Quem assim pede licença é, na descrição do
jornalista paraibano Orlando Tejo, um "caboclo de estatura avantajada,
desinibido e desabusado, doublé de menestrel e jagunço, carismático",
nascido em 1886 no chapadão da Serra do Teixeira, morto em 1954.
Ao cantar, costumava amarrar ao pescoço extravagante lenço
cor de sangue-de-boi, com um volumoso nó à altura da laringe,
onde trazia pendurado ordinário e aberrante anelão de pedra
azul, realizando violento contraste de cores. As mãos estavam
sempre enfeitadas por 10, 12 e às vezes 15 anéis que reluziam
enquanto os grossos dedos tangiam ágil e meticulosamente a dúzia
de cordas da viola, todas afinadas numa só tonalidade.
Seu nome? "Eu me chamo Zé Limeira / Cantadô
que tem ciúme / Brisa que sopra da serra / Fera que chega do cume
/ Brigada só de peixeira / Mijo de moça sorteira / faca de
primeiro gume."
Zé Limeira era um poeta que não sabia ler nem escrever.
Mas será mesmo possível falar de uma poesia analfabeta?
Achamos que esta questão assume grande pertinência quando
se reexaminam os conceitos em torno do fenômeno poético e
as relações da História com a poesia. Poeta, claro,
é aquele que se deixa arrebatar pela linguagem, confiando-lhe a
produção de seu desejo, a instauração do real.
Linguagem não, língua: a recusa em aceitar a comunicação
como instrumentalidade, como um mero utensílio, chega a constituir,
na visão sartriana, o traço essencial do poeta.
A palavra poética não é um simples signo, algo que
se deixe definir em função das articulações
de um sistema produtor de significações (a língua)
em sua interferência com a História. "Para mim", diz
Breton em Manifestos do Surrealismo, "a mais forte das imagens é
a que apresenta o grau arbitrário mais elevado, não o escondo,
aquela que se leva mais tempo a traduzir em linguagem prática".
Assim, quando Homero fala numa "aurora dos dedos de rosa", é preciso
abstermo-nos de usar a arma da decomposição analítica,
para que viva a sua imagem. É forçoso, então, que,
como o poeta, nos entreguemos a um movimento análogo ao provocador
de sua aurora, tenha esta nascido da faia ou da escrita. A poesia não
está necessariamente confinada às formas gráficas
da linguagem. A epopéia poética, por exemplo, pertence
primordialmente às civilizações orais, lugares de
predominância do sistema de comunicação direta.
Este universo cultural produziu os aedos (gregos), os bardos (célticos),
os trovadores (que, na Europa até o século XVI, cantavam
a poesia), os gritos (africanos), fazendo da linguagem poética o
veículo, por excelência, de lendas, história, moral,
metafísica, informações, etc. No Nordeste brasileiro,
o cantador exerce, de modo muito legítimo, essa função.
A cantoria (originária da Serra do Teixeira, na Paraíba)
é a lírica improvisada, em geral, num encontro poético
de dois cantadores que assume a forma de um desafio. O repente é
o produto metrificado e rimado desse encontro. O jogo da linguagem
na repetição de sons —elemento constante da poesia
de todas as épocas, da mais antiga à moderna — empenha-se
aí em fazer coincidir formas sonoras, a brincar com a lei de distância
entre sistema e sintagma na língua. Zé Limeira praticava
este jogo com absoluta mestria, não errando jamais na métrica
ou na rima, e sem perder a musicalidade verbal. "Eu sou corisco pastando
/ No vergel da vantania / Oceano disdobrado / No véu da pilogamia
/ No dia trinta de maio / Pelei trinta papagaio / Santo Deus, Ave-Maria."
Na cantoria, a música é freqüentemente regida pela dinâmica
verbal do verso ou texto cantado, ao invés de aceitar como impulso
desencadeante a simetria da forma musical dada a priori. Modos tonais
já abolidos pelo Oriente musical costumam, assim, ressurgir como
uma centelha no calor de um desafio. E uma palavra do verso pode
surgir tão "desorganizada" do ponto de vista semântico quanto
a sintaxe musical. Há realmente música no verso de
Limeira, ela se afina com um espantoso esforço de reinvenção
da linguagem. Palavras como prugilo, juvenia, tolfus, aldiacos, grodofobia,
pilogamia e outras transitam comodamente na lírica do cantador.
Certa vez, outro repentista (Arrudinha) exigiu explicação:
"Eu jamais ouvi falar / Nessa tal de juvenia / Nem tampouco em aldiacos
/ Dessa sua silencia / Limeira, me fale sério / Que diabo é
grodofobia?" E o poeta não se fez de rogado: "0 mestre inda não
sabia / Que Jesus grodofobou? / Apois fique conhecendo / Que Limeira prugilou
l E o cipó de Seu Pereira I Também já juveniou".
Desse modo, pela força do significado arbitrário, do neologismo
instantâneo, Zé Limeira —como Éluard, quando em seu
poema Liberté diz "... et par le pouvir d 'un mot / Je recommence
ma vie " — recomeça pela linguagem "ilógica" a sua vida num
outro espaço, que bem poderia ser o de São Saruê, a
terra mítica do sertanejo nordestino. Limeira fala a língua
que se poderia falar em São Saruê. Por seu verso "absurdo",
ele se relança como algo diferente do que se espera: não
aquilo que é, nem aquilo que pode ser, mas aquilo que não
se deve dizer. Para ele, pouco importa o significado, o que vale
é dizer. Se para Éluard "a terra é azul como
uma laranja", Limeira proclama tranqüilamente: "Vi passar uma cobra
azul, falando num microfone".
Embriaquês de linguagem ou loucura pura e simples? Um certo
membro da Academia Brasileira de Letras, ao tomar conhecimento da poesia
de Limeira, invocou a psiquiatria e rejeitou qualquer possibilidade de
significação surrealista na obra do cantador: "Um analfabeto
não teria essa sensibilidade". No entanto, basta olharmos
com atenção os loucos das cidadezinhas do interior do país
para concluirmos que sua sensibilidade leva-os a prescindir, galhardamente,
da medicina de Pinel. Mocidade, por exemplo, o louco "oficial" de João
Pessoa, sustenta que "é preciso ter muito juízo para ser
louco na Paraíba". Realmente, ainda hoje no Nordeste o discurso
da desrazão mantém a sua velha força de comunicação
cultural. A poesia de Limeira tem alucinação, pelo
processo esquizofrênico, da geografia, das raças, da História
Universal. É o que diz Gilles Deleuze em seu L'Anti-Oedipe a propósito
do esquizo: "(sinto que) eu me torno Deus, eu me torno mulher, eu era Joana
D'Arc e sou Heliogábalo, e o Grão-Mongol, um chinês,
um pele vermelha, um Templário, eu fui meu par e fui meu filho".
Acabando com o princípio de realidade, o esquizo só é
alguma coisa, sendo outra. E por estar em todo lugar onde o real
é produzido (sempre pelo desejo), ele "viaja' para dentro de si,
juntando os continentes, refazendo as lendas, mexendo com a História.
O verso de Limeira arrebenta não só a ordem histórica,
como a geográfica, religiosa, lingüística. É
assim que "Quando Jesus veio ao mundo / Foi só pra fazê justiça
/ Com treze ano de idade / Discutiu com a doutoriça / Com trinta
anos depois / Sentou praça na puliça". Ou então:
"Sairam lá de Belém / Cristo e Maria José / Passaro
por Nazaré / Foro para Batelelém / Chupô cana num engenho
/ Pediu arrancho num brejo / De noite armuçô um tejo / Lá
perto de Piancó / Na sexta-feira malhó / Foi que Judas vendeu
Jesus". Um exemplo geográfico: "Lá na Serra do Teixeira
/ Nasci, sendo bem criado / Na Alemanha os japonês / Já sabe
lê um bucado / Conheço esse mundo inteiro / Fica tudo no estrangeiro
/ Do Teixeira do outro lado".
O aspecto "esquizo" da poesia de Limeira não é nada, já
se vê, que possa ser dominado por qualquer discurso psiquiátrico.
Seus versos são percorridos por uma intensidade particular de sentido,
que indica um modo especifico de pensar (ao contrário do cantador
típico do Nordeste, que aposta quase tudo na rima). Limeira
é bem diferente: "Eu sou um nego moderno / Foi não foi, estou
pensando..." Ele tinha os seus sistemas (filanlumia, pilogamia, etc.),
em cujo interior eram produzidos os versos. Por exemplo, o sistema
da Filosofia Regente, aparentemente relacionado com os temas da História
Sagrada: "Os Hemisférios do prado / As palaganas do mundo / Os prugis
da Galiléla / Quelés do meditabundo / Filosomia Regente /
Deus primeiro sem segundo". No pensamento do poeta, o homem é
o que faz, e assim assegura a mais absoluta transitividade ao ser: "Se
tu fôr na minha casa / Tem capim pro teu cavalo / Se chegar um fotoigáfo
/ Eu mando fotogaifá-lo / Se chegar um filósofo / Eu mando
filosofá-lo". E a visão lingüística de
Limeira deixa transparecer o conceito de metáfora vívida:
"Eu sou açude corrente / Dentro da mata bravia / Gramática
azul, beiçuda..." Ou seja, ele próprio é a gramática,
é a linguagem e seu código, sua realidade é a palavra.
Não é outra a idéia que Baudelaire fazia do processo
poético: "... Teu olho se fixa numa árvore harmoniosa, curvada
pelo vento... Tu emprestas à árvore tuas paixões,
teu desejo e tua melancolia, seus gemidos e suas oscilações
tornam-se os nossos, e logo tu és a árvore".
O sentido que percorre toda a poesia de Limeira é, antes de tudo,
o do encantamento da linguagem. O poeta faz ver o imenso fascínio
da palavra — ele a ama por si mesma, desprezando qualquer pretensão
lógico-discursiva. Ao mesmo tempo, entretanto, faia do poder de
classe da palavra, da força de dominação que ela pode
exercer. No interior Nordestino em que viveu -Chapadão do
Teixeira, Cariri paraibano, Campina Grande, Catingueira, etc. — o verbo
tem o seu mandarinato, a palavra é também uma arma, assestada
o tempo todo contra o analfabeto. É o caso do discurso bacharelesco,
beletrista, doutoral, tão próprio das elites de nossa velha
realidade semicolonial. As banalidades greco-latinas, anglo-germânicas
ou clássicas a varejo convertem-se num dialeto empolado e fantasista,
mas em geral eficiente como instrumento de poder.
A poesia de Limeira produz uma espécie de contra-sentido da erudição
beletrista. A criança transforma a palavra que não
entende bem, gerando formas lingüísticas que exercem, às
vezes, grande encanto sonoro, mesmo sem significação.
O cantador do Teixeira — que não era criança, mas poeta —
metamorfoseia a língua brasileira a partir de seu irradiamento erudito
(exemplos: prodologicalidade, filupafilutupéla), produzindo efeitos
não simplesmente fonéticos, mas principalmente irônicos
ou grotescos. Esta última categoria vem muito a propósito,
pois seus versos julgam e exasperam, com a crueldade lúcida do louco,
com o lirismo dessabido da criança, com a ousadia lúdica
do analfabeto e com o ritmo interno do poeta, o discurso pedante.
Com Limeira, assim como os dementes das cortes orientais que fascinaram
os Cruzados, o grotesco reassume a sua função social de denúncia,
por um certo distanciamento irônico, de mecanismos de poder.
Mas é um grotesco de linguagem que não desconhece o lírico,
existindo ao lado de um sentimento forte do mundo: "Canto repente no Norte/
Arranco feijão no Sul/ Toco fogo no paul/ Não tenho medo
da morte/ Uma mulata bem forte/ Uma novilha parida/ Uma sala bem comprida/
Um cangote, duas perna/ Poço, cacimba e cisterna/ Tenho saudade
da vida".
A arte de Limeira tem, ao mesmo tempo, um sentido que se poderia chamar
de "ecológico", na medida em que desnuda a perda de contato dos
objetos técnicos, da civilização industrial, da escrita,
com o jogo. O apito do trem era capaz de assustá-lo como se
fosse o berro de um demônio. Foi sarcástico com o gravador:
"Heleno, que bicho é esse/ Que tem fala de homem macho?/ Parece
um tatu quadrado/ Cum cinturão no espinacho/ É uma coisa
tão pouca/ Mas ninguém sabe se a bocal Fala pro riba ou pro
baixo". Mas seu sarcasmo maior mirava a letra. Sentir a poesia
de Limeira é dar-se conta de um aspecto particular do poder: a exclusão
do analfabeto pela cultura escrita, do espaço social reconhecido
oficialmente. É esta mesma cultura que, conjugada com a escola e
suas determinações históricas de Estado, exclui a
possibilidade de uma poiesis analfabeta. Isto nos leva diretamente à
questão de saber se o poético é uma categoria (implicando,
portanto, numa atitude capaz de classificar um texto como poético
ou não) ou uma propriedade objetiva de linguagem. Preferimos
considerar a primeira hipótese: a poesia é algo que se faz
ou desfaz aos olhos de quem produz ou de quem pode enxergá-la.
Poeta é aquele que vê além da transparência da
língua. Mas a Estética, comprometida com o funcionamento
escolar, procura aprisionar o poema em suas formas históricas "necessárias",
que passam pela letra ou pelo livro.
Zé Limeira é um dado contraditório. Seus versos
feriam as perspectivas de velhos discursos—"ainda faço uma ferida
no toitiço da velha madrugada". E talvez seja a percepção
disto que leve a gente do sertão, os filhos de São Saruê,
a concordar com o autojulgamento do poeta: "Sou o cantado malhó/
que a Paraiba criô-lo'. |