Miguel Sanches Neto
Sob o signo do Dois
Gazeta do Povo.
Curitiba, 22 de agosto de 2005.
O poeta maduro habita um tempo
crepuscular, sem ser indiferente às sombras que se aproximam e
guardando a memória do dia ensolarado. O crepúsculo funciona, para
ele, como território intermediário, ponto de encontro de momentos
tão antagônicos, que se misturam numa relação de compartilhamento. O
poeta jovem pode ser solar ou noturno, mas dificilmente tenderá para
esta sensibilidade conciliatória, perdendo assim o gosto pelo
contraditório.
Desde seu livro anterior, Textamentos
(1999), Affonso Romano de Sant’Anna (1937) encontra-se domiciliado
neste endereço, de onde chega sua nova coletânea poética – Vestígios
(Rocco, 2005), em que ele declara, por meio de um neologismo, que
está “crepusculando” (p. 112). O gerúndio intensifica sua natureza
de travessia. Affonso convive com as dúvidas, por entrever a noite e
seus enigmas, sem renunciar ao calor das coisas vivas e vividas. O
resultado é uma dicção nada agressiva, que oscila entre vários
pólos.
Uma de suas definições do fazer
poético vai neste sentido: “ofício de trevas claras” (p.131), que
poderia soar como um eco do “claro enigma”, de Carlos Drummond de
Andrade, embora fuja deste modelo por não dar margens a hermetismos,
preferindo atuar no jogo claro/escuro das artes plásticas,
desarmando qualquer armadilha mística.
Vários poemas apresentam esta
duplicidade cromática. Nenhum, no entanto, é mais eloqüente do que
as pequenas lendas intituladas “O homem e sua sombra”, com sua série
de descompassos entre os dois termos, criando identidades cindidas,
povoadas por seu inverso. A sombra representa a condição caseira, o
desconhecido, o sonho, o coletivo, o feminino. A ausência dela anula
a própria existência deste ser que se desdobra em outro.
A densidade da existência deste homem
se dá no âmbito do dois, relativizando identidades unitárias.
Afirmação e negação se alternam numa circunstância dilemática, mas
sem desconforto, pois o poeta renunciou aos mitos da unidade e da
verdade. No primeiro poema, declara: “fujo da verdade cega e
absoluta” (p.7), lembrando depois que amadurecer foi aceitar a
falência da inteireza.
Affonso constrói todo o livro a partir
desta noção do duplo, do ambíguo, do dividido, exigindo que o leitor
acompanhe os movimentos pendulares, que ora apontam uma direção, ora
outra. Ler seus poemas isoladamente é simplificar a orquestração de
posições contidas em Vestígios.
Numa tentativa de sinalizar a leitura
deste livro, poderíamos ver algumas das parábolas descritas por este
pêndulo.
No campo da linguagem, o claro/escuro
se manifesta em um permanente mover-se da prosa para a poesia, e
vice-versa. Em muitos poemas, encontramos uma linguagem de crônica,
antipoética em sua estruturação, embora recheada de lirismo. Nestes
textos, em que poderíamos localizar a face clara do código, estão os
poemas sobre viagens, artistas, sobre os comentários aos mais
diversos fatos do cotidiano e aqueles desentranhados de outros
textos (como “Tristezas de Ovídio”, “Waldeck” e “Indagações de John
Ruskin”). Neste conjunto, o estilo não é determinante na construção
do poético e as rimas e outros recursos surgem como flores nascidas
espontaneamente. No outro extremo, estão os textos que se afirmam
pela forma (seja pela rima, pela ordenação das palavras ou dos
versos) e pelo significado (mais insondável) como poesia. Aqui, o
poeta escolhe um espaço mais intransitivo. Se há estes dois pontos,
os melhores poemas são justamente aqueles em que as extremidades se
tocam, numa mescla de elementos poéticos e prosaicos, de
comunicabilidade direta e de sugestão, como “O homem e sua sombra”.
Fascinado pelo mundo da cultura
clássica, presente em vários poemas que tratam de grandes autores e
de espaços históricos, Affonso aproxima-se de um tempo que se
passou, ao qual ele chega pelo exercício arqueológico da palavra, em
busca do humano vestígio. Ao se deslocar para outros modos
culturais, distantes cronologicamente, ele revela um convívio com as
sombras do passado, que podem ser também de ordem pessoal. Não há,
no entanto, nenhum passadismo nesta escolha, pois concomitantemente
ele trata de assuntos cotidianos, jornalísticos, de temas
traumáticos, de autores e questões da atualidade, numa clarificação
do instante presente.
Outra oposição fundadora desta sua
poética é a do mundo versus o lar. O poeta viaja pelo território
profano, conquistando imagens reveladoras que são matéria de poesia.
Como poucos poetas brasileiros, Affonso Romano apresenta um olhar
cosmopolita sobre questões políticas, históricas e artísticas,
falando com familiaridade de assuntos culturalmente distantes. Seus
poemas sobre viagem iluminam a descoberta do outro, modificando o eu
que, em boa parte dos poemas, está integrado ao lar. A casa é o
cosmo antípoda, onde o poeta se reconhece, sentindo-se parte desta
micro-história manifestada nas coisas domésticas. Ele fala tanto da
rotina milenar das mulheres da casa quanto do cão, das plantas e das
paisagens pessoais.
Este habitar o mundo e o lar não
ocorre em estado de oposição, mas de erótica conjunção. Assim, um
móvel trazido de suas viagens é domesticado pela família, que se
reúne em torno dele sob um céu carioca – “A mesa marroquina”. E o
poeta, voltando de uma de suas andanças com mudas européias de
flores, que serão plantadas em sua casa de Friburgo, reflete sobre o
contrabando mais íntimo, dos êxtases mínimos que não podem constar
da declaração de bagagem: “... temo que me interceptem na alfândega
/ não tanto pelas flores que nos braços trago / mas pela cor de meu
olhar” (p.76). O caminho do poeta é o mesmo de Ulisses, valorizado
no momento do retorno. Ele tem que se afastar o máximo da casa para
poder reinaugurá-la.
Complementarmente, a mulher mais que
amada aparece em vários poemas, como casa em que o poeta experimenta
o amor maduro e intenso, sem que ele renuncie às lembranças das
mulheres entrevistas em suas viagens e conhecidas no passado, que
continuam presentes, sem declaração de bagagem, no brilho de seus
olhos. Estas outras mulheres não são a negação da amada, mas a
reafirmação do amor destinado a ela. O estado apaixonado também vai
de um pólo ao outro: pode ser o entusiasmo mais incontrolado, como
em “Não sei aonde isso vai me levar”, em que a urgência do amor é
expresso pela repetição da rima em ar, como o canto de suavidade
“Agradecimento amoroso”.
Antagonismo forte de Vestígios,
extensão de outros aqui já tratados, é o que se manifesta pelo
enaltecimento (direto ou indireto) do saber, da arte e da história,
paralelamente à valorização da experiência. Affonso estará sempre
neste território da duplicidade. Seus poemas sobre artes plásticas,
que atestam um conhecimento técnico do assunto, não o afastam do
gosto pelas coisas mais simples. Ele pode falar da vida-obra de um
filósofo (“Wittgensteinianas”) e ao mesmo tempo preferir a conversa
com uma camponesa do interior da Irlanda em Dublin, durante o
erudito colóquio sobre James Joyce (“Crônica dublinense, 1969).
Deixando a conferência, ele se isola em um café, revivendo sua
juventude em Juiz de Fora. Nesta estada em Dublin, ele se vê como a
criança pobre do interior de Minas, a mesma que vai povoar poemas
como “Aquele menino I e II”. O passado pessoal, esquecido na sombra,
ressuscita à luz de um hoje diferente na superfície mas idêntico na
essência.
Tendo sofrido o patrulhamento
ideológico e estético por, tal como Caravaggio, “reinventar no claro
o seu contrário / e extrair do escuro / seu luminoso discurso”
(p.96), Affonso Romano de Sant’Anna criou um estilo de
bipolarizações. Não é um poeta de crenças simplistas e prefere ver a
realidade como jogo de reflexos, que inverte as imagens, destruindo
qualquer certeza. Para ele, João Cabral de Melo Neto, que afirmou
apenas o mundo material seco, sem emoções, era um sentimental
enrustido, com medo das emoções, de fazer a travessia. Até os
recursos concretistas são usados em “Canto de oficina”,
experimentações de linguagem que vão da crítica bem humorada ao
Concretismo à prática antológica de alguns de seus possíveis. Para
Affonso, o eu só existe como duplo. Por isso, nunca se deixou conter
em nenhuma das vertentes de nossa lírica moderna, explorando ao
mesmo tempo tudo que elas pudessem lhe dar. É, nesse sentido, nosso
poeta contemporâneo mais representativo.
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