Naquele tempo
chiava o ferro no quarto dos bois
e o gado do capitão mugia gordo
nas soltas dos Mourões
e as cabras eram assinadas na orelha e as éguas
e os jumentos ferrados
e o ferro negro marcava o gibão dos vaqueiros, os bancos
da alpendrada, a aroeira dos currais de tronqueira
e as camas de couro cru onde nascemos e a marca
dos Mourões marcava
homem alimária e coisa
naquele tempo:
cabo de osso do facão mateiro
coronha do rifle papo-amarelo lâmina
do terçado de três palmos
e este
é o ferro de meu avô e Estêvão
ferrou com ele a testa do cabra Amarante no Cabaret Iracema,
sertão de Crateús e João Mello
ferrou a bochecha de um senhor de engenho no caminho
de Águas Belas e Antônio
ferrou a banda da bunda do sírio David em plena feira
de São Gonçalo dos Mourões
a outra banda fora ferrada por Alexandre num terreiro de engenho,
Canabrava dos Mourões
e este é o ferro
de Josué nas vacas de Água Verde
e com este
desenho de meu avô tenho ferrado
o corpo da viola em que te canto
as cantigas que cantavam os machos à janela das fêmeas
no país dos Mourões
in illo tempore.
E caíram as chuvas e rompeu-se
o ferrolho das tempestades e os rochedos
rolaram no tempo e abriram-se
as sepulturas e
desenho de meu avô tenho ferrado
a gravura de fogo permanece
na tampa do baú na tampa
do caixão dos mortos
além do tempo e o tempo
aquele tempo
marcado pelo ferro dos Mourões e o lombo
do touro em que viaja
teu alvo corpo de cintura fina
entre o peito e as romãs floresce
a possuída marca a negra flor
à sombra do longo cílio à luz
dos olhos verdes.
Herdei o ferro em fogo — herdeiro
e do ferro e do fogo
fazenda, cabedal, moeda
gasto ferro e fogo na compra
das noites e dos dias e das fêmeas
na compra da lágrima e sorriso
e compro eu mesmo a minha própria dor
e lavro o mármore
do chão de viver e do chão de morrer
marcada a letra a fogo e ferro
a mão de minha raça
sobre o lombo da pedra:
Vexilla Regis ao seu campo de prata
a flor de lys de ferro em brasa de ouro
na lapela no anel de brazão no quarto dos bois e dos cavalos
na barriga do barril de aguardente de Benedito Torres, São
Miguel dos Campos, no país de Alagoas,
no passaporte no casco do navio e em volta
da branca flor de teu umbigo
no rastro de meus pés por todos os caminhos
Mourão.
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