Manoel Ricardo de
Lima
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Jornal O Povo, Caderno
Vida & Arte
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60065.402 - Fortaleza,
CE
Uma poesia de viagem
A poesia de João Cabral
tem uma alegria de água de coco, vida dentro da casa fechada: viagem.
Nada mais. A dita secura presente em cada verso dispõe de uma qualidade
que assustou meio mundo da poetada brasileira durante as décadas
de 40 e 50, para não falar do quanto se estendeu o estranhamento
por mais anos e anos. O sem lirismo, o esteta exagerado, o tipo desagradável
que desorienta o “jeito brasileiro de poesia”: alegria e sentimento.
Mas nada disso. João
Cabral apenas passa incólume por essa deslavada condição
de que poesia se faz para retratar a dor, para cantar as musas, para recital
de auditório, para ter aplauso dos leitores. João não
foi romancista ou pintor porque teve amigos poetas, começou a escrever
poesia depois de ter lido a de Carlos Drummond (como costuma chamar o amigo
de quem governa saudades), pois até então, poemas como os
de Bilac não lhe diziam nada (como não dizem nada mesmo).
Algo como: se poesia é isto, estou fora. Engraçado o verso
mineiro de Drummond ensinar poesia para alguém tão seco?
– de jeito nenhum, o verso de Drummond é tão seguro e pretencioso
quanto o de João, apenas feito de uma outra forma.
Se João é ou
não o melhor poeta brasileiro vivo, se construiu a grande obra poética
em português brasileiro deste século etc etc, são títulos
que ele, certamente, não controla, não vê. Nem nos
cabe, nenhum momento, impingi-los. João é, assim creio, o
mais lúcido poeta brasileiro, viajante de poesia, que pode ser lido
neste século. Sua convivência com Carlos Drummond, Manuel
(Bandeira), Murilo (Mendes), Vinícius, o velho Braga e até
Mário Quintana (até porque a poesia de Quintana destrói
o pressuposto de João, é doce: “a morte é quando a
gente pode, afinal, / estar deitado de sapatos...”) o fez dialogar com
outro ritmo literário. Seu bem querer pelo conterrâneo Joaquim
Cardozo, sua convivência com Miró, com Joan Brossa e com Sevilha
e, por fim, sua necessidade de viagem é que orientam sua ordem de
poesia.
O grande salto mesmo de João
é ter sido diplomata. Assim, como afirma, esteve em lugares que
lhe permitiam escrever poesia, sempre. Apenas. Freqüentava a poesia
de Auden, de Bishop, de Válery e etc etc e ufa!, uma enorme quantidade
significativa de versos para afirmar que depois de Baudelaire ficava difícil
ainda se pensar em escrever poesia, tinha o sujeito escrito tudo. Sua poesia
pensava como Mondrian, em linhas retas.
Todo esse diálogo
de João com a sua própria viagem o permitiu escrever a tal
e tão grandiosa obra que tanto nos envaidece, leitores. Velho, cansado
e triste, João já não viaja, já não
consegue mais escrever poesia, já não lembra nenhum verso
seu e deprime-se mais e mais por não poder ler, está quase
cego. E dentro desse senhor que sente uma enorme falta de sua Recife verdadeira,
de uma boa água de coco, está, talvez, uma das mais imponentes
contribuições a poesia que ainda se pratica no Brasil, hoje.
Desde a tarefa árdua
que o diálogo exige - a abertura, o senso de ouvido e paciência
- até nos tirar dessa fria, dessa postura de cantiguinha que enaltece
a terra, que evoca a cor local e só, João tomou a postura
e considerou o que realmente é pressuposto de arte, de poesia. Sem
fazer o mesmo barulho do movimento concreto (que organizou a panacéia
definitiva do diálogo, da tradução, da necessidade
de conhecimento de outras culturas, outras poesias) e seguindo uma linha
particular, ergueu sozinho, livro após livro, uma consciência
poética que foi / é filtrada e infiltrada nos destinos de
uma séria e elevada estética contemporânea.
A maior matéria de
sua poesia, o homem do sertão, entra como um substantivo universal.
Não conhecia outro homem, outros canaviais. Até deparar-se
com uma plaza de toros. E essa retirada da angústia para o recebimento
da palavra, da coisa para a estrutura frásica, do objeto para o
que ele distingue no nome que carrega, são as aranhas que registram
e tecem o poema deste engenheiro. A poesia contemporânea, depois
de João, tem que ser outra.
Não há em João
o dito não-lírico, mas um lirismo às avessas. A palmatória
cabe à poesia contemporânea porque está feia, burocrática,
enrijecida e igual. Mas precisa estar assim. Um tempo. É que o verso
precisa estar intimamente ligado à página, dizendo a si mesmo
que o último paradigma concreto, coloquial, dialogado e ainda modernista
existe. João rompeu com toda essa proposta poética brasileira
e escreveu sozinho porque é gênio. A poesia contemporânea
brasileira não é genial, é aprendiz. Não é
pós-moderna, não pode ser. Óbvio, não se pode
ser o que não existe. Ela dança um artefato rigoroso de busca,
e tenta.
A poesia de João é
a referência fundamental de uma poesia que quebra, se quebra e se
organiza dentro de uma inovação que precisou / precisa viajar.
Sem viagem, sentido mesmo da palavra - ir de um lugar para o outro, trânsito
– a poesia freia, desiste. A saudade, a nostalgia, o ranço nacionalista
dos modernistas preocupados com a industrialização é
velho; João já escrevia longe disso. É esta sua maior
lição, o tempo presente. A palavra eterna. A poesia de João
nos ensina que tolentinos podem até escrever asneiras sobre o modernismo,
que as pessoas podem ler e gostar; mas que ainda não conseguimos,
de todo, romper com essa boa idéia, quase gagá, a do modernismo,
apesar dos concretos e outras cositas mais.
A poesia contemporânea,
tomando lições, aprende em João: “Cemitérios
autárquicos, / se bastando em todas as fases. / - São eles
mesmos que produzem / os defuntos que jazem.” Daí, o melhor que
ela pode fazer é repensar e perceber a importância grandiosa
de João, neste sentido, para não morrer. E não duvidemos
que há uma poesia que ainda resiste com suas saliências e
tentativas de viagem; mesmo que a maioria da poetada brasileira pense que
poesia é aldeia, caneta e papel, um soneto e uma ou duas palavrinhas
de amor.
Manoel Ricardo de Lima –
11. 06. 1998
Publicado no jornal O Povo
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