Germinal
1
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.
2
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo
ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!
3
"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço..."
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em couro
dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de uma alfange.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.
4
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato ?..." e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele ? E por quê ? Não fôra essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga ?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa ?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente
da filha da patroa...
"Vamos, Juca Mulato, estás doido ?
Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto.
O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...
"Que diabo !" Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!
5
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Advinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida....
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...
6
E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde, umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!
7
E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara no lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!
A Serenata
1
Canta, Juca Mulato...
Ele pega na viola:
seu dedo nervoso os machetes
esfrola.
Solta um gemido o aço
vibrado
como um grito de dor
de um peito esfaqueado.
É tão suave
a canção, tão dolente e tão langue
que cada nota lembra
uma gota de sangue
a fluir e a pingar dos
lábios de uma chaga.
É noite. A brisa
sopra uma carícia vaga.
A turba espera. O terreiro
tem brilhos
quando, de chapa, a lua
esplende nos ladrilhos
e, sentindo a paixão
estuar-lhe a garganta,
Juca Mulato canta:
"Veio coleante, essa
mágoa
arrastas triste e submisso;
também choro,
veio dágua,
sem que ninguém
dê por isso...
Saltas nos seixos de chofre.
Choras. No mundo inclemente,
só não
chora quem não sofre
só não
sofre quem não sente...
Procuras dentre os abrolhos
ver o céu que
astros povoaram.
Eu também procuro
uns olhos
que nunca me procuraram...
Os céus não
vêem tua mágoa,
nem estas ela advinha...
Veio d’água, veio
d’água,
Tua sorte é igual
à minha.
Ora em bolhas vãs
tu medras,
eu em sonhos bem mesquinhos,
Teu leito é cheio
de pedras,
minha alma é cheia
de espinhos...
Se uma rama se desfolha
sobre teu dorso e resvala,
corres doido atrás
da folha
sem poder nunca alcançá-la.
Às vezes, também,
risonho,
um sonho minh’alma junca,
Corro doido atrás
do sonho
Sem poder tocá-lo
nunca.
Ventura... doida corrida
de uma folha sobre um
veio.
Folha... Esperança
perdida
de um bem que nunca me
veio.
Assim vou, sangrando mágoa
e doido, para onde for
veio d’água, veio
d’água
corro atrás da
minha dor!"
Alma Alheia
1
Que tens, Juca Mulato
?
Uma tristeza mansa
embaça-lhe o fulgor
dos olhos de criança.
Ele é outro...
Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
Não sabe definir
o que há de novo nele.
Fuma e segue pelo ar
uma espiral que esvoaça,
pensa que seu destino
é igual a essa fumaça...
"A vida é mesmo
assim..." ele cisma tristonho.
"Sai do fogo da dor a
fumaça do sonho"...
Da cocheira, um nitrir,
de intervalo a intervalo,
vibra no ar... É
o pigarço. Esse pobre cavalo
anda esquecido e há
muito que, sozinho,
sente a falta que faz
o calor de um carinho.
Juca Mulato todo o dia
vinha vê-lo...
Afagava-lhe o dorso,
acamava-lhe o pelo,
e ele, baixando, quieto,
as pálpebras vermelhas,
nitrindo e resfolgando,
espetava as orelhas...
Juca Mulato, então,
numa voz doce e calma,
dizia-lhe baixinho o
que ele tinha n’alma.
Coisa de pouca monta:
umas fanfarronadas,
uns receios pueris, façanhas
de caçadas,
desafios na viola em
noites de luar;
coisas que tinha pejo
até de lhe contar,
que sussurrava a custo,
onde, por entre os dentes,
a gente advinhava
umas frases ardentes:
bocas mordendo um seio
em que os bicos quentinhos
tinham a cor da rosa
e a ponta dos espinhos...
Ele ria e a risada espoucava-lhe
aos pinchos
e o pigarço sisudo
explodia em relinchos
que diriam, talvez, traduzido
em frases:
"Toma tento, Mulato!
Olha bem o que fazes..."
Juca afagando-o, então,
murmurava contente:
"Pigarço, você
tem uma alma como a gente!"
Hoje, anda abandonado
e pesa-lhe o abandono.
Há no seu manso
olhar saudades de seu dono.
Quem não vê
nesse olhar úmido e cor de enxofre
que esse cavalo sofre
?
2
Vê uma ave voar
na tarde calma e suave,
vem-lhe o desejo absurdo
e doido de ser ave.
Quando junto a uma fonte
acaso se debruça,
se a corrente soluça,
ele também soluça...
Depois, envergonhado,
encolhe-se, procura
no seu imo o porquê
dessa vaga ternura.
Até vendo uma
flor, comove-se, suspira...
"Juca: toma cuidado...
Estás ficando gira...
Deixa de te arrastar,
como um doido qualquer,
atrás da tentação
de uns olhos de mulher!"
E resolve, consigo, ir
altivo e insolente,
fingir que não
padece e mostrar que não sente,
montar o seu pigarço,
atacar a restinga
às foiçadas,
beber um cálice de pinga
na venda do caminho e,
entre parvos caipiras,
de mistura, contar três
ou quatro mentiras
onde lampeja a faca,
onde, aos uivos e aos brados
põe em fuga, triunfante,
um bando de soldados!
Revive a ilusão!
Ele é outro! Salvou-se!
Insidioso, de novo, um
olhar meigo e doce
o alucina, o subjuga,
o domina, o amolece...
E nem sabe porque humilhado
obedece
à sugestão
da luz que cintila naquele
lânguido e triste
olhar que nunca olhou para ele.
Fascinação
Tudo ama!
As estrelas no azul,
os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu,
a terra, tudo,
num tumultuoso amor,
num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama!
Há amor na alucinada
fascinação
do abismo,
amor paradoxal, humano
e forte,
que se traduz nas febres
do sadismo,
nessa atração
perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para
a Morte.
Por isso, quando as lianas
em lascívias florais
cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo
mortal, crueldades humanas.
Há no erótico
ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência
de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!
É que o amor quer
a morte. Num momento
resume a vida, os loucos
entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia
da ferocidade,
tem o delírio
do aniquilamento!
É por isso que
vês, por tudo
uma luta de morte, um
desespero mudo:
a insídia da raiz
que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste,
a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria
dor ignota,
no torturante amor do
mais puro e mais alto!
2
E, na noite estival,
enchendo o Espaço
e o Tempo, a Luz e a Treva,
o turbilhão fantástico
se eleva
do amor UniversaL.
Tudo ama!
As estrelas no azul,
os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu,
a terra, tudo,
num tumultuoso amor,
num amor quieto e mudo,
tudo ama! Tudo ama!...
3
Juca Mulato freme. Imerge
os olhos entre
as estrelas curiosas.
Não sabe que anda
o amor nos espaços profundos
a fecundar o ventre
das próprias nebulosas
na eterna gestação
de novos mundos...
Ele é a matriz
da vida: multiplica
seres e coisas, numa
força eterna,
cria o verme, animais
que andam de rastros.
Mata e ressurge, estiola
e frutifica,
e, pelo espaço
rútilo, governa
a prodigiosa rotação
dos astros!
E a vertigem do amor,
fascinadora,
tudo arrasta, fantástica,
nos braços
e a terra que palpita,
canta e chora,
ora imersa na treva ora
imersa na aurora,
leva através do
Tempo e dos Espaços...
Acendendo no olhar um
lampejo divino,
Juca Mulato cede à
vertigem que o enlaça
e brada num transporte:
"Arrasta-me também,
no turbilhão que passa!
Leva-me ao teu destino,
Amor que vens para a
Vida e que vais para a Morte!"
Lamentação
1
"Amor?
Receios, desejos,
promessas de paraísos,
depois sonhos, depois
risos,
depois beijos!
Depois...
E depois, amada?
Depois dores sem remédio,
depois pranto, depois
tédio,
depois... nada!"
2
"Também como esse
bosque eu tive outrora
na alma um bosque cerrado
de emoções.
As palmeiras das minhas
ilusões
iam levando o fuste espaço
afora.
Floriam sonhos; era uma
pletora
de crenças, de
desejos, de ambições...
Não havia por
todos os sertões
mais luxuriante e mais
violenta flora.
Ai! Bosque real, é
o tempo das queimadas!...
É agosto, é
agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões
sinistros e medonhos.
Ai de nós!... Somos
almas desgraçadas,
pois na luz de um olhar
lânguido e triste
também ardeu o
bosque dos meus sonhos..."
3
"Água cantante,
soluçante, esse gemente
marulho triste, quantas
tristes cismas trás...
E fica incerta, ao ouvir-te
a voz, a dor da gente,
se vais cantando por
ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo
que deixaste atrás...
Água cantante,
água estuante, é singular
a semelhança em
que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e
nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais
correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo
para a morte.
Água cantante,
ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos
que não sei...
E, na inconstância
em que me agito, só obtenho
essa ânsia imensa
de deixar o que já tenho,
depois a dor de não
ter mais o que deixei!"
4
Tenho uma santa em casa;
o seu olhar encanta.
O olhar dela é,
porém, igualzinho ao da santa.
Quando rezo, nem sei,
é como o olhar da corça,
tem, na própria
fraqueza, a sua própria força.
Quando o fito minha alma
enche-se da incerteza
que há na canoa
sem dono á flor da correnteza.
Ele é tal qual
o sol, indiferente e mudo,
sem saber quem aclara
anda aclarando tudo...
Mas no olhar que o fitou
brilha,
constantemente,
um reflexo de luz ambicionada
e ausente.
Eu nunca vi o mar, mas
vendo esse olhar penso
num barco que se afasta
onde se agita um lenço...
Ou no doido terror que,
em meio de procelas,
há num casco sem
leme ou num barco sem velas...
Creio ver o meu vulto
em teus olhos, tão vago
como as sombras que espelham
a água morta
de um lago.
Eu bem sei que, tal qual
na líquida planície,
o meu vulto não
vai além da superfície.
Fica à tona, a
boiar nessa pupila absorta
como na água parada
alguma folha morta..."
5
"Pigarço: a dor
me aquebranta...
Quando lembro o olhar
que adoro
e que nunca esquecerei,
ah! Sinto um nó
na garganta
e choro, pigarço,
choro,
eu que até chorar
não sei...
Quando, a trote, ela nos
via,
debruçada na janela,
nós levávamos,
após,
com o pó que do
chão se erguia
o nosso olhar cheio dela
e o dela cheio de nós...
Então, pouco me
importava
que seu olhar nos seguisse...
Galopava-se a valer...
Quando esse olhar eu
olhava
era como se não
o visse
tanto o olhava sem ver!
Hoje pago essa ousadia...
Ela os olhos de mi tolhe.
Queixar-me disso por
que ?
Antes era eu que não
o via,
agora, por mais que me
olhe,
é ela que não
me vê.
Sou um caboclo do mato
que ronda a luz de uma
estrela...
Já viste uma coisa
assim?
E o pobre Juca Mulato
morrerá por causa
dela
e tu, por causa de mim...
Eu da luz desse olhar
garço,
tu da dor que te machuca,
morreremos e, depois,
eu fico sem meu pigarço,
meu pigarço sem
seu Juca
e o olhar dela... sem
nós dois!"
Presságios
1
Juca Mulato sofre. Em
cismas se aquebranta.
Uma viola geme, uma voz
triste canta:
"Antes de amar eu dizia:
para cortar na raiz
esta constante agonia
preciso amar algum dia,
amando serei feliz".
"Amei... desventura minha!
Quis curar-me e piorei.
O amor só mágoas
continha
e aos tormentos que já
tinha,
novos tormentos juntei".
2
A cantiga, a gemer, nos
ecos agoniza.
A vaga sugestão
dessa angústia imprecisa
contamina-lhe a dor que
o tortura sem pausa.
Juca sofre... Por que?
Não advinha a causa.
Só sabe que, em
seu peito, o olhar amado e langue,
deixa um rastro de luz
como um rastro de sangue...
Tornou-o, pouco a pouco,
a imensa dor que o oprime,
pálido como a
cera e magro como um vime.
Tem olheiras cercando
os grandes olhos lassos
cor do manto que traz
Nosso Senhor dos Passos
quando carrega a cruz
na procissão das Dores
no mais tristonho andor
de todos os andores...
Mas por que sofre assim?
Talvez mesmo ande nisso
artimanhas do Demo e
coisas de feitiço...
Precisa, sem demora,
ir uma sexta-feira,
à tapera do Roque,
abrir sua alma inteira,
contar-lhe o mal que
sofre e do peito arrancar
essa mágoa, essa
luz, esse olhar!
A Mandiga
1
Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta
cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto
disfarça.
Há uma faísca
má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como
as águas estagnadas.
Fuma: a fumaça
o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça
a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda
uma vez cuspinha.
Com o seu sinistro olhar
o feiticeiro mede-o.
- Olha, Roque, você
me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do
mal que me atormenta.
- Tenho ramos de arruda,
urtigas, água benta,
uma infusão que
cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo
que é coisa feita...
Com uma agulha e um cabelo,
enrolado a capricho,
à mulher sem amor
faço criar rabicho.
Olho um rasto, depois
de rezar um bocado
vou direitinho atrás
do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei,
eu faço, de repente,
do caiçara mais
mole, um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o
mal que te tortura.
- Roque, eu mesmo não
sei de este mal tem cura...
- Sei rezas com que venço
a qualquer mau olhado,
breves para deixar todo
o corpo fechado.
Não há
faca que o vare e nem ponta de espinho:
fica o corpo tal qual
o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal
que tanto de abateu?
- Ele vem de um olhar
que nunca será meu...
Como está para
o sol a luz morta da estrela
a luz do próprio
sol está para o olhar dela...
Parece o seu fulgor quando
o fito direito,
uma faca que alguém
enterra no meu peito,
veneno que se bebe em
rútilos cristais
e, sabendo que mata,
eu quero beber mais...
- Eu já compreendo
o mal que teu peito povoa.
Dize Juca Mulato, de
quem é esse olhar?
- Da filha da patroa.
- Juca Mulato! Esquece
o olhar inatingível!
Não há
cura, ai de ti, para o amor impossível.
Arranco a lepra do corpo,
estirpo da alma o tédio,
só para o mal
de amor nunca encontrei remédio...
Como queres possuir o
límpido olhar dela ?
Tu és qual um
sapo a querer uma estrela...
A peçonha da cobra
eu curo... Quem souber
cure o veneno que há
no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor,
tu vences teu tormento.
Isso conseguirás
só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói
tanto que parece
que a gente vai matando
um filho que estremece
ouvindo, com terror,
no peito, este estribilho:
"Tu não sabes,
cruel, que matas o teu filho?"
E, quando se estrangula,
aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva
e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo
essa tortura imensa
que o remédio
é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um
amor tal qual esse...
- Que me resta fazer ?
- Juca Mulato: esquece!
A Voz das Coisas
E Juca ouviu a voz das
coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar,
filho desnaturado?"
E um cedro o escarneceu:
"Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu
que fizeram teu berço?
E a torrente que ia rolar
no abismo:
"Juca, fui eu quem deu
a água para o teu batismo".
Uma estrela a fulgir,
disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei
a tua choça escura
no dia em que nasceste.
Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou
chorando de contente...
- Será doutor!
- a mãe disse, e teu pai, sensato:
- Nosso filho será
um caboclo do mato,
forte como a peroba e
livre como o vento! -
Desde então foste
nosso e, desde esse momento,
nós te amamos
seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe
que defende seu filho!"
Juca olhou a floresta:
os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo
entre os braços!
"Filho da mata, vem! Não
fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque,
as grades da arapuca,
o varejão do barco
e essa lenha sequinha
que de noite estalou
no fogo da cozinha?
Depois, homem já
feito, a tua mão ansiada
não fez, de um
galho tosco, um cabo para a enxada?"
"Não vás"
- lhe disse o azul - "Os meus astros ideais
num forasteiro céu
tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar,
estrelas ignoradas
hão de relampejar
como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui,
em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar
com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor
destas pobres estrelas
correndo atrás
de quem anda fugindo delas..."
Juca olhou para a terra
e a terra muda e fria
pela voz do silêncio
ela também dizia:
"Juca Mulato, és
meu! Não fujas que eu te sigo.
Onde estejam teus pés,
eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão!
Por sobre toda a esfera
há uma cova que
se abre, há meu ventre que espera.
Nesse ventre há
uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e
nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale
ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que
trazes em ti mesmo ?
Tu queres esquecer? Não
fujas ao tormento.
Só por meio da
dor se alcança o esquecimento.
Não vás.
Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal,
a própria dor dói menos...
E fica que é melhor
morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão
em que a gente nasceu!"
Ressurreição
1
Coqueiro! Eu te compreendo
o sonho inatingível:
queres subir ao céu,
mas prende-te a raiz...
O destino que tens de
querer o impossível
é igual a este
meu de querer ser feliz.
Por mais que bebas a seiva
e que as forças recolhas,
que os verdes braços
teus ergas aos céus risonhos,
no último esforço
vão, caem-te murchas as folhas
e a mim, murchos, os
sonhos!
Ai! coqueiro do mato!
Ai! coqueiro do mato!
Em vão tentas
os céus escalar na investida...
Tua sorte é tal
qual a de Juca Mulato...
Ai! tu sempre serás
um coqueiro do mato...
Ai! Eu sempre serei infeliz
nesta vida!"
2
"Ser feliz! Ser feliz
estava em mim, Senhora...
este sonho que ergui,
o poderia por
onde quisesse, longe
até da minha dor,
em um lugar qualquer
onde a ventura mora;
onde, quando o buscasse,
o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos...
Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto
o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar
e me arrependo agora.
O homem foi sempre assim...
Em sua ingenuidade
teme levar consigo o
próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber
se depois o achará...
E quando vai buscar sua
felicidade,
ele, que poderia encontrá-la
em si mesmo,
escondeu-a tão
bem que nem sabe onde está!"
3
E Mulato parou.
Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar
era vago e tristonho:
"Se minha alma surgiu
para a glória do sonho,
o meu braço nasceu
para a faina da terra."
Reviu o cafezal, as plantas
alinhadas,
todo o heróico
labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança
imensa das floradas,
pressentiu a fartura
enorme da colheita...
Consolou-se depois: "O
Senhor jamais erra...
Vai! Esquece a emoção
que na alma tumultua.
Juca Mulato volta outra
vez para a terra,
procura o teu amor numa
alma irmã da tua.
Esquece calmo e forte.
O destino que impera
um recíproco amor
às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar
que te exaspera,
procura esse outro olhar
que te espreita e te espera,
que há, por certo,
um olhar que espera pelo teu..." |