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Miguel Carneiro


 


O bestiário na poesia de Renato Suttana


 

 

Foi ainda menino, nos idos de 1961, em Riachão do Jacuípe, naquele descampado de caatingas, serras e vales, que a presença meiga dos animais se tornou familiar em minha vida. Pois, através do "ABC dos Bichos", da Editora Melhoramentos, fui alfabetizado por minha doce e terna irmã Maria Angélica.

Recordo, que naquelas manhãs jacuipenses, sentados ficávamos no avarandado da nossa casa, na Rua Nova, e o ruído, os cheiros do papel e as imagens coloridas daquele inesquecível livrinho, estampando imponentes e curiosos animais, jamais se fariam olvidar, e creio que ali se delinearam talvez os meus primeiros passos no universo da "Última flor do Lácio, inculta e bela", como bem a definiu o poeta parnasiano Bilac.

O bestiário é um gênero literário em que se fala de animais com intenção edificante. E a presença dos bichos sempre foi uma constante para muitos poetas e contistas, fazendo deles como que metáforas da própria condição da existência humana ou tomando-os como exemplos elementares e indissociáveis da personalidade de alguns homens. Há tantos homens-bichos como também há inúmeros bichos-homens.

O mais antigo bestiário de que se tem conhecimento é o Physiologus, composto em grego no século II d.C., e que inspirou inúmeras obras em latim, escritas em sua maioria por clérigos. As Etimologias de Isidoro de Sevilha no séc. VII d.C. constituem a base científica para o estudo dos animais na Idade Média. Presentes na vida cotidiana, os animais domésticos ilustram numerosos manuscritos: textos, livros de saúde, tratados de agronomia, poesia, fábulas, contos, romances. No entanto a crueldade do homem para com os animais em toda a história da humanidade é latente, e diante de caçadores profissionais inúmeras espécies da fauna brasileira são fadadas ao desaparecimento e à extinção total. O animal não é cruel, cruel é o homem que o destrói.

É primorosa a edição de Bichos (poesia, 2005) do poeta Renato Suttana (1966), que é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava, Brasil. Autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005),e na rede da Internet mantém um sítio especializado em literatura http://geocities.yahoo.com.br/rsuttana

Bichos de Suttana, com ilustrações belíssimas de Nicolau Saião, renomado poeta e artista plástico português, diretor da Casa "José Régio", é pontuado com vinte e três poemas de versos concisos, na maioria tercetos, lacônicos e breves, estancados como soluços numa poética portentosa, harmônica em sua composição literária de elevado sentimento de beleza, fruto da lira segura desse vate amigo.

A poética de Suttana, com Bichos, é a visão adulta de um homem diante dos animais, enaltecendo sua beleza, os perigos, os medos, e por ela não perpassa aquela visão ingênua e infantil ao louvar esses nossos amigos, seres irracionais. Remete-nos a celebrar com ele a farta natureza deixada pelo criador para que o convívio com os animais seja pacífico e de respeito. E essa visão se pode desfrutar quando o poeta declama, em "A serpente":

"Mais que um pecado
a serpente
nos ensina a simplicidade
fria
de ser apenas
o que se é
Por isso se arrasta na relva,
por isso se enrosca num tronco –
e devora em silêncio."

 

No poema "O leopardo", divisa-se o garbo silencioso e oculto, porém selvagem daquele arcabouço dourado, onde a presença da morte é impressa com suas matizes pretas, como se fossem sinais de avisos no belo corpo desse felino. A fera das savanas africanas, em sua luta diária pela sobrevivência, acutila a presa para manter-se viva, e assim afirma o poeta Renato Suttana:

"O leopardo –
ele tem de lutar
todos os dias
por si mesmo. Ele
mata para existir –
Ele tem de matar
para que exista a pele dourada
onde se estampam
manchas pretas."

 

Dizem que Deus inventou os leões, os ursos e as serpentes para que O pudéssemos invocar quando tivéssemos medo desses animais. O leão, que também é chamado de "Rei da Floresta", impõe só com o olhar um verdadeiro pavor. E Michelet afirmava que "la chasse à l’aigle et au lion, d’accord, mais point de chasse aux faibles". E o bicho, segundo o poeta Suttana, com sua imensa juba de ouro, é para ele um caldeirão solar. De fato, na inquietude que se delineia no seu porte, não há mortal que não o tema. E o escritor francês Gerard já afirmava: "N’accusons pas de cruauté un animal que vit du sang d’un autre; car parmi les animaux aucun n’est cruel et feroce dans l’acception que nous attachons à ces mots. En egorgeant les êtres destinés par leur faiblesse à leur servir de pâture, ils obeissent aux lois de la nature vivante. L’homme seul est veritablement cruel, car seul il tue par desoevrement ou par curiosité". Assim:

"O leão
é um centro de violência
(um caldeirão solar

no centro
de um vazio).
Nada se forma

à sua volta.
No leão
a vida abocanha

a própria cauda."

 

Já no poema "A abelha", há algo de misterioso e belo nesse pequeno inseto. Tal como quando nos deparamos com a beleza de um buquê de rosas, em ambos está insinuado que qualquer deslize leva ao ferimento: assim como a doçura do mel silvestre, há também o terrível ferrão dos zangões:

"Inutilmente procuraremos
nela
uma lição:

a abelha.
(Seu olhar seco –
seu zumbido

é só um deserto medido,
alado,
à luz do dia.)

Quem explica uma abelha
senão
pela mistura

de mel e ferrão?"

 

Para mim o ápice da poesia de Suttana, que se desvela num enunciado de ternura nesse precioso livro (edição do autor), se dá na página 29, com o poema "O lagarto", onde o poder de síntese condensa a mensagem subjetiva do poeta:

"Uma mancha negra
no muro
o lagarto

é mais
que
coisa.

(Congelado no instante
digere
a sua própria eternidade:

calcula
o seu ouro
em silêncio.)

Aguarda
para lançar-se
ao que lhe convém.

 

Quem lê Bichos de Renato Suttana terá de agora em diante uma outra postura diante do Criador e de suas criaturas. Contudo, um breve aviso aos navegantes: não sou crítico literário e não ousaria me enveredar nessa seara. Sou apenas um amante da boa poesia, e eis o meu testemunho sobre a poesia desse poeta mineiro, terno em meu coração de poeta
 



Renato Suttana
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22/12/2005