transmitem ininterruptamente “novelas” com as quais os moradores podem interagir. A partir daí, toda a ação de Fahrenheit 451 vai se desenrolar no desafio de Montag às proibições vigentes e na sua tentativa de fuga da cidade, proporcionada pela amizade com Faber – um professor que ele outrora investigara e que agora se torna seu cúmplice.

O que interessa aqui, porém, é frisar a singularidade da distopia de Bradbury. Pois enquanto Huxley e Orwell escreveram seus livros sob o impacto dos regimes totalitários (nazismo e stalinismo), Bradbury percebe o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum.

A idéia de que existe uma ditadura da maioria, que pune o diverso, aparece em vários momentos do romance, quase sempre personificado em Beatty, o chefe dos bombeiros. No momento em que está preste a incendiar os livros da sra. Blake, por exemplo, ele diz: “Não há o menor acordo entre esses livros. Você ficou trancada aqui durante anos com essa malfadada Torre de Babel. Saia dessa situação! As pessoas nesses livros nunca existiram.” Essa intolerância diante do que é complexo, do que é desviante, do que é problemático ou contraditório, perpassa a narrativa de Bradbury e corresponde a uma antiga desconfiança em relação ao ficcional, ao poder desestabilizador da literatura e do imaginário. (Diga-se, entre parênteses, que Fahrenheit 451 poderia ilustrar perfeitamente a idéia do  ''controle do imaginário'' desenvolvida por um ensaísta como Luiz Costa Lima, que em diversas obras – Vida e Mímesis, Limites da Voz e Mímesis: Desafio ao Pensamento – descreve o processo pelo qual a literatura foi constituída, enquanto discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do imaginário social e individual, de modo a subordinar o ficcional – e sua criticidade implícita – aos discursos dominantes da religião, da filosofia ou da ciência.)

Beatty é a personagem mais fascinante de Fahrenheit 451. Como chefe dos bombeiros, ele desempenha o papel de inquisidor-mor; ao mesmo tempo, conhece profundamente aquilo que quer esmagar, sendo capaz de citar Shakespeare de cabeça. Não seria exagerado fazer um paralelo entre essa figura contraditória e o Grande Inquisidor de “Os Irmãos Karamazov”. No romance de Dostoievski, Cristo retorna a terra e é preso pela igreja católica espanhola porque, segundo o Grande Inquisidor, sua mensagem de liberdade seria insuportável para o homem. Da mesma maneira, o chefe dos bombeiros procura mostrar ao hesitante Montag que os livros são “o caminho da melancolia”, da incerteza. Os livros, enfim, são um convite à transcendência, ao desvario, a errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada. “Sempre se teme o que não é familiar”, diz Beatty – e conclui: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha.”

E é justamente aí que surge o aspecto mais inquietante de Fahrenheit 451. Bradbury não imaginou um país de analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita foi reduzida a um papel meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm função “culinária” (segundo a expressão de Adorno). As personagens sabem ler, mas só querem ler a programação de suas televisões ou o manual técnico que lhes permitirá ter acesso a um entretenimento que preenche seu vazio – como está magistralmente sintetizado por essa fala de Beatty:

Todo homem capaz de desmontar um telão de TV e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de ums reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo que peço é um passatempo sólido.

É difícil avaliar o quanto essa descrição de um mundo assolado pela indústria do entretenimento soava caricatural quando Bradbury publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum leitor do romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um instantâneo de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de televisão, onipresentes nesse livro, podem ter sido inspirados no Grande Irmão de Orwell; hoje, ironicamente, se parecem mais com os reality shows. Em Fahrenheit 451, não há um poder central que tudo vigia (como acontecia em 1984), mas um ressentimento geral que produz “bombeiros” – essa corporação de censores com mandato popular para representar “o rebanho impassível da maioria”.

Sob certo aspecto, portanto, Fahrenheit 451 não é uma distopia, mas um romance realista, que flagra a dialética demoníaca da sociedade de massas, em que as massas parecem ser títeres das elites, mas na qual as elites só existem em função das massas. Como lembra Faber, em um diálogo com Montag, a sociedade do espetáculo é uma espécie de servidão voluntária:

Os bombeiros raramente são necessários. O próprio público deixou de ler por decisão própria. Vocês, bombeiros, de vez em quando garantem um circo no qual multidões se juntam para ver a bela chama de prédios incendiados, mas, na verdade, é um espetáculo secundário, e dificilmente necessário para manter a ordem. São muito poucos os que ainda querem ser rebeldes.

Ao final do romance, o país entra em guerra, mas ela é tão importante, quanto os últimos capítulos da telenovela ou as notícias sobre a espetacular fuga de Montag, transmitida ao vivo. Ele se refugia então em uma comunidade de homens que vivem à margem da sociedade e que, para escapar à ameaça dos juízes e dos censores, decoram livros, destruindo-os em seguida. Com isso, eles podem apagar os perigosos vestígios materiais de sua devoção, ao mesmo tempo em que preservam a memória da escrita. Entretanto, esse pequeno gesto de rebeldia estará sempre ameaçado pelo veredicto de Heine: “Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens.”


 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Hélio Pólvora

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Manuel da Costa Pinto



As Portas da Percepção & Céu e Inferno,

Autor: Aldous Huxley,

Editora Globo

Edição 2002

ISBN: 8525035467

 

Prefácio de Manuel da Costa Pinto

 

A alusão que Aldous Huxley faz ao poeta William Blake nos títulos de seus dois ensaios sobre as drogas alucinógenas não deve nos enganar: As Portas da Percepção (1954) e Céu e Inferno (1956) são meditações escritas à luz radiosa da razão, relatos de experiências com a mescalina que não conduzem a uma adesão imediata aos paraísos artificiais, mas sim a uma idéia de alargamento da consciência que não elide seu elemento reflexivo.

Essa observação é fundamental por causa da história nada desprezível da recepção de Huxley em um âmbito que ultrapassa os limites da chamada “alta cultura” (na qual ele havia se consagrado como autor dos clássicos Contraponto e Admirável Mundo Novo). No final dos anos 60, o compositor, cantor e poeta Jim Morrison criou na Califórnia uma banda de rock chamada The Doors, cujo nome fora inspirado na leitura de As Portas da Percepção. Morrison morreria em Paris em 1971, provavelmente de overdose, mas sua curta e fulminante trajetória – marcada não apenas pelo sucesso musical e por escândalos comuns dentro do universo pop, como também por uma produção poética que chegou a ser comparada à de Rimbaud – acabaria estabelecendo uma ponte entre a poética visionária de Blake, o erotismo sacrificial dos concertos dos Doors e a obra de Huxley, que assim ganharia uma aura de guru da contracultura.

Essa identificação estava sintetizada num trecho do célebre poema em prosa O matrimônio do céu e do inferno – “If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite” (“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”, segundo tradução de José Arantes publicada pela editora Iluminuras). E, no entanto, a imagem de Huxley como uma espécie de profeta aristocrático da era hippie não parece resistir à leitura de As Portas da Percepção e Céu e Inferno. É bem verdade que ele mesmo alimentou a confusão ao colher os títulos dos ensaios nos aforismos de um poeta “maldito”, que mimetizou suas alucinações tanto com as palavras quanto em telas que representam personagens bíblicas em cenários apocalípticos. E também é verdade que Morrison estava sendo fiel à letra de Huxley ao conferir a suas experiências com mescalina e ácido lisérgico um caráter ritual inspirado no xamanismo: afinal, o escritor inglês escolhera a mescalina para seus experimentos justamente por causa da função sagrada que o peiote (raiz da qual é extraída a droga) desempenha nas religiões dos índios americanos.

O fato, porém, é que em nenhum momento Huxley parece buscar nos alucinógenos uma conversão mística ou uma ruptura absoluta com o mundo ordinário. Tampouco parece movido por um desacordo essencial em relação aos cárceres psicológicos e perceptivos da realidade empírica. Enquanto Blake era um gnóstico para quem “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, Huxley fez do excesso de sabedoria e de curiosidade um caminho para o palácio do êxtase: é a razão que, percebendo sua insuficiência perante a pluralidade do mundo, busca uma abertura para novas formas de percepção que sejam uma alternativa ao solipsismo (essa perversão do idealismo) e ao behaviorismo (perversão do empirismo). Nesse sentido, Aldous Huxley é um perfeito agnóstico.

Vale a pena fazer aqui um pequeno desvio para explicar a origem desse termo. Afinal, a expressão agnóstico foi literalmente inventada pelo avô de Aldous – o eminente biólogo Thomas Henry Huxley – durante as acirradas polêmicas surgidas depois da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859. Ferrenho defensor da teoria da evolução, Thomas Henry se viu na obrigação de rebater as críticas dos criacionistas (religiosos que faziam uma leitura fundamentalista das Escrituras, defendendo a idéia de que o homem foi gerado por Deus em sua conformação atual), formulando então um conceito que passou a ser um estandarte do antidogmatismo e da emancipação do pensamento:

“Quando cheguei à maturidade intelectual, e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre-pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ – haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário, e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. (...) Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos ‘gnósticos’ da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.”

Aldous Huxley foi um legítimo herdeiro do ethos iluminista e anti-religioso de seu avô. As Portas da Percepção e Céu e Inferno são relatos pacíficos de uma experiência extraordinária e sugerem um autor que não transfere para a escrita as fendas e as instabilidades de sua paisagem interior. Estamos longe do estilo candente de um Thomas de Quincey ou de um Artaud – para citar dois outros escritores que associaram drogas a um estado de espírito demoníaco. Com Huxley, estamos mais próximos do ceticismo moderno de Montaigne ou Hume; ele desconfia igualmente do totalitarismo da razão e das quimeras de nossa imaginação e só se interessa por estas últimas em sentido antropológico, como uma fresta por onde se pode sondar a alma humana. Mesmo quando tematiza as drogas em obras de ficção, o escritor inglês parece estar preocupado menos com o transe que elas provocam em personagens individuais do que com seus efeitos sobre o mecanismo psicológico das massas – caso dos narcóticos imaginários consumidos no universo asfixiante de Admirável Mundo Novo (o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante) e na sociedade utópica do romance A Ilha (a moksha, uma pílula que “liberta do cativeiro do próprio ego”). Talvez seja por isso, por essa falta de predisposição ao fantástico (“sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios”), que, ao provar primeira vez a mescalina, em 1953, Huxley tenha descoberto não um novo continente, mas um novo olhar sobre cenários familiares: 

“Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.” A essa ausência de figuras sobrenaturais, porém, corresponde a perplexidade diante do caráter transcendente que os objetos adquirem a partir da alteração do estado de consciência de quem os observa. Descrevendo as transformações que sofrem as flores de um vaso, uma cadeira ou um simples pedaço de tecido na percepção de alguém que ingeriu a droga, Huxley nos revela o “milagre do inteiro desabrochar da existência em toda sua nudez” e uma nova dimensão de tempo, “um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação”.

A despeito das referências de Huxley ao taoísmo e a místicos como São João da Cruz ou Swedenborg, essa “visão sacramental da realidade” proporcionada pela mescalina se restringe a um plano estritamente natural. Huxley admira os estados de espírito extáticos porque eles proporcionam exemplos do caráter irredutível da existência – e, sob esse aspecto, o uso argumentativo que Huxley faz de Buda e de Mestre Eckhart tem uma surpreendente semelhança com o sentido que este grande nome da mística renana ou o filósofo japonês Nishida adquirem na obra de Heidegger. De resto, quando Huxley descreve sua percepção “narcotizada” de uma cadeira como “minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira”, a frase parece remeter exatamente à distinção que o filósofo de Ser e Tempo faz entre o ente manipulável (tal qual instituído pela razão instrumental) e o ser autêntico (cuja eterna irrupção fora encoberta pela dicotomia sujeito-objeto e seria redescoberta pela superação heideggeriana da metafísica).

À diferença de Heidegger, porém, Huxley considera que tanto o esquecimento da totalidade do ser quanto seu oposto – a abertura da consciência para a irrupção dos acontecimentos – são um fenômeno do mundo biológico. Para ele, o cérebro e o sistema nervoso seriam uma “válvula redutora”, que evita – por meio do caráter seletivo da memória e das restrições impostas pela linguagem – que o homem seja esmagado pela torrente de informações a que sua “onisciência” potencial estaria sujeita.

Seria um anacronismo tentar avaliar a correção dessas afirmações a partir das descobertas recentes das neurociências. Nem As Portas da Percepção nem Céu e Inferno são tratados científicos. Huxley cita vários pesquisadores de seu tempo, consulta especialistas, explica a ação química dos diferentes tipos de drogas, defende suas virtudes e aponta seus malefícios – mas parece se guiar sobretudo por aquele espírito de curiosidade intelectual formulado por Montaigne na aurora da modernidade. Céu e Inferno – texto que dá continuidade às experiências relatadas em  As Portas da Percepção – é uma cartografia da mente cuja analogia entre os estados possíveis da consciência e as zonas do globo (com sua diversidade de fauna e flora) deve muito à descrição, feita nos Ensaios de Montaigne, das “maravilhas” encontradas pelos navegantes nos antípodas das terras civilizadas.

Em Céu e Inferno, essas metáforas geográficas expressam “a dessemelhança essencial das regiões longínquas da mente” que as drogas permitem desbravar. Para o leitor de hoje, elas têm também um significado ético: ensinam a olhar com tolerância e compreensão para essas pequenas epifanias que nos consolam de um mundo em que o prazer é mercantilizado pela indústria do combate ao narcotráfico e em que a mente é agenciada pelos psicofármacos. Aliás, a proliferação atual das drogas normalizantes – que reduzem o cérebro a uma glândula e transformam a existência num protocolo – torna ainda mais urgente a necessidade de transcendência que podemos detectar pela onipresença do uso de alucinógenos nas mais variadas culturas. Como escreve Aldous Huxley: “Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, jamais seja capaz de passar sem Paraísos Artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma.”

 

 

   

 

Alphonsus Guimaraens Filho

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

 


 

07/08/2006