Miguel Carneiro
O cantar de Adelmo Oliveira
I
Que é a poesia?
Uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados
II
Que é o Poeta?
um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem
(Cassiano Ricardo, "Poética")
A poesia perdura
com o tempo e semelhante ao vinho francês traz a fragrância do
bouquet das palavras que, saboreadas, nos remetem ao sonho ou
aos pesadelos. A poesia é a única arte que se autopromulga, pois tem
face diferenciada e torna-se, com o açoite das décadas, eterna como
o bronze que recobre os sinos das catedrais. O poeta pertence à
corte de anjos sobre a face da terra. Sua voz é ouvida pelos deuses.
E nesse séqüito de hierarquias celestes de anjos/poetas há também os
malditos que escrevem versos medíocres(?).
O poeta
Adelmo (José de) Oliveira é um poeta que pertence à
hierarquia dos serafins. Nascido em treze de maio de 1934, em
Itabuna, terra de outro vate maior, Florisvaldo Mattos, vem ao longo
de seis décadas nos brindando como seu puro vinho, rejuvenescido na
lembrança de seu labor poético a traduzir a vida em versos como se
anjos estivessem a soprar trombetas. Adelmo Oliveira é um anjo de
cujos versos são extraídos sonetos, baladas, rondós, glosas,
canções... A força de sua poesia e a lírica do seu cantar é de fato
exuberante e denunciadora. Oliveira esteve no front das
batalhas quando a Besta queria tomar conta do Brasil. O apocalipse
que testemunhou lhe deixou seqüelas físicas, incuráveis. Somente a
poesia para transcender aqueles duros tempos de barbárie e
escuridão.
Advogado,
ex-parlamentar pelo digno MDB, poeta, letrista de canções em
parceria com Fabio Paes, Augusto Vasconcelos e outros, colega de
turma de meu saudoso cunhado Gildásio Oliveira Souza, é um poeta que
com o tempo passei a lhe ter profundo respeito e carinho.
Foi em 1972,
quando eu andava à cata de poetas baianos, que descobri a poesia de
Adelmo, na Antologia "Breve Romanceiro do Natal", com apresentação
sublime de Dom Timóteo Amoroso Anastácio, combatente religioso, que,
aqui na Bahia, durante os anos negros da ditadura militar, abrigou
no Mosteiro de São Bento diversos cidadãos perseguidos pelo
famigerado regime. Dessa Antologia ali estavam também poetas que com
o tempo se tornaram ternos ao meu coração de menino velho: Maria da
Conceição Paranhos, Carlos Cunha, Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira
Filho, Ildázio Tavares, Fernando Batinga de Mendonça e o saudoso
José de Oliveira Falcón.
E, nesta bela Antologia, ali se encontra o poema "Meu Natal de
Sempre", de Adelmo:
Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, pequeno ainda, me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia.
Ficou no céu o tempo que sonhei:
Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperanças
Qual pacote amarrado pelo vento.
Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto:
As bolas de borracha coloridas
(Revólver de brincar de detetive).
Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas,
Meus amigos, também, o que não tive.
A vida dá presente todo dia:
A dor que sinto agora, não sentia.
Ficou no rosto o traço que não tinha:
A solidão que sopra lá de fora.
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas.
Ganho, então, meu presente de lembranças:
Uma flor na lapela e meu cansaço.
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços.
No poema acima
citado, a memória emerge em meio à dor, à perda e ao isolamento do
mundo. A lembrança do passado pontua toda essa obra. O homem feito,
repleto de amarguras, relembra em sonhos o território da infância.
Mas, com o passar do tempo, ainda em Riachão do Jacuípe, na casa de
Gildásio, e minha irmã Maria, descobri o antológico O Som dos
Cavalos Selvagens, seu terceiro livro, publicado nos idos de
1971, em plena ditadura, numa capa primorosa do artista plástico
baiano, depois cineasta, Chico Liberato. A tiragem desse livro foi
confiscada e proibida pelos militares.
O Som dos
Cavalos Selvagens é um libelo à liberdade, um canto de
ajuntamento de homens, clamor de um poeta torturado que emergia dos
fétidos porões para alcançar o povo. Era um cantar de um mundo
desmoronado:
O SOM DOS CAVALOS SELVAGENS
Dentro da noite
e pelo dia
um eco surdo
de ventania
Sobe a montanha
transpõe o vale
a fúria avança
a sombra invade
Marca no tempo
finas esporas
um cata-vento
no fio das horas
Patas de ferro
porta-fuzis
deixa no vento
a cicatriz
Dentes de faca
olhos de fogo
cuspindo raiva
do próprio rosto
Destrói cidades
e espanca a luz
por onde passa
finca uma cruz
Tempo de guerra,
este é meu tempo
cavalos de ódio
no pensamento.
Em a "Pequena
Canção do Porta-estandarte", desse mesmo belo livro, o poeta se
debruça sobre o tempo sombrio em que o país vivia. E conclama a
massa a sair do imobilismo e gritar por liberdades democráticas. É
de se observar que o poema foi escrito em plenos anos de chumbo,
tendo como chefe da nação o então carrasco General Emilio Garrastazu
Médici cujo único legado para a história foi ter construído a
Transamazônica, ter imposto a João Saldanha convocar Dadá Maravilha
para a Seleção Brasileira de 70, e ter assassinado centenas de
cidadãos brasileiros nos sujos aparelhos da repressão.
Eis o poema de
que vos falo:
PEQUENA CANÇÃO DO PORTA-ESTANDARTE
Escrevo teu nome
nas paredes e no chão,
nos passeios, nas esquinas
e nos muros do cais
escrevo teu nome.
Não é sede de vingança.
Não é ânsia de terror.
Não é fuga ao desvario.
Não é escape de angústia amorosa
nem murmúrio de sentimentos dissolutos.
Escrevo teu nome
em pleno hall das casas pias,
no pátio dos conventos,
no frontispício das igrejas
e, também, nos lugares
em que a inércia
brota como planta daninha.
Avise ao amigo,
ao vizinho, ao soldado,
ao funcionário público,
aos presos, aos proscritos,
aos operários em geral,
que partam o silêncio;
que saiam do seu mutismo,
da sua indiferença escravizada,
que fabrica amargura;
e subam à tona das ruas
para escrever o teu nome.
Diga-lhes que o caminho é amargo;
que o alimento é o próprio sacrifício;
que a morte é uma sementeira,
onde a mutilação dos corpos
servirá de adubo
para integração da nova batalha.
Diga-lhes, também, que a esperança
está com a juventude:
pronta, unida,
para abertura da marcha.
Escrevo teu nome
como quem lança a semente
e fica à espera da colheita.
Escrevo teu nome
como quem vê no sangue
a força da vida.
Escrevo teu nome
como quem prega a paz
e busca a felicidade.
A função de um
poeta é ser protagonista da história, testemunhar o seu tempo. Quem
questiona a inutilidade da poesia deveria dela se afastar. A poesia
só é inútil para aqueles que não têm compromisso com o seu povo. E é
com a poesia que se constrói uma nação e os poetas são os
verdadeiros arautos da liberdade. O que seria do Brasil se não
houvesse o poeta Antônio de Castro Alves, Gregório de Matos, Soares
Feitosa? O que seria de Portugal sem Camões? A Espanha sem Federico
Garcia Lorca?
Há em cada poeta
um misto de santidade, pois cada poeta está mais próximo de Deus. Na
medida em que enuncia uma linguagem que toca os corações de todos os
homens, rudes e polidos, segundo as normas que regem a sociedade
pós-moderna: excludente, globalizada, egoísta e multifacetada. E,
nesses tempos de falta de solidariedade, da raridade de caráter
entre as relações, nada mais atual que rever em profundidade os
poemas de Adelmo Oliveira.
Leia Adelmo Oliveira
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