Miguel Sanches Neto
Inteligência erotizada
04.06.2005
Segunda obra de Mário Sabino, livro
de contos promove encontro entre o leitor refinado e o autor
criativo
Raros ficcionistas contemporâneos
apresentam a erudição que Mário Sabino revela em seu primeiro volume
de contos - O antinarciso - , obra em que o leitor refinado e o
autor criativo se encontram. O seu universo de referência é
totalmente cosmopolita e vai de Dante a Wagner, de Platão a Elitot,
o que é, por si só, qualidade louvável numa literatura como a nossa,
mais afeita à realidade imediata do que a diálogos culturais.
Em todos os contos de Sabino
encontramos as marcas de um homem extremamente inteligente, que
domina várias linguagens: a do século 19 (magistralmente trabalhada
no conto machadiano por excelência que é ''Um chapéu ao espelho''),
a do ensaio à la Montaigne (presente em ''Da amizade masculina''), a
psicanalítica (''Conto infantil''), a erótica (''Olhos de égua''), a
humorística (''Um beijo entre doish cocosh''). O antinarciso opera
estas mudanças de modulações, levando o leitor ora por caminhos mais
filosóficos, ora por situações mais irônicas, ora por profundos
dramas existenciais. Em todos os casos, manifesta-se uma voz em que
ressoam os grandes temas da cultura ocidental. Por trás de cada
texto há o mundo da alta cultura, que sinaliza as situações vividas
pelos personagens.
Este tipo de narrador erudito
geralmente gera obras enfadonhas, em que a informação tira a beleza
e a rapidez do texto, enfraquecendo a pulsação erótica da linguagem.
E aí é que Mário Sabino se distancia definitivamente de uma tradição
pensante de nossa ficção, pois todos os seus relatos, mesmo aqueles
em que há uma linguagem extemporânea, apresentam temperatura
elevada. Não se lê esta obra entre bocejos, ela é ritmo, fúria e
música - uma música nascida não dos jogos vazios de linguagem (o
autor é indiferente a esta voga), mas de enredos que avançam rumo a
um alvo bem definido. Há discussões filosóficas e culturais, mas
elas não estão soltas, não são enchimento e sim estágios de um
relato certeiro. Dessa forma, a leitura é um precipitar contínuo,
numa velocidade não das linhas retas, mas dos movimentos
concêntricos, eróticos por excelência.
Há no livro um conflito permanente
entre as vivências medíocres e os seres especiais. Os dois
companheiros de ''Da amizade masculina'' fazem da complementaridade
intelectual uma forma de viver mais plenamente a condição humana. Um
acrescenta atributos ao outro, o que os leva a exaltar a amizade
como verdadeira comunhão da alma. Sem o característico fundo
homoerótico, este conto é uma tradução contemporânea das relações
entre mestre e discípulo, num elogio de uma inteligência sem espaço
para se expandir. A amizade acaba comprometida pelo ciúme baixo das
mulheres, que a tomam como busca de satisfação física.
As mulheres, em alguns contos, serão
caminhos interditados para a realização plena desses homens
sensivelmente inteligentes. Em ''Eliot'', Dante, o
personagem-símbolo, renuncia à mulher real, que é expulsa para fora
do tempo, para poder funcionar como valor platônico. Em ''Não é bem
assim'', a mulher prefere ser mãe, mero veículo biológico do DNA,
recusando um papel-maior, o de caminho para a divinização, para a
transcendência. Em ''Suzana'', a imagem infantil de uma menina de
olhos verdes, símbolo de possíveis amorosos, é destruída depois de
décadas, quando o homem tenta recuperar o afeto da paixão juvenil e
se depara com uma prostituta arruinada. Já em ''Wagner e Wagner'', o
matemático, filho de músico, não reconhece na mulher a justificativa
de sua vida, buscando um sentido nas pesquisas, mas só conseguindo
experimentar o êxtase numa queda vertiginosa, quando a música é
manifestação da brevidade de tudo.
Se a amizade é uma possibilidade
masculina de conexão intelectual, o sexo sem recalques é a passagem
para o encontro entre homens e mulheres - tal como acontece em
''Olhos de égua'', em que a entrega total da fêmea é sua forma de
subjugar o macho. Mas pode ser também o amor mais brando de ''Um
beijo entre doish cocosh'', em que a complementaridade se dá por
meio de uma forma afetiva de habitar a cidade do outro. O paulista
que esnoba o Rio passa a defender esta cidade quando se apaixona
pela carioca deslumbrada por São Paulo, numa cumplicidade cultural.
Nestas histórias eróticas pela
compulsão narrativa, Mário Sabino retrata com um riso contido os
seres ocos, fixando-se nas trajetórias destes personagens vaidosos,
tão comuns em nossa época publicitária. Mas o autor nos remete a
outros períodos, como o da disputa pré-humana entre o Senhor e Seu
discípulo rebelado (''Miserere'') ou o final do século 19, quando
Conrado não se adapta à moda do chapéu baixo, entrando em decadência
por seu apego narcísico ao chapéu alto (''Um chapéu ao espelho'').
Esta é a medida fútil de um homem todo exterior mitificado, que se
vê pela aparência: ''o chapéu é a integração do homem, um
prolongamento da cabeça, um complemento declarado ab eterno; ninguém
o pode trocar sem mutilação'' (p.30). Esta história retoma dois
contos machadianos (''A teoria do medalhão'' e o ''O espelho''), em
que a superfície é a alma do homem, visto como corpo e seus
adereços. Para Conrado, ficar sem o seu chapéu alto é o mesmo que
morrer.
Diante da redução do homem a esta
lógica da exterioridade, centro de um mundo dominado por Narcisos
exacerbados, resta ao autor exercitar sua inteligência irônica e
apaixonada.
O antinarciso
Mário Sabino
Record
112 páginas
R$ 23,90 |
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