Manuel
da Costa Pinto
Título:
Fahrenheit 451
Autor: Bradbury, Ray
Editora: Globo
Edição : 1 / 2003
I.S.B.N.:
8525037249
Prefácio
de Manuel da Costa Pinto
Em
1933, quando os nazistas queimaram em praça publíca livros de
escritores e intelectuais como Marx, Kafka, Thomas Mann, Albert
Einstein e Freud, o criador da psicanálise fez o seguinte comentário
a seu amigo Ernest Jones: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade
Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em
queimar meus livros”.
Deixando
de lado o fato de que a ironia de Freud logo se tornaria ingênua
diante dos fornos crematórios de Auschwitz e Dachau, podemos nos
perguntar: o que aconteceria se os livros fossem incinerados, varridos
da face da Terra até o ponto em que o único vestígio de milênios
de tradição humanista estivesse alojado na memória de alguns poucos
sobreviventes? Qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios
homens, para apagar de vez a memória dos livros?
É
essa a pergunta que reverbera na mente no leitor após a leitura de Fahrenheit
451, de Ray Bradbury. Pois esse romance visionário – cuja justa
celebridade foi amplificada pela repercussão do filme homônimo de
François Truffaut (com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis
principais) – trata justamente de uma sociedade em que os livros
foram proscritos, em que o simples fato de manter obras literárias ou
filosóficas em casa constitui um crime.
Fahrenheit
451 foi
publicado em 1953, mas sua ação se passa num futuro não muito
distante dessa época. Em uma passagem do livro, aliás, uma
personagem comenta: “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras
atômicas!” – o que leva o leitor a deduzir que o futuro de
Bradbury corresponde mais ou menos ao nosso presente.
O
enredo é ambientado numa cidade dos EUA, mas não há nada de
futurista em sua paisagem; não há grandes aparatos tecnológicos ou
aquela assepsia que costuma cercar as narrativas localizadas num
porvir em que a ciência transformou o habitat humano num
grande laboratório. A cidade de Fahrenheit 451, em resumo, é
apenas um pouco mais sombria e opressiva do que a maioria das metrópoles
contemporâneas, com seu misto de progresso industrial e deterioração
do tecido urbano, onde moderníssimos meios de transporte atravessam
bairros decadentes.
Há,
porém, uma grande diferença em relação às nossas cidades: as
casas de Fahrenheit 451 são à prova de combustão. Por isso,
os bombeiros desempenham agora uma nova função: em lugar de apagar
incêndios, sua tarefa é atear fogo. Os bombeiros de Bradbury são
agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas
quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações
são cotidianamente sufocadas com doses maciças de comprimidos
narcotizantes e pela onipresença da televisão.
Esse
dado inverossímil, que imanta a sociedade fictícia de Fahrenheit
451, faz com que o relato de Bradbury seja incluído na categoria
das “distopias”. Em geral associadas à ficção científica,
as distopias são “a descrição de um lugar fora da história, em
que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência
ou do controle social” – segundo as palavras de Roberto de Sousa
Causo (um importante estudioso do assunto e escritor de FC). Como o próprio
nome diz, a distopia é o contrário da utopia, ou uma “utopia
negativa” – e vale a pena refletir um pouco sobre esse gênero, tão
peculiar ao nosso tempo, antes de avaliar a importância de Fahrenheit
451.
As
utopias surgiram como uma imagem invertida do real, como uma espécie
de contrapartida positiva da razão crítica: se uma das atitudes
filosóficas mais persistentes ao longo do tempo é o antidogmatismo e
a denúncia de uma sociedade construída sobre um sistema de mistificações
(o mito, a religião, a ideologia), a utopia seria o mundo possível a
partir do momento em que todas essas crenças tivessem sido superadas.
Ressalta
daí uma das características das utopias: elas parecem irreais porque
são racionais em excesso, porque contrastam com a irracionalidade
reinante nas relações sociais. A Cidade do Sol de Campanella,
o Eldorado de Thomas More (autor de Utopia ou Sobre o Ótimo Estado
da República e Sobre a Nova Ilha Utopia) e o falanstério
de Fourier criam em termos meramente hipotéticos uma idade do ouro do
racionalismo. As utopias são constituídas por nações idílicas, em
que homens solidários e justos mantêm relações de cordialidade em
meio a uma natureza dadivosa e domesticada, que serve de celeiro e
jardim da humanidade. As utopias são, por assim dizer, o sonho da razão,
além de uma vulgarização do humanismo – e por isso as grandes
utopias ocidentais estão compreendidas entre o Renascimento e o fim
do século XIX.
Num
século anti-humanista como o que acabamos de atravessar, porém, a
razão deixou de ser o antípoda da desrazão, da mitologia e da
religião, para se tornar, ela mesma, um desdobramento dessa fúria
dominadora. “O esclarecimento [ou seja, a razão instrumental]
é a radicalização da angústia mítica”, escreveram Adorno
e Horkheimer – e a imaginação literária do século XX foi pródiga
em criar sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma
num fim em si mesma: abstrata, mecanicista, reduzindo o existente a um
utensílio, alienando a consciência na linha de montagem e produzindo
massacres com planejamento industrial. No século XX, como na famosa
gravura de Goya, o sonho da razão produz monstros. Ou, em outras
palavras, distopias.
Os
universos opressivos descritos em romances distópicos como Nós,
de Ievguêni Zamiátin (também publicado no Brasil sob o título A
Muralha Verde), Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou
A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell,
seriam assim os antecedentes imediatos de Fahrenheit 451. A
exemplo desses livros, encontramos em Bradbury uma sociedade
policialesca, com propensões totalitárias, em que a individualidade
é sacrificada a razões de Estado. Em certo sentido, porém, Fahrenheit
451 é bem mais realista – e isso não apenas no sentido da
representação naturalista (livro é muito menos rico em invenções
de um mundo alternativo do que seus precursores), mas na estranha
verossimilhança que esse livro adquiriu cinqüenta anos após sua
publicação.
A
trama de Fahrenheit 451 é bastante simples e apresenta vários
pontos de contato com as obras de Huxley e Orwell. O romance conta à
história de Guy Montag, um bombeiro que, após várias incinerações
de livros, começa a se perguntar sobre o fascínio que essas páginas
impressas exercem sobre algumas pessoas obstinadas, que desafiam a
ordem estabelecida pelo simples prazer de ler. Dois fatos são
decisivos na urdidura do romance. Numa ação dos bombeiros, ele
testemunha a auto-imolação de uma senhora (cujo sugestivo nome de
família é Blake) que se recusa a abandonar sua casa, preferindo
morrer no incêndio de sua biblioteca pessoal. Paralelamente,
Montag conhece Clarisse McClellan, uma jovem adolescente que instila
nele o prazer de coisas simples e espontâneas – como a conversa
entre amigos (coibida numa sociedade que administra o ócio por meio
de atividades programadas) e a indagação sobre o porquê das
coisas (uma excrescência no mundo utilitário de Fahrenheit 451,
onde só importa o como de vivências protocolares).
Esses
dois acontecimentos têm como pano de fundo o cotidiano asfixiante das
demais personagens. Assim como em Admirável Mundo Novo (em que
existe um narcótico, o soma, que provoca um bem-estar
politicamente anestesiante), em Fahrenheit 451 a mulher de
Montag, Mildred, vive à base de pílulas que embalam sua irrealidade
cotidiana. E, como em 1984 (no qual a privacidade era devassada
pela onipresença do Grande Irmão), as casas têm murais televisivos
que transmitem ininterruptamente “novelas” com as quais os
moradores podem interagir. A partir daí, toda a ação de Fahrenheit
451 vai se desenrolar no desafio de Montag às proibições
vigentes e na sua tentativa de fuga da cidade, proporcionada pela
amizade com Faber – um professor que ele outrora investigara e que
agora se torna seu cúmplice.
O
que interessa aqui, porém, é frisar a singularidade da distopia de
Bradbury. Pois enquanto Huxley e Orwell escreveram seus livros sob o
impacto dos regimes totalitários (nazismo e stalinismo), Bradbury
percebe o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a indústria
cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral
do senso comum.
A
idéia de que existe uma ditadura da maioria, que pune o diverso,
aparece em vários momentos do romance, quase sempre personificado em
Beatty, o chefe dos bombeiros. No momento em que está preste a
incendiar os livros da sra. Blake, por exemplo, ele diz: “Não
há o menor acordo entre esses livros. Você ficou trancada aqui
durante anos com essa malfadada Torre de Babel. Saia dessa situação!
As pessoas nesses livros nunca existiram.”
Essa intolerância diante do que é complexo, do que é desviante, do
que é problemático ou contraditório, perpassa a narrativa de
Bradbury e corresponde a uma antiga desconfiança em relação ao
ficcional, ao poder desestabilizador da literatura e do imaginário.
(Diga-se, entre parênteses, que Fahrenheit 451 poderia
ilustrar perfeitamente a idéia do
''controle do imaginário'' desenvolvida por um ensaísta como
Luiz Costa Lima, que em diversas obras – Vida e Mímesis,
Limites da Voz e Mímesis: Desafio ao Pensamento –
descreve o processo pelo qual a literatura foi constituída, enquanto
discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do imaginário
social e individual, de modo a subordinar o ficcional – e sua
criticidade implícita – aos discursos dominantes da religião, da
filosofia ou da ciência.)
Beatty
é a personagem mais fascinante de Fahrenheit 451. Como chefe
dos bombeiros, ele desempenha o papel de inquisidor-mor; ao mesmo
tempo, conhece profundamente aquilo que quer esmagar, sendo capaz de
citar Shakespeare de cabeça. Não seria exagerado fazer um paralelo
entre essa figura contraditória e o Grande Inquisidor de “Os Irmãos
Karamazov”. No romance de Dostoievski, Cristo retorna a terra e é
preso pela igreja católica espanhola porque, segundo o Grande
Inquisidor, sua mensagem de liberdade seria insuportável para o
homem. Da mesma maneira, o chefe dos bombeiros procura mostrar ao
hesitante Montag que os livros são “o caminho da melancolia”, da
incerteza. Os livros, enfim, são um convite à transcendência, ao
desvario, a errância, ao desvio em relação ao destino bovino da
humanidade conformada. “Sempre
se teme o que não é familiar”,
diz Beatty – e conclui: “Um
livro é uma arma carregada na casa vizinha.”
E
é justamente aí que surge o aspecto mais inquietante de Fahrenheit
451. Bradbury não imaginou um país de analfabetos, mas
diagnosticou um mundo em que a escrita foi reduzida a um papel
meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm função
“culinária” (segundo a expressão de Adorno). As personagens
sabem ler, mas só querem ler a programação de suas televisões ou o
manual técnico que lhes permitirá ter acesso a um entretenimento que
preenche seu vazio – como está magistralmente sintetizado por essa
fala de Beatty:
“Todo
homem capaz de desmontar um telão de TV e montá-lo novamente, e a
maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem
que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que
simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta
bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com
isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos,
seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo
o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o
filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho.
Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de ums
reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo que peço é
um passatempo sólido.”
É
difícil avaliar o quanto essa descrição de um mundo assolado pela
indústria do entretenimento soava caricatural quando Bradbury
publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum leitor do
romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um instantâneo
de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de televisão,
onipresentes nesse livro, podem ter sido inspirados no Grande Irmão
de Orwell; hoje, ironicamente, se parecem mais com os reality shows.
Em Fahrenheit 451, não há um poder central que tudo vigia
(como acontecia em 1984), mas um ressentimento geral que produz
“bombeiros” – essa corporação de censores com mandato popular
para representar “o rebanho impassível da maioria”.
Sob
certo aspecto, portanto, Fahrenheit 451 não é uma distopia,
mas um romance realista, que flagra a dialética demoníaca da
sociedade de massas, em que as massas parecem ser títeres das elites,
mas na qual as elites só existem em função das massas. Como lembra
Faber, em um diálogo com Montag, a sociedade do espetáculo é uma
espécie de servidão voluntária:
“Os
bombeiros raramente são necessários. O próprio público deixou de
ler por decisão própria. Vocês, bombeiros, de vez em quando
garantem um circo no qual multidões se juntam para ver a bela chama
de prédios incendiados, mas, na verdade, é um espetáculo secundário,
e dificilmente necessário para manter a ordem. São muito poucos os
que ainda querem ser rebeldes.”
Ao
final do romance, o país entra em guerra, mas ela é tão importante,
quanto os últimos capítulos da telenovela ou as notícias sobre a
espetacular fuga de Montag, transmitida ao vivo. Ele se refugia então
em uma comunidade de homens que vivem à margem da sociedade e que,
para escapar à ameaça dos juízes e dos censores, decoram livros,
destruindo-os em seguida. Com isso, eles podem apagar os perigosos
vestígios materiais de sua devoção, ao mesmo tempo em que preservam
a memória da escrita. Entretanto, esse pequeno gesto de rebeldia
estará sempre ameaçado pelo veredicto de Heine: “Onde se lançam
livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens.”
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