Gerardo Mello Mourão 
 Susana - 3
 
continuação e final:

E pelas ruas de Paris 
e à corrente do rio 
ao pé dos Alpes 
Rosa, Rosa, eu te chamava 
e o cânon de teu rosto respondia: — Rita 
e da página dos velhos livros 
da página dos sonhos 
o rosto erguias 
        e eu te clamava 
Joana, Joana de Aragão - e nunca 
o olhar pôde medir beleza igual 
à beleza de teu rosto 
 
 
Nas colinas de Sintra e ali 
onde era o Tejo, onde o Alentejo 
onde foram Inês e Leonor 
e as Tágides do poeta 
ao céu de estrelas portuguesas 
eras a amante do rei 
e a caminho da Itália eu te dizia 
Laura e Beatriz 
e te encontrava nas touceiras 
de sonetos e tercetos e cantigas e odes 
e por algum de teus nomes te chamava 
        Leuconoé e Cíntia 
e encontrei os poetas e as musas 
e eram todos 
        a caminho de Susana 
 
 
Atravessei os tempos e os países 
e os tempos e os países 
e as mulheres dos tempos, dos países 
tentavam desenhar a flor de teu semblante. 

Venho dos livros, das bibliotecas 
das casas noturnas de Buenos Aires — venho 
da gruta de Santo Antão 
da aparição de um Anjo 
da tentação dos anacoretas 
de todas as Tebaidas — venho 
das igrejas do bairro 
dos mosteiros de mármore 
da catedral da praça onde 
era tua imagem. 
 
 
E era uma vez a noite de Raquel 
os olhos de Raquel 
e amadurecia em minha mão 
seu seio de judia 
no hotel de Tel Aviv: 
e vi sua beleza 
de dois mil anos de adolescência 
 
 
e na porta de Damasco 
subíamos ondulando a escada de oliveira 
e eras 
uma serpente em pé com teus olhos ofídícos 
tua beleza palestina e ali talvez 
ego poeta 
comecei a suspeitar teu nome 
                                 serias 
                                 Susana? 
 
 

Maldito seja eu se me esquecer de teu nome 
fiquem cegos meus olhos 
se eu me esquecer de teu rosto 
surdos meus ouvidos 
se eu me esquecer da melodia 
de tua voz 
seque a minha mão 
se eu me esquecer da maciez de tua pele 
e apodreça o sexo nas virilhas 
se eu me esquecer da glória de tua dança 
entre a cintura e as ancas: 
 
 
agora sei, Urânia, 
todas as curvas de seu caminho 
 
 
Das cidades, das tribos, dos países 
das terras e dos mares 
seus pés se erguiam nos continentes 
virgens e musas, putas e noivas 
guardo seu rastro 
a marca de seus pés 
no chão do coração 
 
 
por esses rastros por essas marcas 
peregrino de ti te fui buscando: 
ali as ancas — ali 
as crinas — ali 
os tornozelos — 
e as lonjuras às vezes 
sugeriam teus olhos 
e teu jeito de andar 
 
 
e tua voz se ouvia 
através das paredes e era 
a voz da estrela onde 
o rouxinol um dia fez seu ninho: 
as raparigas celtas temperavam na garganta 
esse murmúrio numinoso 
quando 
inauguravam na boca o desenho da primeira dança: à sua 
melodia as ninfas naquele tempo 
viam 
partir-se o coração da rosa quando 
o coração do silêncio partia o seu cristal 
e aparecia a tua voz: 
 
 

Vinhas chegando 
e já não sei 
se eras tu — se teu poeta — 
alguém vinha chegando, 
pois, 
naquele tempo 
tempos de Godo, tempos de Efrain, 
ao tremor de tua beleza 
estremecíamos: 
um dia a mão sacrílega 
tomou na concha o peso de teu seio 
e de repente 
nas mãos em chamas 
                             ardia um coração 
                                       —— de quem? —— 
 
 
o meu era expelido pela boca 
na golfada de sangue: 

Musa cruel — 
todo anjo, Maria, é terrível 
e toda Musa é cruel 

Quem de nós chegou tarde ao dia deste amor? 
Tarde, Agostinho, tarde chegamos 
e tão cedo as despedidas 
e se os tempos voltassem 
quem sabe voltariam os corações ao peito 
e a primeira lágrima — a lágrima da alegria 
lavaria os olhos e o primeiro beijo 
voltaria ao vinho e ao mel 
dos lábios para sempre 
 
 
 
Tu, só tu 
saberias trazer de volta aquele tempo 
tempos de Afrodite e de Maria Alonso 
quando te erguias das flautas 
e cresciam das harpas o emblema 
a gema e o estratagema do teu corpo 
e à flauta e às harpas 
perguntei teu nome quando 
começavas a subir a colina dos tempos 

e subias e descias a colina dos tempos 
desde aqueles tempos 
tempos de Raul e Abdias 
tempos de Bice, 
tempos de Francisco e Augustin: 
depois, uma flor velava 
outra flor vermelha e só 
e o silêncio pendente de teus olhos 
abria os lábios: 
 

e eu te contemplei 
em todos os losangos de tua pele 
tua forma tua formosura 
erecta e nua e única no meio do mundo 
 
 
naquele instante 
minhas mãos moldaram 
cintura e rosto: 
e fui teu creador 
e tua creatura 
 
 
Posso partir um dia - 
partirei 
com o rouxinol e o galo da madrugada 
no peito estrangulados 

Então já não lerei o fogo e as águas 
mas 
do coração das ondas e das labaredas ilisíveis 
as pétalas irão formando 
a rosa de água e fogo de teu rosto: 
e sempre te verei 
no silêncio das pedras 
onde dançava essa cigana 
nas arcadas de Rimini, 
pois, 
há dois mil anos eu te quero 
e há dois mil anos estes olhos esta voz 
trabalham o teu rosto e o nome teu 
sôbolos rios de Babilônia 
entre os bosques de Susa e os mármores de 
                     Rimini 
entre as fontes de Susa 
                     Susana 
pois — vinhas de longe 
                      às vezes 
o cântaro na cabeça 
caminhavas à beira do rio 
                      e às vezes 
as águas lambiam teu corpo nu 
e entre o arvoredo 
eras espreitada 
e ias e voltavas 
ao ritmo das águas e das margens 
 
 
e pisavas as folhas e as pupilas 
e pisavas a flor e o coraçao 
de teu poeta 
                e às vezes 
galgavas os desvios as montanhas 
percorrias os vales a cavalo 
morena e nua no lombo das éguas alazãs 
quando a lua banhava tua pele 
e dourava tuas crinas e lavava 
teus olhos de ouro: 
assim te conheci e te amei 
tuas crinas entre as crinas das éguas 
e os ventos da madrugada 
 
 
E às vezes — uma vez 
                                                             esperei teu sorriso: 
                                                             tua túnica azul 
                                                             compunha a melodia de teus passos 
                                                             e em teu silêncio começava a música 
                                                             entre os olhos e os arcos 
                                                             da portas de Jerusalém: 
 
 
 
 

pois eras tu — de Susa vinhas 
pelo país de Damasco 
e eu afagava 
o punhal na cintura — e o ciúme nos olhos 
rugia moribundo 
entre a luxúria das folhas do arvoredo 
de onde as pupilas te espreitavam 
 
 
 
E a mão de Deus riscou tua cabeça 
e eras Sua imagem 
e eras tu 
        a Beleza 
compassiva e cruel: 
e duraste um relâmpago 
o relâmpago dos olhos 
ao coração 
       a eternidade 
 
 

E das portas da aurora 
nas portas da morte 
teu poeta 
te encontrou para sempre 
te perdeu para sempre 
teu poeta 
com teu nome tatuado na língua 
clama aos dias e às noites 
                                 Susana 
                                               Sus 

            ana!  
 Inventário 
 
 

José herdou as terras 
João os rios 
        com seus navios 
no Amazonas no São Francisco no Parnaíba 
Francisco herdou o engenho 
        a cana caiana 
Manuel herdou os patacões de ouro 
Antônio herdou as fazendas de bois 
e Pedro a casa-grande 
        escada de mármore 
        jacarandás lavrados 
outros herdaram os cavalos 
        arreios estribos de prata 
e até Miguel herdou 
a cartola a casaca 
o relógio e a corrente 
de ouro. 
 

Naquele tempo havia amantes francesas e alguém 
herdou Jacqueline 
 
 
e alguém 
as pistolas de coldre e madrepérola 
e o punhal na bainha de vaqueta. 
 

            Eu não herdei nada 
               fugi para a Cidade de Susa 
                             e raptei 
             à beira da fonte 
                         uma 
                  Susana. 
 

As terras arderam os rios secaram os navios 
                     afundaram 

os patacões? — derreteram — 
 
a escada caiu, jacarandás se quebraram 
os cavalos morreram 
rasgou-se a casaca, poiu-se a cartola 
parou o relógio sumiu a corrente 
e a pistola e punhal morreu Jacqueline num 
cabaret de Crateús 

                                                     O tempo comeu tudo 
 
 
 
Restou a eternidade 
                                       teus olhos tua boca 
                                       herança minha 

                                                Susana.

Primeira parte de Susana

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