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Miguel Sanches Neto


Poesia e literatura


Gazeta do Povo
30.06.97

 

Bruno Tolentino é um prisioneiro de sua linguagem. Deixando o país em 1964, passou a lecionar no exterior, confinando-se não apenas em outros idiomas mas também em uma língua portuguesa literária. Perdendo o convívio diário com a nossa língua oral, o seu idioma passou a ser outro, distanciado do de seus coetâneos. Sua territorialidade lingüística, com isso, ficou reduzida à de uma ilha aristocrática. Ele usa um português de luxo, divorciado do agora. A história contemporânea não existe para ele, tão identificado se encontra o poeta com os habitantes desta ilha que, ele tem consciência disso, é um calabouço que não o deixa transitar livremente pelo agora.

Assim, a poesia, nas mãos deste poeta, será sempre uma experiência do cárcere, o que pode abrir novas perspectivas para a leitura de sua mais recente coletânea: A Balada do Cárcere (Topbooks, 1996). O aprisionamento deixa de ser algo biográfico
(o poeta passou realmente algum tempo detido), para se tornar a metáfora motora de toda a sua poesia. Tolentino escreve preso a um léxico previamente lírico e a formas fixas, o que faz com que a experiência do cárcere seja uma constante em sua produção.

Paralisado pelo desejo de adquirir uma eternidade via comunhão com os grandes poetas universais, ele abriu mão da tarefa do escritor moderno que é correr riscos ao dar foro literário à linguagem de todos aqueles que não podem exercê-la. O seu personagem, chamado "O numeropata", é um assassino que usa um verbo nobre, deleitando-se com referências à tópica erudita. Ele está mais próximo do índio de
Alencar, um europeu fantasiado de aborígene, do que do homem real.
Com um domínio invejável do verso, Tolentino perde-se no labirinto de sua erudição, propondo uma poesia que não é apenas temporã, mas programaticamente des-historizada. Apesar de comprometer a fruição, o uso deste idioma poético, mesmo galvanizado, cumpre uma função muito importante na lírica nacional ao romper como o
discurso miniloqüente e trocadilhesco que tem imperado com o advento de um conceito de poesia que passa pelo jogo infantilóide de palavras.

Tolentino exibe organismos complexos em que sobressai o domínio de uma linguagem onde não fica transparente o recorte que o poeta faz de seu tempo. Em suma, a sua é uma linguagem atemporal que poderia ter sido a de um escritor do século passado. Há um saudosismo nesta escolha: ele escreve para leitores que não mais existem. Ou para ser lido historicamente como alguém que viveu num outro tempo. Em As horas de Katharina (Cia da Letras, 1994), Tolentino recorreu a este expediente: o eu lírico é de uma suposta religiosa nascida em Veneza em 1861. Este desejo de passar por alguém de outro tempo, como um íntimo dos clássicos, que pode ser visto até no cabotinismo do autor que não pensa duas vezes para se anunciar amigo de Auden e outros monstros sagrados da poesia universal, define o distanciamento entre o emissor e os leitores. Impera sempre a sensação de se estar diante de algo artificialmente obtido, em que não há uma entrega, muito pelo contrário, em que se investe em máscaras literárias.

O que estraga sua poesia é o excesso de literatura que obriga o leitor a permanentes tentativas de interpretação. Esta literatice, como não poderia deixar de ser, conduz à prolixidade. Um dos poemas ("No labirinto"), termina com a repetição de um etc., referência à falação interminável que marcam seus textos. Se em Tolentino avultam a intenção e o esforço intelectual de fazer poesia, em Lya Luft o que conta é a inevitabilidade da possessão poética. Seus temas são o amor e a morte. Ela não se enxerga como um espaço de exceção, como alguém que vive acima dos mortais. Para Tolentino, a imortalidade é atingida através da comunhão com uma linguagem imorredoura. Ele fala da eternidade para o tempo presente. Para Lya Luft, só existe uma breve eternidade no amor. Sua poesia é uma verbalização deste
sentimento, onde o poeta é poeta na medida em que é antes de tudo um ser humano.

Logo, fala do tempo presente para a eternidade. Desdenhando os vôos intelectuais, a escritora gaúcha se delicia com um verbo ao rés do chão, comprometido com as florações do cotidiano de uma mulher que sofre com os impulsos contraditórios do amor e da morte. Sua poesia, nesta era lírica cabralina, tem um sentido transgressor por falar, com requinte e sem complexos de inferioridade, de um sentimento que acabou exilado na subliteratura: o amor. Se defender isso há alguns anos atrás era um truísmo, hoje pode ser visto como ato de rebeldia. Numa sociedade em que o sexo foi incorporado pelos
mecanismos de consumo, colocando o relacionamento do casal dentro da lógica da mercadoria, o amor ganha um sentido infrator. Ele contesta a desumanização das relações. Concentrando a sua poesia neste sentimento, Lya Luft garante-lhe a cidadania no mundo da artes, resgatando-o dos domínios do subliterário.

Autora de apenas dois livros de poemas (Mulher no palco, 3a edição e O lado Fatal, 5a edição - ambos pela Siciliano), fenômeno cada vez mais raro em uma cultura de emissores compulsivos, Lya Luft vê a poesia como uma forma de expressão necessária. Nela, o confessional é o motor do exercício poético, não havendo qualquer laivo de simulacro. Sem esta verdade na sua origem, a obra corre o risco de tornar-se um virtuosismo carente de maiores significações. Ou seja, acaba fortalecendo os valores de uma sociedade que premia o domínio técnico das coisas. Não sendo portadora desta sinceridade, a poesia, por mais transgressora que seja em sua fatura, serve apenas para lubrificar as engrenagens da era pós-humana. Nada entendo de signos:

se digo flor é flor, se digo água
é água. (Mas pode ser disfarce de um segredo.)
Se não podem sentir, não torçam
a árvore-de-coral do meu silêncio:
deixem que eu represente o meu papel.
Não me queiram prender como a um inseto
no alfinete da interpretação:
se não podem me amar, me esqueçam. (p.47)

 

Rebelando-se contra a interpretação, ela busca uma poesia em que a literatura não se interponha entre o poema e o leitor, uma poesia que resuma as verdades do vivido. Esta mulher que sobe ao palco não busca se mascarar. Em diversos poemas de seu primeiro livro, ela refere-se ao ato poético como um desvelamento, porque a vida em sociedade vai colando à face das pessoas contínuas máscaras que devem ser periodicamente arrancadas. No palco da poesia, este desmascaramento se dá através de um abismar-se no eu.

Dois talvez sejam os centros antagônicos de sua poética: o espelho e o avesso. No espelho, ela encontra a sua imagem mais superficial, sua face pública, a que ela tem que usar para ser razoavelmente aceita. O avesso é a sua mais íntima identidade, que ela tem que fazer aflorar. Não se trata de um antagonismo entre corpo e alma, mas da condição do artista/amador, visto como ser fronteiriço, que está neste mundo de imagens sem perder o vínculo com o das essências. Mulher no palco fala constantemente do amor e da iminência da morte como espaços que se confundem e se misturam: "Serás tu, amor, ou é a Morte, apenas, que reclama?"(p. 21). A água límpida do amor, onde nadam peixes azuis, é a véspera da lama em que os amantes terão que chafurdar. A inevitabilidade do sofrimento torna ainda mais cara a experiência amorosa, que acaba sendo um treinamento para a morte: "Minha vida foi feita de parceria com a morte" (p.55).

Este é, portanto, um livro que busca preparar a poeta para o confronto com a indesejada das gentes. É o ensaio da peça que vai ser encenada no livro seguinte, O Lado Fatal, onde Lya comunica o seu espanto de perder o amado. Deixando em Porto Alegre os filhos e o primeiro marido, ela, já madura, passa a viver um curto e intenso romance no Rio de Janeiro, restaurando na madureza a juventude das paixões desenfreadas. Sua segunda coletânea poética é o relato de seu contato direto com a morte, enquanto a anterior era uma antecipação pressentida. Reunindo também poemas de amor e morte, Lya Luft passa do estágio preparatório, para o exercício do amor na morte e da morte no amor.

Esta passagem mostra, além da carga de sinceridade que está por trás de seus poemas, a coerência do que a poeta deixa escrito.Não existe prova mais eloqüente da imprescindibilidade de sua experiência poética. Uma experiência poética que dispensa rimas, metrificação, musicalidade artificiosa, experimentação verbal e variação temática. Ela funda-se não em jogos de palavras, mas na vida da palavras. A verdadeira tarefa do poeta, ao contrário do que supõem os deslumbrados, não é desorganizar um dicionário, mas dar-lhe uma configuração humana.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Rogério Lima