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Marisa Lajolo


 

ANCHIETABILAC
Bilac lê Anchieta que escreve o Brasil[1]
 

O século que viu Colombo
Viu Guttemberg também [2].


 

ANCHIETA

Cavaleiro da mística aventura,
Herói cristão! nas provações atrozes
Sonhas, casando tua voz às vozes
Dos ventos e dos rios na espessura:

Entrando as brenhas, teu amor procura
Os índios, ora filhos, ora algozes,
Aves pela inocência, e onças ferozes
Pela bruteza feras, na floresta escura

Semeador de esperanças e quimeras,
Bandeirante de entradas mais suaves,
Nos espinhos a carne dilaceras:

E, por que as almas e os sertões desbraves,
Cantas: Orfeu humanizando as feras,
São Francisco de Assis pregando às aves ...
 


 

Publicado no livro Tarde, obra póstuma que recolhe as últimas produções do poeta brasileiro Olavo Bilac ( 1865-1918) o poema acima celebra José de Anchieta (1534-1597)[3] que chegou em 1549 com D.Duarte da Costa, Governador Geral, à América Portuguesa. Desincumbiu-se com tal zelo das tarefas de catequista e colonizador que se tornou personagem da história política e literária brasileira: foi mediador em várias situações de conflito entre índios e colonos e seus poemas integram o cânon literário brasileiro.

Alfredo Bosi o inclui na História concisa da literatura brasileira como zeloso leitor de Virgílio e de Ovídio[4] e Antonio Cândido e Aderaldo Castelo, na Presença da literatura brasileira o consideram exemplo significativo no século XVI , da realização de uma expressão literária que correspondesse às novas condições do homem na paisagem americana [5] .

A biografia de José de Anchieta parece, efetivamente adequada para ser adjetivada - como o faz Bilac no soneto em questão - como aventurosa e heróica. Sua vida se pontilha de lances romanescos e se coroa por sua recente beatificação. João Paulo II, em 1980 beatifica o Apóstolo do Brasil na esteira de episódios presumidamente miraculosos, como suspensão de tempestades, curas inesperadas, conversões impossíveis, e domesticação instantânea de animais selvagens [6].

Em nível mais especificamente político, Anchieta parece ter desempenhado papel fundamental na consolidação do domínio português sobre a colônia americana, reiteradamente ameaçada por franceses aliados a alguns povos indígenas, ficando por conta dos jesuítas - destacando-se dentre eles José de Anchieta - a sustentação doutrinária e ideológica das investidas e vitórias portuguesas.

Uma das peças literárias anchietanas, inclusive, celebra um desses feitos militares: ao cantar no poema De gestis Mendi de Saa [7] a figura do Governador Geral que sucedeu a Duarte da Costa, Anchieta está celebrando a vitória das forças portuguesas contra as armas francesas em aliança com os tamoios.

Para melhor cumprir sua função de catequista, e também para expressar seu profundo sentimento religioso, José de Anchieta escreveu inúmeros poemas e peças de teatro [8], marcando-se sua produção literária pelo poliglotismo. Ora latim, ora português, ora a língua brasílica , ora simultaneamente latim, português, tupi e espanhol dão conta do virtuosismo de José de Anchieta, mestre de gramática latina dos estudantes jesuítas e também autor de uma bela e clássica Arte da gramática da língua mais falada na costa do Brasil .

Publicada, pela primeira vez em 1595, esta última obra constitui a mais antiga descrição de uma língua indígena brasileira e tornou-se paradigma de várias outras gramáticas, sendo utilizada, ainda no século XVI, por jesuítas que viajavam a diferentes rincões da América luso-espanhola. Hoje, além de seu valor lingüístico , esta Arte de gramática pode ser lida como manifestação eloqüente da política de linguagem que fazia parte da ideologia cultural portuguesa do século XVI e que inspirava a colonização das possessões portuguesas de além mar, entre as quais incluía-se o Brasil, então chamado Terra de Santa Cruz .

Na Arte de gramática , a inexistência na língua indígena dos sons - F, L e R - levou Anchieta a postular que um povo com tal deficiência em sua fonologia no podia ter nem Fé, nem Leyes, nem Rei ... contando-se entre os lucros da colonização a Fé que os Jesuítas traziam, o Rei trazido pelos portugueses, e as leis que vinham na bagagem de ambos ...

No caso da colonização brasileira, parece que a imposição cultural da língua portuguesa encontrou resistência por parte dos índios e também oposição dos jesuítas, criadores da língua geral, espécie de língua franca na qual processavam-se as praticas de evangelização, o que torna compreensível que os inacianos se insurgissem contra medidas que ameaçassem o que se poderia chamar de monopólio jesuítico da comunicação .

Diferentes documentos da colonização -particularmente os emanados do governo de D. José I na segunda metade do século XVIII, quando os jesuítas já haviam sido expulsos de Portugal e de suas colônias- registram impasses e desencontros dos projetos que inspiravam a vários - e nem sempre de interesses convergentes- agentes da colonização do século XVI luso-brasileiro.

O excerto abaixo, extraído de um Diretório português de 1758 faz alusão a quase todos estes impasses:

"Nao se podendo negar, que os índios deste Estado se conservaram até agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos Sertões, em que nasceram, praticando os péssimos, e abomináveis costumes do Paganismo, não só privados do verdadeiro conhecimento dos adoráveis mistérios da nossa Sagrada Religião, mas até das mesmas conveniências Temporais, que só se podem conseguir pelos meios da Civilidade, da Cultura e do Comércio: E sendo evidente, que as paternais providencias do Nosso Augusto Soberano, se dirigem unicamente a cristianizar, e civilizar estes até agora infelizes, e miseráveis Povos, para que saindo da ignorância, e rusticidade, a que se acham reduzidos, possam ser úteis a si, aos moradores, e ao Estado (...) Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nacoens, que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos Povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade de seus antigos costumes; e tem mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz nele o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando, pois todas as Nacoens polidas do Mundo este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nella o uso da Língua, a que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável,e diabólica, para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os meninos, e meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aquele Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da Língua própria das suas Nacoens, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na formas, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas Ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado."

Como se vê, a legislação registra a dupla face ( civil e religiosa ) dos interesses da colonização, menciona a imposição da língua do vencedor como instrumento eficiente para impor sua ideologia, postula a universalidade de tal procedimento e, nas entrelinhas, refere a distância que separava a nação portuguesa do que o texto chama e naçoens polidas do mundo .

Além de expor estes princípios , o texto alude ainda aos decretos que proíbem o uso das línguas indígenas, cuja reiteração sugere o descumprimento das leis que faziam parte do aparato necessário à imposição da religião e da civilização européia. É neste cenário que, ao lado de arcabuzes, crucifixos e ordenações , também figuravam no aparato civilizatório, gramáticas, catecismos, cartilhas e dicionários .

Sabe-se hoje quanto a imposição cultural é lenta: sempre inconclusa, nunca é absoluta e , no caso luso-brasileiro, foi ainda profundamente marcada por questões internas da política de Portugal no contexto europeu e a longo prazo acabou gerando uma cultura - a brasileira- híbrida, cindida e polifônica.

Ao longo de sua existência, a cultura brasileira deu diferentes respostas à crucial questão de dizer-se através de língua e de linguagens que, no início lhe foram impostas de fora para dentro mas que, a partir de um certo ponto, tornaram-se legitimamente suas ( nossas) , não obstante a permanência do sotaque ...

O multilingüismo de Anchieta, que se revelou fundamental, quer na competência com que o compôs sua gramática, quer no virtuosismo poliglota com que escreveu seus poemas pode também ser tomado como emblema da polifonia exigida pelo processo de colonização da América.

E esta noção de polifonia pode também constituir chave para interpretação deste poema de Olavo Bilac que, muitos séculos mais tarde, parece textualizar algumas das marcas através das quais a figura de José de Anchieta, com todas as suas contradições, cristaliza-se no imaginário brasileiro. A imagem de José de Anchieta que o poema de Bilac constrói é a imagem que do jesuíta José de Anchieta faz boa parte dos brasileiros que o conhecem como personagem que dá nome a ruas, praças, bibliotecas e escolas : nesta situação, o nome José de Anchieta evoca a imagem de um herói civilizador.

Tarde , o livro de Olavo Bilac do qual consta o poema dedicado a Anchieta constitui uma coleção de cem sonetos, muitos dos quais tiveram publicação anterior em outros mídia, tendo outros sido apresentados em eventos dos quais participou Bilac. Destaca-se do conjunto de sonetos de Tarde , um sub conjunto que se poderia chamar de poemas de louvação , que celebram pessoas, eventos ou datas. A galeria dos celebrados inclui tanto figuras exponenciais do imaginário ocidental , quanto vultos nacionais, entre os quais se inclui Anchieta, que dialoga com poemas dedicados a entidades mais inconsúteis, como a Língua Portuguesa, a Música Brasileira , etc ...

No interior do volume Tarde , o soneto dedicado a Anchieta dialoga de forma particular com um outro sub-conjunto de poemas: os poemas que, englobados pelo subtítulo Diziam que e respectivamente nomeados Os monstros, Os Goiasis, Os Matuius, Os Curinqueãs e As Amazonas ocupam-se de elementos da cultura indígena postos em circulação pelo Padre Simão de Vasconcelos, de quem Bilac toma a epígrafe para versos que não passam de pesado exercício filosofante sobre a natureza humana.

O recurso ao indianismo não é, porém, freqüente nesta publicação póstuma, mas também não é inovação dela. Em obras anteriores, figuras indígenas povoam poemas de Bilac , que os celebra ora diretamente como em A morte do Tapir ora indiretamente como nos versos A Gonçalves Dias evocado como cantor das grandes tribos ( cf. Panóplias )

É, pois, no contexto de uma presença, simultaneamente estereotipada e ambígua do indígena na obra bilaquiana, que se pode ler o poema dedicado a José de Anchieta na medida em que nele o indígena é contraparte fundamental da cena protagonizada pelo vulto jesuítico de José de Anchieta.

O soneto celebra José de Anchieta em decassílabos que alternam versos heróicos ( 1, 4, 6, 7, 8 , 9 , 10, 11 e 14 ) e sáficos (2, 3 5, 12, 13, ), o que dá ao poema uma linha melódica caprichosa, reforçada pela variedade de sílabas nas quais recai o acento secundário. As rimas, na sua maioria ricas, confirmam o virtuosismo bilaquiano, dispondo-se em alternadas e cruzadas ( abba/abba/cdc/dcd), dão à peça recorte petrarquiano presente, aliás, em boa parte da produção de Bilac .

O duplo vocativo -cavaleiro da mística aventura, e herói cristão - que abre poema , seguido de ponto de exclamação transforma José de Anchieta em interlocutor do texto, atribuindo ao jesuíta duas genealogias. Uma cavalheiresca , na qual o adjetivo mística batiza a aventura que evoca, e outra heróica, também cristianizada pelo adjetivo que a qualifica . Já nesta primeira estrofe, a caracterização da personagem-título se faz por meio de um verbo do qual Anchieta ( em segunda pessoa, porque interlocutor com quem a voz poética fala ) é sujeito: sonhas .

É na realização da ação de sonhar atribuída a Anchieta que o poeta agencia as duas matrizes que vão fazer-se presentes ao longo de todo o poema: uma da natureza e outra da civilização :uma naturaliza Anchieta pela identificação de sua voz com a dos ventos e dos rios; outra o imerge no paradigma da civilização ocidental, onde se valorizam cavaleiros e heróis, unidas ambas as imagens no padrão do cristianismo, que sacraliza os eventuais ecos quixotescos anunciados na abertura.

É neste duplo paradigma, da natureza e da civilização, que se cifram muitos dos impasses culturais dos povos colonizados por europeus. A oposição reitera-se ao longo dos quatorze versos do soneto, parece confirmar um dos vários modos pelo quais este texto bilaquiano encena o belo exercício da dialética ( nem sempre ideologicamente acima-de-qualquer-suspeita...) através da qual a literatura brasileira ( e com ela a latino-americana) lida com as contradições de sua herança colonial.

A segunda estrofe prossegue esculpindo a identidade do herói título, identidade que também se afirma pela oposição a seus outros , isto é, pela oposição aos índios aos quais cumpria catequizar e alfabetizar, e em nome dos quais Anchieta escrevia gramáticas e autos.

A primeira estrofe, inscrevendo Anchieta num cenário que contribuía para a caracterização do primeiro dos pólos da antítese natureza/ civilização , fazia-o contracenar sozinho numa paisagem erma de almas; já os versos de cinco a oito fazem o leitor contemplar o mesmo cenário, povoado agora de índios , sendo inclusive a identidade desta população responsável pela conotação negativa da expressão brenhas que a nomeia , em sugestivo deslocamento semântico de espessura ( forma clássica e, porque clássica, de conotação positiva) substantivo que a nomeava na primeira estrofe .

Relativamente, no entanto, à caracterização dos índios , a partir da segunda estrofe, o poema também recorre a uma dupla matriz, que agora opõe a imagem humana do indígena ( filhos, algozes) à imagem não humana deles ( aves e onças) através de apostos e predicativos que mais marcantes se tornam pela simetria das construções em que ocorrem. E o espaço, nomeado espessura no verso quatro, brenhas no verso cinco , é renomeado uma vez mais, ao final desta segunda estrofe, através da expressão desmarcada floresta cuja negatividade se constrói pelo adjetivo escura que a acompanha .

A oposição entre duas faces da identidade indígena - humana e não humana- acentua-se , na medida em que cada uma delas abriga uma contradição em seu interior: filhos versus algozes no campo de humano ; onças versus aves, no campo do não humano . O resultado final desta geometria semântica é uma identidade indígena instável, que acaba tendo desconstruídos seus elementos definidores, catalisando uma nova contradição que recorta ambos os paradigmas. Ou seja, os atributos humano e não humano , com os quais se caracterizava a identidade indígena, acabam escavando uma zona semântica comum - mas igualmente instável- que inscreve no interior de cada pólo , tanto a marca positiva ( filhos & aves inocentes ) quanto uma negativa ( algozes & onças ferozes ) tornando-se, assim, indistinta e simultaneamente, positivos e negativos os valores em que se atualiza a polaridade humano/não humano.

As rimas unificam os dois quartetos do poema , transcrevendo em sonoridade a proximidade dos procedimentos indentitários utilizados nas duas estrofes iniciais, nas quais tanto José de Anchieta quanto os índios têm suas respectivas identidades construídas por sucessivas e alternadas metáforas que entrelaçam natureza, civilização, humano e não humano .

Abandonando a figura do indígena, a terceira estrofe, volta a ser dominada pelo cindido vulto do jesuíta , caracterizado aqui por epítetos que, reafirmam a duplicidade de seu perfil, para a qual concorrem agora duas outras matrizes. Os dois primeiros versos desta estrofe, através dos substantivos que os abrem (semador e bandeirante) inscrevem Anchieta em novo panteon. Ele integra agora a galeria dos heróis evangelizadores e dos civilizadores. Anchieta ingressa na galeria dos evangelizadores, ao colar-se a ele a imagem bíblica do semeador e na dos civilizadores a partir da menção a bandeirantes, paulistas que invadiam o sertão escravizando índios e fundando cidades, heróis civilizadores por excelência na ótica da história oficial brasileira. Na proximidade com os bandeirantes, fica sublinhado o papel de Anchieta na fundação de São Paulo, berço dos bandeirantes.

Na tradição cristã , a expressão a carne costuma significar a sensualidade a ser exorcizada, sendo o voto de castidade provação da qual os espinhos costumam ser metáfora convincente. No verso em questão, no entanto , a ação atribuída a Anchieta - dilacerar a carne nos espinhos - quando lida à luz das estofes anteriores , nas quais se acumulavam os atributos negativos e inóspitos da natureza americana, ganha o significado literal do jesuíta martirizado pelos pagãos, e cuja vida está sempre ameaçada pelos índios.

É nas entrelinhas desta ambigüidade que se prepara a última estrofe do soneto: na tradição da chave de ouro o terceto final encena a resolução dialética das oposições sucessivamente construídas e desconstruídas ao longo as estrofes anteriores.

A duplicidade de matrizes até agora responsáveis pela construção da identidade das personagens do poema - Anchieta e os índios- cristaliza-se, reservando-se a matriz da cultura e da humanidade para José de Anchieta e a da natureza e da animalidade para os índios. O jogo dialético recomeça, entretanto, a partir do movimento no qual tanto a humanidade de Anchieta volta a escorar-se num duplo padrão, simultaneamente cristão e pagão ( São Francisco e Orfeu ) , quanto a animalidade do indígena volta a cindir-se nas metáforas feras e aves que já figuravam na segunda estrofe, com valores contraditórios.

É só aparente, no entanto, a estabilidade destas identidades redefinidas: nos versos finais, de novo ambas as matrizes - humano e não humano- se embaralham e se redistribuem entre o jesuíta e os índios já que a ação do primeiro ( cantar ) é também pertinente para os segundos (aves), da mesma maneira que, se há almas a serem desbravadas, os índios já estão humanizados ( pois têm alma) e, estão, portanto, des-animalizados , num sugestivo paralelismo entre a terra e o homem nativo dela .

Desconstrói-se , assim, a identificação entre almas e sertões construída pela idêntica função sintática de ambas ( objeto de desbravar ) . E encerra-se o poema por um duplo predicado atribuído a Anchieta, reiterando-se, com isso , procedimento já presente na primeira estrofe e retomando-se , circularmente, elementos da estrofe de abertura, entre eles a reiteração do verbo cantar - do qual Anchieta é sujeito.

Concretização do sonhar da primeira estrofe, cantar aqui revela-se como forma particular do sonho, já implícita na primeira estrofe quando esta mencionava a voz de Anchieta em concerto com outras vozes, expressão literal de uma polifonia que - se lida de forma metafórica- confirma e reforça a hipótese deste trabalho.

Nesta leitura, o jogo engenhoso da última estrofe recoloca em nível mais complexo a questão de identidade instável tanto para colonizadores como para colonizados , quando cada um é e não é o que se diz que ele é, construindo-se , por assim dizer, uma contradição de segundo grau, onde a oposição não mais se perfaz através de pares simétricos de uma mesma categoria gramatical. A oposição manifesta-se agora através de diferentes categorias gramaticais, o que torna mais sutil a malha onde se cifram os diferentes e contrastivos modos de ser que o texto - a pretexto da celebração de José de Anchieta- acaba derramando por toda a cultura brasileira, construída ao longo dos mais de três séculos que separam José de Anchieta - título, tema e assunto do soneto- de seu cantor Olavo Bilac.

Esta leitura se enriquece numa brevíssima excursão à iconografia brasileira de José de Anchieta, onde se destaca o quadro de 1901 “Poema à Virgem” de Benedito Calixto . O quadro inspira-se em episódio de 1563, quando Anchieta é refém dos índios Tamoios na praia de Iperoig, em cujas areias escreve os versos do longo Poema à virgem que depois, de memória, confia à escrita. O mesmo episódio também inspira Portinari, pintor brasileiro do século XX , além de Firmino Monteiro e Lopes Trovão, fascinados todos pelo vulto que, com o bastão, escava na areia os quase seis mil versos de celebração da Virgem Maria .

 



Bibliografia:
 

Anchieta, José de (Pe. ) Poesias ( tradução de Maria de Lourdes e Paula Martins) SP: Comissão do 4o. centenário. 1954

Anchieta, José de (Pe. ) Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões ( 554-1594). RJ: ed. Biblioteca Nacional. 1933

Anchieta, José de (Pe. ) De gestis Mendi di Saa ( Poema dos feitos de Men de Sá) (organização do Pe, Armando Cardoso). SP. s/ed 2a. ed. 1970

Anchieta, José de (Pe. )Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil 1595

Anchieta, José de (Pe. )De Beata Virgine ( tradução de Pe. Armando Cardoso S.J.) RJ: Arquivo Nacional. 1940

Antonio Candido e Aderaldo Castelo. Presença da literatura brasileira. São Paulo : DIFEL. 3 8a. ed. . 1977 1o. vol .

Bilac, Olavo. Poesias . (organização e prefácio de Ivan Teixeira) SP: Martins Fontes. 1977 ( p.274)

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira . São Paulo: Edusp, Cultrix. 1970

Lajolo, Marisa Usos do livro e da leitura na América Portuguesa . apud América: ficção e utopias .Org. José Carlos Sebe Bom Meihy, Maria Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura. SP: Edusp. 1994 p.241- 252

Lajolo, Marisa e Zilberman, Regina. A leitura rarefeira. São Paulo: editora brasiliense. 1994

Viotti, Hélio Abranches; Moutinho, Murilo. Anchieta nas artes. São Paulo: Loyola, 1991

www.anchieta.org.br/vida/companhia/companhia.htm

www.cce.ufpr.br/~rbudasz/anchieta/diss3.htm

www.encena.com.br/anchieta/htm

www.home.ican.net/~gvanv/compass/arch/v1305/saint.htm

www.uol.com.br/sesc/spu/spupb501.htm
 


Notas:

[1] Versão anterior deste texto foi   apresentada no Simpósio Quinhentos anos de descobertas literárias. Universidade de Brasília. 29.03.2000.  Foi,  nesta versão,  publicado em Letterature d’ Ámerica ( Rivista Trimestrale) Ano XVII-XVIII nn 73-74  1997/1998  p. 25-40

[2]  O livro e a América   apud Castro Alves:  Poesias completas (prefácio de Manuel Bandeira) . Rio de Janeiro: Ed. De Ouro. 1969. P. 26-28 

[3] Vários sites da internet dedicados a  José de Anchieta facilitam o acesso a informações  sobre esta fascinante figura renascentista: ( www.home.ican.net/~gvanv/compass/arch/v1305/saint.htm  www.anchieta.org.br/vida/companhia/companhia.htm

www.encena.com.br/anchieta/htm

 www.cce.ufpr.br/~rbudasz/anchieta/diss3.htm

 www.uol.com.br/sesc/spu/spupb501.htm

 [4] Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.  SP: Cultrix/EDUSP 1970 p.27

[5] AntonioCândido e José Aderaldo Castelo. Presença da literatura brasileira  .  1o. vol SP: DIFEL. 8a. ed. 1977. P. 19   

 

[7] De gestis Mendi de Saa  foi a primeira obra escrita no Brasil a ser impressa em Portugal, o que ocorreu em Coimbra, em 1563  

[8] Auto da Pregação Univesal, Na festa de São Lourenço, Poema à Virgem


 

Olavo Bilac

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07/03/2005