M.
Paulo Nunes*
As vozes de Oton Lustosa
Em recente estudo sobre a poesia de
Jorge de Lima, a propósito do centenário de seu nascimento, que ora
se cumpre, o romancista Antônio Olinto levanta um problema
interessante sobre o estudo das personalidades literárias. Diz ele
que, a exemplo de Fernando Pessoa, podem ser elas apreciadas como se
constituíssem também heterônimos do autor. No caso do poeta de “O
Acendedor de Lampiões”, famoso soneto com que adquiriu, de
início, celebridade, na fase parnasiana, a primeira delas, poderia
ser ele visto sob esse aspecto, tanto quanto o poeta de Poemas
Negros, de que se distingue “Essa Nega Fulô”, do
romancista de Calunga e Guerra dentro do beco, do
romance surrealista O Anjo, ou ainda a do poeta católico de
Tempo e Eternidade, em parceria com Murilo Mendes. Todas
essas fases representariam como que os heterônimos daquele poeta.
Lembrei-me dessa aproximação do Autor
de A Casa da Águia, ao intentar esta breve apresentação do
novo romance de OTON LUSTOSA, Vozes da Ribanceira. Na sua
persona de escritor podem ser surpreendidas várias facetas, quais
outros heterônomos, à maneira de Fernando Pessoa.
Na saudação que lhe fiz, em seu
ingresso nesta Academia, já tive oportunidade de salientar-lhe essas
facetas todas de sua obra, a começar pelo aspecto jurídico, de modo
especial, em seu livro basilar, no gênero, Da Propriedade Imóvel,
através do qual empreende um alentado estudo sobre este aspecto
bastante discutido hoje em dia, em nossa evolução jurídica, e que
vem sofrendo as mais sérias e violentas contestações, motivadas pelo
clima de violência e injustiça que tem suscitado em nosso direito
positivo.
Vem a seguir o contista, detentor de
um estilo e de uma técnica revolucionários, contando as histórias
curtas, como se fossem “fatias de vida”, de Pereira da Rocha,
lugarejo perdido em nossa hinterlândia e para as quais se
serve de um alter-ego, o Dr. Dionísio Trajano de Mendonça
Abreu, juiz daquela pequena comunidade.
A seguir vem o romancista, cuja obra
de estréia, Meia-vida, foi saudada por estudiosos daqui e de
fora da terra como promissora realização literária, focando seu
entrecho em torno da periferia urbana de nossa capital, e fixando,
talvez, pela primeira vez, em nossa literatura ficcional, a
população marginalizada da cidade de Saraiva, que a especulação
imobiliária, mancomunada com os donos do poder, se tem empenhado em
destruir de todo. Talvez restem no fim, como lembrança, as crônicas
de Arimathéa Tito e os romances de OTON LUSTOSA.
Mas vejamos este novo livro. Seus
personagens, à exceção do “hippie” Tenório e de sua amante Zizinha
de Almeida, aquele, egresso da classe média alta do Recife e esta,
oriunda de família importante de nossa capital, ou ainda do
proprietário Raimundão Araújo, são todos constituídos de oleiros e
pescadores do bairro Poti Velho, que o autor movimenta com uma
precisão e uma eloqüência de demiurgo. Figuras como Dasdores, por
exemplo, com a sua devoção a São Pedro e, por extensão, ao
ex-vigário Pe. Pedro, desterrado para os confins da Amazônia, são de
um toque de humanidade comovente. Há ainda o soldado de polícia
metido a importante, porque supostamente descendente de velha
aristocracia do Estado, os Sousa Martins; há o vereador clientelista,
aliado dos poderosos, que se ceva na miséria do povo, Valdo Paim
(quando nos libertaremos dessa espécie de intrujões e vigaristas?);
há os violeiros, cantadores, pequenos negociantes, prostitutas,
enfim toda a arraia miúda que constitui o núcleo daquela comunidade
ativa.
Encontro em uma ensaísta há pouco lida
(O Narrativo na obra de José Saramago, de Ceres Costa
Fernandes – Governo do Maranhão, 2003), a observação atribuída a
Tzwtan Todorov de que “Em literatura jamais temos de haver-nos com
acontecimentos ou fatos brutos, e sim com acontecimentos
apresentados de determinadas maneiras. Duas visões diferentes do
mesmo fato fazem deste dois fatos distintos. Todos os aspectos de um
objeto se determinam pela visão que dele nos é oferecida.” E
complementa aquela autora: “Sabe-se que a impassibilidade absoluta
de um texto, como preconizavam os realistas, é impossível de ser
instaurada. A implicação do social em uma obra literária é sempre
recorrente, nem que essa instância se situe por omissão.
Parafraseando Paul Ricoeur, não existe, na verdade, um lugar não
ideológico de onde se possa pensar o discurso literário. A
aparentemente simples escolha do material a ser descrito já implica
uma intencionalidade.” (Ob. cit., p. 21).
Os romancistas que têm procurado
enfocar Teresina, em suas obras, desde Abdias Neves, no início do
século passado, com Um Manicaca, o fazem do ponto de vista da
burguesia urbana de nossa capital. Ninguém até hoje, antes de OTON
LUSTOSA, que eu saiba, e acho que sei bastante sobre o assunto, tem
procurado focalizar o “povo miúdo”, a que já se refere o criador da
crônica histórica portuguesa, Fernão Lopes. OTON LUSTOSA foi o
primeiro a fazê-lo. E ao realizar tamanho feito, segundo o teórico
do estruturalismo, elegeu um assunto novo e estabeleceu a sua opção
preferencial pelos pobres, como diria a Igreja, em nossos dias.
Cunha e Silva Filho, em seu prefácio,
já surpreende neste notável romancista, como técnica romanesca, a
opção pelo díptico Barro, que corresponde à primeira parte, e
Fogo, referente à segunda. Isto para os hegelianos é muito
simbólico. Na primeira parte, a exemplo de Ferreira de Castro, em
A Lã e a Neve, está o povo, entregue à própria sorte, abandonado
e submetido à exploração e cupidez das elites opressoras do dinheiro
ou da política, como massa de manobra de interesses escusos. Na
outra face do díptico está ele organizando-se na luta para a
conquista de seus direitos, na construção de uma nova utopia, não
por influência do “hippie” Tenório, que apenas fala vagamente em
liberdade mas não tem um compromisso social. Apenas queria paz e
amor. Amor ele já havia amplamente obtido com o erotismo de Zizinha
de Almeida, que por ele abandona tudo, vivendo as cenas mais
tórridas do romance. Quanto à paz, ninguém a obtém neste mundo,
enquanto tivermos à nossa ilharga os Bushs da vida, inventando as
suas guerras sem fim, num mundo globalizado para o interesse das
superpotências.
Mas há um outro aspecto que desejaria,
para finalizar, enfocar ainda nesta nota: a da linguagem deste
romance. E o faço contando ainda um episódio curioso da vida
literária.
Em suas memórias, recentemente
publicadas, Viver para Contar (Editora Record, 2003), Gabriel
Garcia Marquez narra a maneira como obteve o seu primeiro prêmio
literário, no qual se inscrevera a instâncias de seu amigo, o
fotógrafo Guilherme Angulo, num momento em que vivia com mulher e
filhos, em Paris, uma das fases mais difíceis de sua vida. Enviando
o romance da forma como ele fora guardado há algum tempo, soube que
este fora escolhido, mas pouco depois recebe uma carta do padre
Félix Restrepo, presidente da Academia Colombiana de Língua, que
presidira o júri do concurso, em que lhe solicitava o título do
romance. Só então percebera que, na pressa de enviá-lo, esqueceu de
escrevê-lo na página inicial: Este Pueblo de Mierda, o que
escandalizara o presidente da Academia, que lhe pedira para mudá-lo,
terminando por adotar um outro que a seu ver lhe serviria de
bandeira para navegar pelos mares da carolice: La Mala Hora.
A publicação do livro, entretanto, representou uma lua de mel
efêmera, segundo confessa aquele autor, ao fazer-lhe uma leitura
exploratória, ao descobrir que o livro, escrito na sua língua de
índio, havia sido dublado, como os filmes da época, no mais puro
dialeto de Madri. “Não satisfeito em pentear a gramática dos
diálogos, como acrescenta o autor de Cem Anos de Solidão,
o revisor se permitiu invadir o estilo a mão armada, e o livro ficou
coberto de remendos madrilhenos que não tinham nada a ver com o
original.” Em conseqüência, não houve outro remédio senão
desautorizar a edição por considerá-la adulterada, recolhendo e
incinerando os exemplares já distribuídos, fato a que os
responsáveis pela edição responderam com o mais absoluto silêncio. (Ob.
cit., pp. 225-6).
Felizmente, o nosso caro OTON LUSTOSA
não foi obrigado a submeter-se a tão mortal sacrifício ao ver o seu
livro publicado numa co-edição de nossa Academia com a Universidade.
E por isto pôde resguardar a linguagem espontânea e correntia com
que o escreveu, numa perfeita estilização da linguagem coloquial de
nossa gente. Às vezes é ela tão eloqüente que parece nascer da fala
poética de nosso povo, como ocorre neste passo, que não resisto à
tentação de trazer para esta nota:
“Crespo Batista, ritmado na métrica e
na rima, desfia toda a história e deixa nos ouvidos do povo que o
soldado Sousa Martins, um varão assinalado, é herdeiro de nome e de
terras do grande Visconde da Parnaíba, dono de todas as fazendas do
Piauí. Menininho recorda-se do último verso: ‘Militar destemido,
valente como o Visconde.’”
“Menino-poeta – sujo o corpo; limpa a
alma. Vai e vem pela ruazinha puída que serpenteia o labirinto dos
tijolos crus estendidos no solo. Com os dedos longos que haverão de
dançar por sobre cordas em pescoço de viola, demarca as centenas e
os milheiros, deixando no barro mole inscrições indecifráveis feitas
de traços e curvas... Quem sabe as curvas de uma viola ou as curvas
do corpo da filha de Sousa Martins.” (Ob. cit., pp. 55-6), que por
sinal tem o nome sofisticado de Tatiane.
Mas não é apenas em textos como estes
ou nos diálogos que pontuam essa história aliciante que se faz
presente a força narrativa do romancista. Ela também está presente
nas descrições de episódios como na ocupação ordenada da Várzea
Comprida pela população, ou no capítulo “Incêndio” já referido por
Cunha e Silva Filho, que lembra pela sua força e dramaticidade
episódio semelhante descrito por Afonso Arinos em uma página de
Pelo Sertão, que me parece situado no conto “Pedro Barqueiro”.
Parodiando o rifão popular, quem sai aos bons não degenera.
Salve mais um livro com que se firma,
em sua invenção original, o romancista OTON LUSTOSA, grande entre os
que mais o sejam em nossa literatura, abridor de caminhos novos e
revelador de formas novas de expressão, em nossa criação estética.
Bem haja assim, em nossas letras, meu
caro confrade e excelente amigo, com este livro definitivo, numa
literatura tão necessitada de quem escreva bem, para poder subsistir
e dar continuidade a uma caminhada que vem das origens de nossa
língua portuguesa, com os seus primeiros cronistas e os pais da
nossa novelística, com o ciclo dos Amádises e a novela pastoril e
alteada e, figuras como Eça, Machado de Assis, Graciliano Ramos e
José Saramago.
Parabéns a V. e louvores renovados à
Casa de Lucídio Freitas, que a cada dia mais se alteia em figuras
como o celebrado autor de Vozes da Ribanceira, em sua missão
de bem servir à literatura e dignificar uma vez mais a cultura
piauiense.
*M.
Paulo Nunes é secretário-geral da Academia Piauiense de
Letras. Presidente do
Conselho Estadual de Cultura, ex-presi-
dente da Academia
Piauiense de Letras. Crítico Literário.
Proferiu esta oração
na solenidade de lançamento do roman-
ce Vozes da
Ribanceira, de Oton Lustosa, no dia 8.11.2003.
Leia Oton Lustosa
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