Miguel Sanches Neto
A arte da crítica em 51 teses
12.05.97
Condensadas neste artigo, em teses aforísticas,
as
particularidades da crítica literária.
A crítica exige uma vocação para ser odiado.
Bom crítico não é quem lê muito - e, por extensão, quem cita
destrambelhadamente - mas quem lê certo.
Ao contrário da biblioteca do colecionador, a do crítico é composta
essencialmente por volumes lidos.
Num certo sentido, o crítico não dialoga com os leitores, mas com os
livros.
As relações de amizade em crítica chamam-se indulgência ou
inimizade.
O bom crítico é o que se repete nos subterrâneos de seu texto, sem
comprometer as variações de superfície.
Num único texto (sobre, por exemplo, poesia) deve estar contido tudo
que o crítico pensa sobre o assunto. Isso torna o discurso crítico
metonímico. Se o livro X apresenta tais e tais defeitos, os demais
livros dos poetas de sua família incidirão, até prova em contrário,
nos mesmos equívocos.
Ao analisar um livro, o crítico está pensando toda a poesia
contemporânea.
Se o crítico escrevesse uma carta de agradecimento para cada livro
que recebe não teria tempo para cometer os seus artigos.
Como identificar os inimigos do crítico? Basta apenas ver quem não
lhe manda livros.
O crítico, trapezista sem rede de segurança, tem sempre as mãos
untadas.
Um poeta me liga para reclamar que não comentei o livro dele, sem
perceber que sua obra já fora julgada nas restrições que fiz a
outras similares.
Só escreve crítica que tem a neurose de ser útil.
Nunca ler as apresentações dos livros (prefácios, posfácios etc.).
Quem quer ter uma idéia pessoal da obra só deve contar com sua
intuição e seus preconceitos.
O preconceito, em crítica, é tão importante quanto a sensibilidade.
Ele deixa claro que não se tem medo de contrariar o alegre coro das
comadres.
O crítico é o porta-voz das maiorias silenciosas. Não no sentido
marxista da expressão. Ele deve dizer aquilo que os leitores
pensariam se fossem críticos e não o que o autor gostaria de ouvir.
Unanimidade em crítica chama-se universidade.
Mais amador do que profissional da leitura, o crítico, quando começa
um artigo, mal sabe sobre o que vai escrever.
Não se produz crítica com meditação demorada, mas sob o impacto da
leitura.
O ideal crítico seria escrever um único comentário por ano. O
silêncio indicaria as obras frustradas. Mas, felizmente, para os
autores, o crítico trabalha com a perspectiva da semana.
Um livro só é bom no curto interregno que o separa do surgimento de
outro livro melhor. O mau livro o é definitivamente.
O crítico lê na hora do almoço, enquanto mastiga uma maçã, no vaso
do banheiro, enquanto espera a filha na escola, nos intervalos da
insônia, depois de fazer amor, no ônibus, na sala de espera do
dentista, na rede de descanso... Quem lê no escritório é o
funcionário público.
Se a crítica de jornal fosse toda ela oriunda da universidade, o
leitor só poderia ter acesso aos lançamentos através da paciente
busca em velhos sebos.
Só existe crítica no calor da hora.
O crítico que não deixar transparente o universo de suas limitações
é um farsante.
A crítica não reflete a verdade sobre o livro em questão, mas deve
refletir a verdade sobre quem a escreve.
A cada livro lido há, em minha biblioteca interior, um
estremecimento que desencadeia uma nova rede de relações.
A biblioteca do crítico nasceu ao sabor das leituras e tem o tamanho
de sua ignorância.
A atividade crítica é provisória, não só pelo meio em que é
divulgada, mas principalmente pela provisoriedade dos livros
comentados.
O escritor passaria muito bem sem a crítica. O leitor não.
Para o autor, o bom crítico é o que o entende. Já para o leitor, é
aquele que o faz entender.
Nunca reler, depois de impressa, a própria crítica. Para não correr
o risco de discordar dela.
Posso parar de escrever crítica a qualquer momento. Só não posso
parar de ler. Essa disposição faz a diferença entre a vocação e o
desejo de aparecer.
A existência do crítico literário ultrapassa as limitações dos
críticos feministas, marxistas, concretistas, barrocos...
O crítico não argumenta em favor do autor, mas em favor da
literatura.
Uma crítica autêntica nunca é morna: ou é quente ou gelada.
O bom crítico sofre de estrabismo. Ele nunca enxerga as coisas da
mesma forma que os outros.
O crítico não escreve para os seus pares, mas para seus ímpares.
Um dos cardápios do crítico: laranja, abacaxi, kiwi, maracujá, maçã
verde - enfim, frutas adstringentes. Frutas que ele mais detesta:
melancia, melão e banana. Nestas preferências há uma poética.
O melhor leitor é o que lê distraidamente. O pior, é o que lê em
busca das contradições.
Crítica: espaço estimulante da contradição. Só têm coerência os
carreiristas.
O crítico não deve ter medo de errar um julgamento. O perigo é
reproduzir outros julgamentos.
A máquina que melhor define a universidade é a fotocopiadora. O
instrumento que melhor define o crítico é o estilete - de
preferência enferrujado.
O crítico entra no livro desarmado para tentar sair com as armas do
adversário.
Os únicos amigos confiáveis do crítico: os livros.
O paraíso do crítico literário tem a forma de uma biblioteca, mas de
uma biblioteca desorganizada.
O paraíso do crítico universitário tem a forma de um arquivo.
Nesta civilização pós-humana, o crítico tem a sensação de estar
escrevendo nas paredes das cavernas.
A vanguarda, em crítica, é um velho bonde dos anos 20, conduzido por
um velhinho bonachão, gordo e de barbas brancas, que, já meio
caduco, solta impropérios em 20 idiomas, entre eles, o hebraico.
Neste nostálgico bonde, os pingentes da modernidade disputam a tapa
um lugar. Ele só não descarrilou ainda porque está muito bem
acomodado no porão de um museu de curiosidades.
"O bom escritor não diz mais do que pensa [...]. Por isso, o seu
escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer
dizer". Walter Benjamim.
Quando ninguém mais perder tempo com os livros, o crítico ainda não
se dará por vencido. Escreverá para o prazer gastronômico das
traças.
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