da Equipe de Articulistas
do Vida & Arte,
jornal O Povo – 12.01.1998
O que dizer da produção literária estabelecida em
1997 para que a partir dela se possa pensar o ano de 1998? Pensar o que,
minimamente, tenha ou carregue caraterística própria para
receber o nome de literatura; ou seja, originalidade. Mas pensar apenas
assim pode ser pouco. Literatura, para a originalidade, vai sempre precisar
de história, precisar de referência, precisar, principalmente,
de uma dimensão formal do que ficou aparentemente pronto como ‘obra
de arte literária’.
Em literatura - está em Tonio Kroeger, livro curto e um dos mais
geniais de Thomas Mann, quando a personagem homônima afirma em uma
conversa com sua amiga Lisavieta, e ensina: “A literatura não é
profissão alguma, e sim uma maldição.” -, esta maldição
maravilhosa, só se pode/deve discutir qualidade, formação
de estética, preservação e registro. Literatura de
verdade não vende, nunca deixou ninguém nadando em dinheiro
e “é muito bom que não venda”, diz Leminski. Este nosso tempo
é que quer pensar a literatura como comércio, como necessidade
orçamentária, já que tudo ficou fácil, fácil
demais até. Mas não pode ser comércio o que é
apenas um sutil prazer para o diletante. Mais adiante Kroeger afirma: “Ah!
sim, a literatura cansa, Lisavieta.”
O fato é que, cansada, a literatura tornou-se apenas mais uma entre
tantas manifestações culturais. Perdeu a sua hegemonia, virou
princípio participativo e foi aboca hando outra fatia deste pequeno
bolo qualitativo através de um diálogo maior.Ponto normal
se pensarmos isso diante da abertura pós-moderna, ou como queiram
nomear essa reviravolta normativa. O outro ponto, anormal, seria pensar
a literatura como resistência para a descompostura estética
que vive a contemporaneidade.
A suposta abertura para o heterogêneo, chamada de pós-modernidade,
não significa abastardamento. Logo, a verdadeira literatura não
pode ser resistência. Esta abertura apenas permite que o diálogo
intercontextual seja intensificado e estabeleça novas regras de
andamento para qualquer predisposição de arte. A literatura,
senhora de si, essencialmente, tenta manter os seus velhos leitores e trazer
o anti-leitor - este, natural deste tempo, que é empiricamente fascinado
pelo som e pela imagem -, para perto. Tudo muito tranqüilamente.
A narrativa que se pretende contemporânea, com total garantia do
caráter literário, é feita sob a égide desse
vulto heterogêneo que é a grande cidade. “O mundo é,
hoje, todo, este oxímoro: uma ampliação reduzida:
uma grande cidade.” Daí ficar impossibilitada qualquer pretensão
criativa que traduza esta época e seja ao mesmo tempo voltada apenas
para o regional, para uma literatura nacional, presa dentro de pequenas
fronteiras, daqui ou de qualquer lugar. Pensar a literatura hoje, seria
pensá-la de uma forma pós-nacional para que não seja
tomada como entidade inexistente.
Outro fato é: por mais incalculável que seja a quantidade
de livros que pipocam por aí sem contribuição nenhuma,
sem valor de classificação, o que de melhor se produz em
arte neste país ainda é no plano literário. Temos
uma produção de poesia - que é qualitativamente muito
boa - e uma outra de narrativas - menor, mas também interessante
- que buscam exatamente o conceito estabelecido por Bhabha: “De muitos,
um.” Do heterogêneo, a essencialidade. E hoje, é neste conceito
de essencialidade múltipla que sustenta-se a literatura, na desleitura.
E não dialogando com o que ainda quer ser nacional, cheio de penduricalhos
tradicionais.
REEDIÇÕES
NECESSÁRIAS E OUTROS
1997 foi principalmente um ano de reedições, sempre devidamente
necessárias: os gênios. Depois, títulos inéditos
de autores consagrados. Por fim, uma ou outra novidade. Os bons livros
de Calvino, alguma coisa de Shakespeare, uma bonita reedição
da obra de Franz Kafka por Modesto Carone, uma mais bonita ainda da de
João Cabral, a lira de Álvares de Azevedo, algumas crônicas
do genial Rubem Braga, o inédito livro de poemas de Guimarães
Rosa - Magma - que tem uma boa qualidade e surpreendeu quem pensava que
Rosa era só prosa etc.
Ainda reedições, as editoras Paz e Terra, Ediouro e L&PM
deram um banho com suas pequenas, de bolso. Títulos que trazem assinaturas
de Baudelaire, Rimbaud, Shakespeare, Manuel Bandeira, Moliére, Dostoievski,
Jane Austen, Kafka etc. Depois outros como Bukovski e Luís Fernando
Veríssimo. Tudo isso com um preço possível, bom.
A narrativa, pretensa novidade, veio à tona e trouxe qualidade extremada
em João Gilberto Noll, Sérgio Santanna, Gisela Campos, Ademir
Assunção, Guilherme Scalzilli e mais alguns. Essa narrativa
comporta-se de forma exemplar para a manutenção de um parâmetro
rigidamente literário e está divinamente preocupada em ler
e traduzir o seu tempo.
Mas o que de melhor apareceu como novidade estética foi em poesia.
Alguns exemplos: o livro de Cláudia Roquette Pinto, Zona de Sombra
(ed. Sette Letras) é o melhor do ano. Nele, trabalha toda uma estrutura
de linguagem a partir do vocabulário, uma outra formal e mais uma
de desconstrução sintática, além de substantivar
ao máximo a metáfora e os deslocamentos de metonímia,
reduzindo-os. Depois o livro de Angela de Campos, Feixe de Lontras (ed.
Sette Letras) e, por fim, as traduções que Régis Bonvicino
nos apresentou de Robert Creeley (Ateliê Editorial) em A UM; ambos1
(sic), poetas verdadeiramente importantes. Dessa literatura se pode esperar
muito ainda, principalmente dessa poesia.
LITERATURA
CEARENSE, O TERMO
Uma premissa muito conhecida, atribuída a Nikolai Gogol, autor de
Almas Mortas, diz que um escritor deve falar sobre sua aldeia para ser
universal. Mas esta premissa perde de vista todo o emaranhado de cultura
atual que nega a hegemonia da literatura. E uma literatura, por mais digna
que seja, que carregue o conceito fixo de lugar está fadada a desaparecer.
O Ceará tem dessas coisas. Primeiro, a impressão de que aqui
se faz tudo que há de melhor no mundo, não precisa ser mais
testado. Depois, um localismo arraigado, triste, cansativo, com uma linguagem
que cada vez mais nos enterra. Ainda uma preocupação em se
escrever literatura de cearenses para cearenses; para que o amigo da esquina
leia, veja, opine etc. Publicações sempre caseiras demais.
Dentro da fronteira. E o mundo? José Albano, poeta que esta terra
realmente teve, partiu, sem saudades. E foi Manuel Bandeira quem tratou
de resgatá-lo para que pudesse ser lido país a fora.
Nada mais cearense do que o universal encontrado na tranqüila obra
de Moreira Campos. Nada mais cearense do que se pensar as coisas
daqui e levá-las, com um novo tratamento de linguagem, para mais
longe. O poema “Dia do namorados na praça Clóvis Beviláqua”,
de Ruy Vasconcelos, é um pequeno exemplo disso. Foi publicado em
uma edição bilíngüe, numa antologia de poetas
brasileiros para a América. Falar de sua aldeia para ser universal
quer dizer falar de uma forma universal, estruturalmente.
Depois, até quando este dilema defensivo para cearensidade? Até
quando estes termos cansados: cearensidade, literatura cearense, da terra?
A cor local foi defesa básica de Machado de Assis em seu ensaio
sobre a nacionalidade, século passado, depois os modernistas, que
evidenciaram-se muito mais quando, na década de 30, deixaram de
lado esta obsessão, especialmente Drummond e Bandeira. Por que fechá-la
ainda mais, plano estadual, em um tempo que não a permite?
Adriano Espínola com o seu Beira-Sol, pode ser exemplo também.
Poemas que falam de Fortaleza, o tema da ‘cidade’, e universais enquanto
versificam o Pirambu, o Mucuripe, a Praça José de Alencar
etc: ``Um peixe abocanha a manhã’’. Além, preferiu publicar
por uma editora que o livrasse do estigma da fronteira. Seu livro saiu
pela Top Books, uma editora carioca.
Bom, temos coleções sendo lançadas aqui com alguma
qualidade. Mas fica-se nisso, são sempre os mesmos que lêem,
os mesmos que ficam sabendo. E ainda existem os que aparecem poetas e escritores
da noite para o dia. E o Ceará, maioria, aplaude. Nada como pelo
menos discutir, repensar. Questões são levantadas para isto,
não para respostas absolutas. |