Nelson Ascher
Entrevista concedida a Rodrigo de
Souza Leão
Nelson Ascher
nasceu em São Paulo em 58, filho de pais húngaros. Fez quase um ano
de Medicina (no jornal do centro acadêmico dessa faculdade publicou
seu primeiro artigo, que falava de J.L.Borges) e depois ingressou na
Fundação Getúlio Vargas de SP, onde se formou. Nessa época (final
dos anos 70) publicou, no Jornal da Tarde sua primeira resenha e,
numa revista feita na USP, suas primeiras traduções de poesia.
Cursou, em seguida, o Mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC,
passou a escrever para a Folha de São Paulo, publicou um livro de
poemas, Ponta da Língua (edição do autor, 83) e começou a trabalhar
nesse mesmo jornal. Foi editorialista, coordenador da seção de
livros e editor do Folhetim, escreveu crítica literária,
cinematográfica etc.. Em 88/89 criou a Revista USP e se tornou seu
editor, cargo no qual permaneceu até 94. Desde 89, quando visitou o
Leste europeu e assistiu à queda dos regimes comunistas da região,
escreve também sobre política internacional. Seus livros mais
recentes são:
Sonho da Razão
(93) e Algo de Sol (96), ambos de poesia e publicados pela Editora
34; Pomos da Discórdia (93, Editora 34) e Crítica (Não Só) Literária
(Editora Cone Sul, no prelo), os dois reunindo ensaios e artigos; O
Lado Obscuro (96, Memorial da América Latina) e Poesia Alheia (98,
Editora Imago), os dois coletando traduções. Em 99 participou da
tradução de A Dama de Espadas, de Púchkin Editora 34), de Alice no
País das Maravilhas (Editora do Colégio Objetivo) e das obras de
Borges (Editora Globo). Coordena uma coleção de literatura do Leste
europeu na Editora 34, ganhou uma bolsa Vitae em 97 e foi também
correspondente de uma rádio de Budapeste, Hungria.
Rodrigo - Você afirmou em matéria na
Folha: “Ser hoje contra ou a favor de Gregório implica
principalmente tomar partido num debate sobre o barroco, seu
significado e sua relevância para a literatura moderna.” Qual a
importância do barroco para a literatura brasileira? Quem é o
verdadeiro Gregório de Matos? É um gênio ou um plagiário? Um bom
ladrão ou um bandido?
Nelson Ascher – Faz algum tempo que escrevi esse texto, mas, se
estou bem lembrado, eu tinha em mente tanto a assim chamada “questão
gregoriana”, quanto o papel que a reavaliação do barroco
desempenhou, sobretudo nos anos 20, na trajetória de alguns
modernismos, mais especificamente os de língua inglesa (com a
atenção que, por exemplo, T.S. Eliot dera a John Donne e aos outros
poetas “metafísicos”) e espanhola (o próprio nome da Geração de 27
comemora o tricentenário da morte de Góngora e é tomado das
celebrações realizadas em 1927 por García Lorca, Dámaso Alonso e
outros). Nenhuma escola, época ou estilo é bom ou ruim por si só. E
o mesmo acontece com o barroco, que tem momentos esplêndidos e
outros, deploráveis. Na língua portuguesa e, especificamente no
Brasil, o barroco sofreu por mais tempo do que nos países/línguas
acima de uma rejeição em bloco. E Gregório, por ser (ou representar)
não exatamente um poeta, mas um conjunto de poemas mais ou menos
atribuídos a um autor a respeito de quem pouco se sabe, acabou
amargando mais uma rejeição. Além disso, esse poeta, ou melhor,
esses poemas foram atingidos pelo fogo cruzado de mais uma questão,
qual seja, a de quando começa independentemente uma literatura
brasileira que não é mais ou tão somente uma sub-seção da lusitana.
Para finalizar, sempre reaparece a famosa discussão acerca do
plágio, mas as respostas clássicas para isso são, primeiro, que não
é fácil acusar de plagiário um autor que virtualmente não deixou
manuscritos autógrafos ou obras publicadas em vida e, depois, que,
como vem colocada, a acusação de plágio se fundamenta num conceito
de originalidade que é posterior ao barroco. São, como se pode ver,
vários debates se entrecruzando. Seja como for, nosso modernismo
deve a alguns outros que, por sua vez, devem não ao barroco, mas a
uma releitura dele. O que vários poetas e ensaístas passaram a
colocar, não necessariamente nesses termos, seria a indagação de por
que deveríamos nos nutrir do barroco inglês ou ibérico em vez de ir
direto ao que, naquela época, se fez em nossa língua. A partir daí
temos várias leituras, seja de nosso barroco, seja do Gregório. Para
quem lê e/ou faz poesia, porém, uma coisa só é que conta: sob o nome
dele existe um número nada desprezível de poemas que vale a pena
freqüentar e com os quais há muito o que aprender. As outras
questões, parece-me, pertencem mais à comunidade acadêmica, aos
filólogos, historiadores etc., e é a eles que cabe resolvê-las.
Rodrigo - “Pomos da Discórdia” é um
livro de ensaios. Há idade certa para escrever poemas, novela,
conto, romance, ensaio?
Nelson Ascher - Sim e não. Na história da literatura pode-se,
obviamente, achar de tudo. Eu diria, porém, que os instrumentos
necessários para se escrever um bom poema podem ser obtidos ou
dominados relativamente cedo por alguém. O mesmo vale para um conto
ou um breve romance poético. Um grande romance, que não o seja só no
tamanho mas também na extensão do que revela, mostra, discute etc.,
requer mais tempo, vivência, experiência. Isso não é uma regra: só
uma constatação pragmática. É possível escrever um romance a partir
de um mínimo de conhecimento da realidade, do mundo, do que quer que
seja. Acontece que os mestres do passado nos legaram, nessa área,
uma herança difícil. A forma romance pressupõe, até certo ponto, um
mergulho longo e profundo numa multiplicidade de coisas e fatos e,
para que um romance mais ou menos se justifique diante do leitor,
ele precisará, digamos, mostrar serviço. Um romancista culto deve
ser capaz de fazer tudo o que um autor de best-sellers faz, e mais.
E um autor de romances comerciais é capaz de falar, entre duas
capas, de política, sexo, trabalho, mecânica de carros e aviões,
construção de bombas nucleares e deus sabe mais o quê. Por que um
romancista “culto” e “literário” não deveria ser capaz de nos
oferecer pelos menos isso? No geral, porém, não creio que haja idade
e cada qual de nós deve arriscar máximo o quanto antes, já que
ninguém sabe quanto tempo ainda lhe resta. E se alguém que o fez
acabou escrevendo algo ruim, bom, isso não é crime: mãos à obra e
tentar de novo, até dar certo. Ou não. Porque em nenhum desses ramos
os resultados são garantidos. As coisas variam de indivíduo para
indivíduo e, ademais, cabe levar em conta o inesperado, a sorte ou o
azar, enfim, o que antigamente chamávamos de destino.
Rodrigo - Hoje o Poeta é um erudito.
Fala várias línguas, traduz, escreve ensaios... Qual o real valor de
uma formação tão sólida? A poesia necessita de tanta erudição para
contecer? O poeta virou um burguês?
Nelson Ascher – Novamente, tenho que apontar que há lugar para tudo
e todos. Conheço bons poetas não eruditos e vice-versa. O próprio
conceito de erudição é complicado. Creio que muitos poetas aprendem
línguas e lêem autores estrangeiros justamente para tentar sair da
camisa-de-sete-varas em que nossos antecessores nos colocaram. Um
poeta como Drummond fez tanta coisa – e tão bem - que, para quem
quer escrever seus próprios poemas, isso se torna quase assustador,
castrante mesmo: “O que existe ainda para se escrever depois dele
(ou de Bandeira, Cabral, Vinícius, Haroldo, Décio, Augusto,
Gullar)?” Quando parece não haver mais saída, visitar outras épocas
ou lugares é sempre refrescante. No meu caso, falar algumas línguas
tem menos a ver com uma formação sólida (que não julgo ter) do que
seja com o fato de eu ser filho de estrangeiros (e, portanto,
bilíngue desde casa), seja com o de eu ter me interessado na
adolescência por coisas e autores cujo acesso em português não era
tão fácil. Por outro lado, acho sim que, numa área, o poeta deve ter
uma boa formação: em poesia. E essa se consegue lendo e relendo
poetas, novos ou velhos, bons ou ruins, nacionais ou estrangeiros.
Imagino que um poeta, antes de escrever uma única linha, seja aquele
que gosta de poesia, porque lê poesia, tem o gosto pelo que outros
escreveram, decorou poemas de Camões ou Castro Alves ou Mario de
Andrade, tanto faz. O poeta, imagino, quer ser poeta porque, antes
de mais nada, gosta realmente do que os outros fizeram, fazem, acha
tudo isso legal, importante. É a única formação que se requer de um
poeta. O que vier além disso pode ser importante para ele, mas só o
será para os leitores se ele fizer bom uso de tudo o que sabe – em
termos de poesia, bem entendido. Não creio assim que o poeta tenha
virado um burguês, ainda mais porque, num país como o nosso, cuja
burguesia é grossa e crassa, nem a erudição nem a cultura podem ser
considerados valores burgueses. Não faz tanto tempo assim, saber das
coisas era tido como progressista e informar delas os outros era
chamado de revolucionário.
Rodrigo - O que você sente quando
escreve um poema? O que o poeta deve sentir? Quais os caminhos que a
sensibilidade não deve penetrar... sob pena de o poeta estar
escrevendo algo aquém de sua capacidade? Como é o seu processo
criativo?
Nelson Ascher – Primeiro, não há “o que deve sentir”: cada qual
sente coisas diferentes em horas diferentes. Quando escrevo prosa,
geralmente me sinto à vontade, exceto pelo aperto do “deadline”. Já
escrever poesia é algo que, por requerer mais concentração, me
exaure. Às vezes, quando acho que, aqui e ali, consegui algo
interessante, sinto-me até um tanto eufórico (mas isso logo passa:
bastam algumas releituras). Quanto aos caminhos penetráveis ou não,
isso também é muito pessoal. Alguns poetas e/ou escritores derivam
boa matéria-prima para seus textos de êxtases ou impasses amorosos,
enquanto o resultado, para outros, é paralisia ou mudez em um dos/ou
em ambos os casos. Dos grandes poetas esperamos, habitualmente, não
respostas, mas pelo menos um vocabulário para nossas próprias
experiências. Até que ponto, porém, encontraremos uma parcela desse
vocabulário em um poeta, mais um pouco em outro e assim por diante é
algo que, de leitor em leitor, muda bastante e, obviamente, muda no
correr do tempo dentro de cada leitor específico. Nada impede que,
diante da perda de alguém querido, uma pessoa repita para si mesma o
verso de Baudelaire “Le printemps adorable á perdu son odeur” (mesmo
que seja outono) e que outro diga, digamos, “De repente, não mais
que de repente”. O problema de tentar generalizar quando se fala em
poesia é que, sempre que parece que chegamos a uma regra absoluta,
ocorre-nos imediatamente um exemplo óbvio e notório que a contradiz.
Meu processo criativo (de poemas), se é que tenho um, é algo
relacionado com os estados obsessivos. Parto de uma idéia, uma
palavra, algo que vi ou até – pecado dos pecados! - de uma encomenda
específica (“Você não quer escrever um poema sobre futebol para ser
publicado durante a copa de 94, ou sobre La Fontaine para sair no tricentenário do nascimento dele?”) e aí começo a pensar no assunto
de várias formas: racional, irracional, semântica, sonora, pessoal,
impessoal, livre-associativa, delirante. Acumulo palavras, dados,
coisas irrelevantes etc. Num determinado momento começo mais ou
menos a entrever o que poderíamos chamar de uma forma, que mais do
que com metro, rima etc., tem a ver com o desenho da frase. Essas
coisas, escrevo à mão; vou abrindo parênteses,
colchetes, cobrindo o papel na horizontal, vertical, de formas
oblíquas e assim por diante. Quando chego finalmente a algo
rudimentar, mas que tem, na minha concepção, começo, meio e fim, aí
eu passo o resultado para meu computador (antes era a máquina de
escrever), imprimo e continuo a anotar e corrigir numa cópia
impressa. Quando esta já beira a ininteligibilidade, passo as
correções para o computador e continuo no “print” seguinte. O
central para mim, no entanto, é o que faço antes de ir ao
computador, pois isso requer uma concentração mais ou menos
ininterrompível. Depois que consegui “configurar” o poema, ele passa
a ser, para mim, algo que existe independentemente e eu posso entrar
e sair dele mais ou menos à vontade, retocando-o de tempos em tempos
até que alcance não um
estado de “acabado”, mas de “apresentável”. Mesmo assim, não raro,
continuo a alterá-lo por muito tempo, mesmo depois de publicado,
pois não acredito na idéia de poema “ideal”, “perfeito” etc.
Rodrigo - José Paulo Paes dizia que
poesia é talento. João Cabral de Mello Neto afirma que é trabalho.
Como encara esta divergência?
Nelson Ascher - É uma velha discussão, mas confesso que não consigo
ver qualquer contraposição entre as duas coisas, uma situação de
“ou ou”. Não há ramo ou atividade em que não esperemos de um bom
profissional tanto talento quanto a aplicação, o trabalho. Uma
cozinheira, um médico, um mecânico, um vendedor podem ser
talentosos, mas isso não os exime de terem que aprender, estudar,
dar duro, trabalhar pesado . Por que isso não se aplicaria aos
poetas? Um bom médico salva vidas, uma boa cozinheira é capaz de nos
dar prazeres maiores do que a média da poesia, um mecânico lida com
complicações inimagináveis para o comum dos mortais e um vendedor de
verdade pode nos fazer comprar coisas que nunca sonhamos ter. Se um
poeta for bom o bastante para se equiparar, em seu ramo, com os
melhores dentre esses outros profissionais, ele deve se considerar
feliz. A poesia é uma atividade, nem melhor nem pior do que as
outras, e requer
competência inata e adquirida, dedicação, paciência, esforço,
inteligência etc.
Rodrigo - Numa crítica ao seu livro
“Algo de Sol”, Marcelo Coelho afirma que a sua poética “persegue o
que desapareceu e se sente perseguida pelo que desaparece.” Como é o
ser e o não ser ao mesmo tempo? Os fantasmas não são apenas parte do
passado? Qual o lugar do devir em sua poética?
Nelson Ascher – Na minha infância, minha mãe e minha avó, que eram
herdeiras de um longa tradição narrativa centro-européia,
contavam-me (como muitas mães e avós sempre fizeram, fazem e farão)
contos-de-fada. Ambas eram grandes contadoras de estórias. Às vezes,
contudo, elas estavam ocupadas ou cansadas e, então, meu pai as
substituía. As estórias que ele contava eram diferentes, eram quase
histórias, quase História: o cavalo de Tróia; Rômulo, Remo e a Loba
de Roma; a Grande Armada espanhola que tentou invadir a Inglaterra;
Napoleão em Waterloo. Com o tempo essa história foi chegando mais
perto do presente e ficando mais detalhada. Talvez venha daí meu
interesse pela história em geral e a da minha família em particular.
Além disso, ontem eu tinha 20 anos, anteontem 5, e hoje tenho 41. Há
pessoas com as quais, ainda há pouco, eu estava conversando e já faz
anos que elas não existem mais. Isso me deixa pasmo. Minto: isso me
apavora, me deprime. Mas eu sou feito disso, nem conheço qualquer
outro tipo de transcendência nem, a rigor, nada mais importante. Há
coisas, poucas e muitas, que só eu vi ou ouvi, coisas que existiram,
frases que pessoas disseram e que só ecoam em mim, para mim, através
de mim. Saber disso é um tormento. Poder esquecê-lo é um pesadelo. A
possibilidade não de perder a memória mas de nunca a ter possuído
parece, às vezes, uma bênção. Que eu saiba, segundo a teologia
judaica, a alma não é imortal, e a dos mortos existe enquanto alguém
vivo lembrar-se deles. Trata-se de uma responsabilidade pesada:
esquecer equivale a matar novamente os mortos. É dos fantasmas
deles, porém, que somos em boa parte constituídos: se nos livramos
de todas as aparições, tornamo-nos uma também. O devir, assim,
existe apenas como aquilo que estamos fazendo; produzi-lo é, em
grande medida, passar adiante o que
recebemos. Lembrar é produzir a possibilidade de futuro.
Rodrigo - Transformar acontecimentos
corriqueiros em poema é uma das características dos grandes poetas
modernos. No poema “Hölderlin”, uma baixa de voltagem é transformada
em acontecimento “fenomenal”. A poesia é isso tudo que está no poema
“Hölderlin” ou é apenas o nada? Ou isto é uma discussão
estapafúrdia?
Nelson Ascher – Concordo. Algo que diferencia a poesia moderna das
anteriores (embora esse juízo não deva ser considerado absoluto ou
taxativo) é a recusa de hierarquizar fatos, acontecimentos, coisas,
palavras, estilos etc., dizendo que estes são mais nobres e,
portanto, dignos de atenção poética, enquanto aqueles não o são.
Nisto a modernidade poética decorre, como se sabe, de alterações
mais profundas, do colapso mesmo de uma visão teológica (metafísica,
diria Heidegger) que, para começar, postulava uma hierarquia da
realidade na qual Deus estava acima dos homens, esses dos animais,
os animais das plantas e as plantas, do seres inanimados; o eterno
estava acima do temporal, a poesia épica, da lírica, esta acima da
prosa, a prosa, da fala quotidiana, o cão estava acima do cachorro,
e as plumas, das penas. O poema “Hölderlin”, como o leio (um direito
meu, apesar de tê-lo escrito, mas, ao mesmo tempo, uma leitura como
a de qualquer outro e que nem por ser minha detém mais autoridade),
fala metaforicamente e, assim, em dois planos. Num
deles, o assunto é a trajetória e, mais do que isso, o desfecho da
trajetória do poeta alemão, ou seja, sua loucura. No outro, que
existe enquanto comparação em relação ao primeiro, o tema é uma
lâmpada que se queima e o ruído que ela faz. Talvez seja
interessante dizer como essas duas coisas se combinaram (até onde se
possa crer seja na sinceridade da minha versão, seja simplesmente na
acuidade de minha memória) em algum lugar no interior de minha caixa craniana. Anos antes de escrever o poema eu estava deitado num sofá
da minha sala, à noite, lendo um livro (não recordo mais qual)
quando (não havia nem em casa nem na rua qualquer outro ruído) meio
que (esse “meio que” é importante) entreouvi um zunido contínuo,
elétrico, metálico, um pouco tristonho. Durou, talvez, um segundo ou
dois, se tanto. Houve um clarão súbito, brevíssimo, e a lâmpada do
abajur que estava atrás de mim se apagou, queimada. Essa
experiência, ou melhor, constatação ficou arquivada em meus
neurônios. Muito depois eu escrevi a “orelha” para as belíssimas
traduções do Hölderlin que o Antonio Medina Rodriguez ia publicar
pela Iluminuras. A “orelha” é um gênero literário, se bem que meio
aberto, indefinido. Cabe nela muita coisa, desde uma resenha de
jornal a uma prosa lírica a, como o Drummond já fez, um poema. O
que tentei escrever poderia, com boa vontade, ser chamado de uma
espécie de convergência entre uma prosa lírica e um mini-ensaio
aforismático (acho que não adianta enfatizar que digo isso sem
qualquer pretensão, não é?). Veio-me, depois de ler e reler as
traduções, a imagem de um poeta solar, literalmente luminoso e que
chegava ao seu sol a pino, ao seu meio dia, segundos antes de
mergulhar nas clássicas “trevas da loucura” (usamos normalmente o
termo “entrevado” para referirmo-nos a alguém num estado comatoso).
Depois de escrita a orelha, me ocorreu que a descrição que eu fazia
da trajetória de poeta alemão se assemelhava àquela minha
experiência anterior, que insistia em não sair dos meus neurônios
(talvez porque eu nunca antes tivesse sequer imaginado a lâmpada
como algo também sonoro). No entanto, para que as duas coisas
convergissem, faltava um terceiro termo que fizesse o papel de
catalisador, e esse foi um poema do poeta húngaro János Pilinszky,
um poema que significativamente termina dizendo algo assim como
(cito de memória): “deixate ligada a luz no corredor/ hoje derramam
o meu sangue”. Não dá para me alongar aqui, nem examinar o poema
húngaro. Basta dizer que o abrupto da transição é bem típica do tom
espantado, lúgubre, melancólico e incurável de Pilinszky, e que me
aproximando do tom dele eu tentei juntar as duas coisas acima. De
certa forma o que eu tentei dizer (minha interpretação apenas),
entre outras coisas, é que a poesia é coisa humana e está não apenas
na voz (ou nos dedos), mas também no ouvido, ou melhor, na relação
humana entre eles. A lâmpada não podia fazer um poema, mas meu
ouvido sim, até certo ponto e, uma vez que o que meu ouvido fez
passasse pelo meu cérebro e, de lá, às minhas cordas vocais e/ou a
meus dedos, aí talvez começássemos a ter algo que se assemelhasse a
um possível poema. De resto confesso que, quanto mais leio e estudo,
menos sei o que seja a poesia. Sei que ela existe. E tento, segundo
minhas luzes (ou trevas, ou, mais provavelmente, luscos-fuscos)
fazê-la. E nem ao menos é a mim que cabe julgar se, de quando em
quando, um pouco que seja, eu o consegui ou não.
Rodrigo - No poema “Outra gata”, o
poeta consegue momentos “eufônicos” de grande intensidade. A rima
ainda é um grande recurso poético? O que deve ter um poema para
agradar a Nelson Ascher?
Nelson Ascher – Para começar, obrigado pela observação. Para mim a
resposta é: sim. Por que não? A idéia moderna e modernista era
acabar com certo dogmatismo do metro, rima, estrofe etc. Para quê?
Para trocá-lo pelo dogmatismo inverso, pela obrigação contrária?
Obviamente, não. O verdadeiro verso-livre (ou melhor, liberado) pode
inclusive ter 10 sílabas métricas, rimar com o seguinte ou o que vem
depois e aparecer num conjunto de 14. Se isso não puder acontecer,
então não há liberdade alguma. Já diziam os estudantes franceses em
68 que “é proibido proibir”, e o Caetano os endossou. Digo isso só
para dar um gostinho de uma polêmica que já vem de décadas atrás,
pois a questão é mais complicada. Historicamente o que chamamos de
“verso-livre” depende de/existe em função da tradição do metro, ou
seja, ele existe (não que seja só isso, mas é isso também) em função
dos hábitos anteriores e se beneficia das expectativas que estes
criaram para, desapontando-as de uma ou de outra maneira,
surpreender o leitor. Depois que o verso-livre se torna aquilo que o
leitor espera ler/ver/ouvir, então o que o surpreenderá será algum
tipo de verso metrificado ou alguma outra coisa. Em poucas palavras,
os recursos literários existem em relação uns com os outros numa
situação na qual muitas coisas intervêm, entre elas a história.
Nenhum deles torna automaticamente melhor um poema, mas não o torna
pior. Não há dúvida, porém, de que, quanto mais recursos um poeta
dominar, maior será sua liberdade. Para me agradar, um poema deve
ter só uma coisa: inteligência. Esta pode estar no tratamento do
tema, na escolha das palavras, na sintaxe ou ausência dela, pode
estar no som ou na imagem impressa na página, pode estar em qualquer
lugar recôndito ou difícil de definir/explicar. Agora, se estiver em
tudo isso, então não há mais o que dizer.
Rodrigo - Escritores gostam do animal
gato. O que o gato tem de tão fascinante para desbancar o cachorro e
ser o melhor amigo dos poetas?
Nelson Ascher - É verdade. Há dez, talvez
cinqüenta ou mais, poemas
sobre gato para cada poema escrito sobre cachorros e, aqui, só nos
resta especular assistematicamente. Eu realmente gosto de cachorros
e, se tenho uma gata, é em parte porque moro em apartamento. Os
gatos se dão melhor nesse ambiente do que a média dos cachorros. As
razões que emergem habitualmente nessa discussão são as seguintes: o
cachorro é servil e o gato, independente; o primeiro é mais
previsível e submisso do que o segundo (não sei se alguém atacado
por um fila brasileiro, dobermann ou pit-bull concordaria); os
cachorros são mais domésticos, os gatos, mais selvagens. Tudo isso
deve apontar para fatos constatáveis, sem dúvida. Eu acrescentaria o
seguinte: o cachorro, muito mais do que o gato, já é um produto
humano, algo produzido pelo homem e destinado a certas funções
(guardar a casa, vigiar as ovelhas, caçar raposas, puxar trenós); o
gato, até onde sei, não foi domesticado; ele é que se aproximou
oportunisticamente de nós quando começamos a cultivar e acumular
cereais que atraíam roedores que, por sua vez, atraíam os felinos e,
depois, passamos, felinos e humanos (nessa ordem decrescente de
importância), a conviver simbioticamente. Eles eram úteis para nós
como nós para eles, mas foram eles que primeiro chegaram a essa
conclusão. Desta forma, o cachorro já é produto acabado, mas o gato
continua sendo matéria-prima, daí ser mais interessante. Ele está
também, ou parece-nos à primeira vista estar, mais próximo, do que o
cachorro, do estado de natureza. Alguém disse (ouvi isso num
documentário do Discovery Channel) que “Deus inventou o gato para
que o homem pudesse acariciar o tigre”.
Rodrigo - Falando em Hölderlin, como
foi a sua formação intelectual para tornar-se o poeta que é hoje? O
que leu? lê?
Nelson Ascher - Sinceramente, eu estaria sendo mais arrogante do que
gosto de ser se falasse em minha “formação intelectual”, ainda mais
porque prefiro pensar que, se tal processo existe, ele está longe de
acabado. Apesar de ser fumante, gosto de imaginar que ainda tenho
algum chão pela frente antes de empacotar e que, até lá, ainda
estarei somente começando a me preparar para me formar. Posso falar
rapidamente do que li/vi/ouvi, do que me interessou e do que acho
que me marcou. Discorri um pouco sobre o que meus pais me contavam.
Eles foram espertos, pois, aos poucos, achavam desculpas para parar
uma estória/história no meio, passando-me em seguida o livro onde
estava a continuação. Meus pais eram estrangeiros e metade do que me
fez brasileiro foram as obras infantis do Monteiro Lobato (seria
injusto não mencionar um autor menos conhecido, o Francisco Marins e
sua fazenda, que se chamava Taquara-Poca). Entre os 6 e 11/12 anos
li e reli muito esses livros bem como os de uma coleção da
Melhoramentos, a Obras-Célebres (com versões resumidas de Dumas,
Defoe, Mil e Uma Noites etc.) Meu pai é, desde sua infância nos
tempos do cinema-mudo, um cinéfilo, e me levou muito ao cinema, isso
antes de termos TV em casa (chegou quando eu tinha 6 anos). Eu era,
além disso, fanático por gibis e houve tempo, antes dos meus 14/15
anos, quando assistia a 8/10 horas diárias de TV. Por sorte, as
escolas nas quais estudei mal falavam de literatura e, por isso,
houve pouquíssimas coisas que eu tenha aprendido a odiar. Dos meus
13 aos 15, eu lia sobretudo best-sellers mais ou menos (mais mais do
que menos) eróticos (Harold Robbins, Leon Uris) e divulgação
científica (“Ciência Ilustrada”, por exemplo, pois queria ser
cientista). Em seguida, parcialmente por causa da coleção Imortais
da Literatura Universal, comecei a ler literatura, mais os russos do
que os outros, e descobri também o Borges (último volume da série).
Na época do colégio dois outros de “meus” autores eram o Hermann
Hesse (que ainda tem bom apelo para adolescentes) e os ensaios e
artigos jornalísticos do George Orwell (primeira coisa que li
sistematicamente em inglês). O primeiro poema que me chamou a
atenção foi, nessa época, o “Datilografia” do Pessoa (lido por um
amigo). Eu curtia, sem entender muito, a música (ou devo dizer, no
bom sentido, a barulheira) de Camões e Castro Alves. Ao esmo tempo,
eu lia cada vez mais livros de história e, já na faculdade, virei
marxista e mergulhei ainda mais nesse tipo de obras. Foi com 15 anos
que minha paixão por cinema, ao gosto da época,
“intelectualizou-se”, e o primeiro filme que me impressionou como
algo que era mais do que entretenimento (chamávamos isso então de
Scinema de arte”) foi, em 73, no cine Bjou (que era o único onde
garotos podiam assistir a filmes proibidos para maiores de 18), o
“Roma” de Fellini. A outra metade do que me fez brasileiro (e não
sei o que mais) foi a MPB. Criança, eu adorava a Jovem Guarda (ainda
sei de cor a “História de um Homem Mau”) e fui várias vezes ver os
shows do Teatro Record na rua Augusta. Depois vieram “A Banda”,
“Alegria, Alegria” e eu acompanhei atento a MPB até pelo menos
meados dos anos 80. Na adolescência, eu ia, obviamente, ao teatro,
ao MASP (que, além do acervo e das exposições, passava belos ciclos
de cinema) etc. Penso que tive sorte em ser adolescente nos anos 70,
porque era uma época em que a gente podia ler, ouvir, assistir às
coisas e depois discuti-las sem passar por metido, cdf, “nerd”. Uma
certa parcela da cultura ainda era parte legítima do quotidiano. A
gente não precisava desfrutá-la em segredo e melhor de tudo era
discuti-la com amigos (não necessariamente intelectuais). Se venho
tendo alguma formação intelectual, devo o que nela me deu mais
prazer àquela época.
Rodrigo - O que faz nas horas de lazer?
O poeta é poeta o tempo todo ou só quando escreve?
Nelson Ascher – A poesia, como muitas outras profissões, não tem
exatamente um horário, nem uma jornada de trabalho. A maioria dos
poetas trabalha em outros ramos: muitos são médicos, advogados,
engenheiros, professores etc. De certa forma, eu sou jornalista.
Trabalhei na redação da Folha e depois criei e editei a Revista USP.
Desde que deixei esta última, ainda passo bastante tempo escrevendo,
principalmente mas não só, para a Folha, artigos de crítica
literária e de cinema, textos sobre política internacional etc.
Também trabalhei e trabalho bastante traduzindo poesia. Como se pode
imaginar, porém, a parcela maior de meu tempo é investida em leitura
e a parte do leão cabe à história, antropologia, ciências. Lazer
mesmo (e não me refiro à vida social) é ver filmes, mais em vídeo
que nos cinemas (pura preguiça de sair de casa). E mais do que
filmes de arte, gosto mesmo de cinema comercial tipo “Máquina
Mortífera”, “Duro de Matar” e por aí vai. Outro lazer meu, se posso
chamá-lo assim, é viajar: gosto de dirigir longas distâncias. Nada
disso, no entanto, está dissociado inteiramente do trabalho
intelectual.
Rodrigo - A imprensa é paradoxal.
Afirma que a poesia está viva e depois ridiculariza os poetas, como
na revista Veja. Quem é o poeta brasileiro? O que o impulsiona para
um caminho difícil e sem nenhum tipo de remuneração financeira?
Nelson Ascher - É difícil falar em imprensa como algo monolítico e
unitário. A Veja, de fato, tende a impor a seus jornalistas uma
abordagem que talvez nem eles achem sempre a mais feliz. Tenho
amigos que ou trabalham lá, ou passaram por lá, que não só gostam
como entendem de poesia, mas que, lá dentro, não tiveram muita
oportunidade para tratar o tema como ele merece. Mas jornais como a
Folha, Estado, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Globo, Zero
Hora, Correio Brasiliense (para ficarmos só nos mais famosos)
regularmente noticiam lançamentos, resenham livros de poesia,
discutem literatura etc. Isso ocorre até mesmo em veículos
inesperados como a Gazeta Mercantil. O que nesses jornais se escreve
sobre poesia é mais do que o que aparece na grande imprensa
anglo-americana (a Folha já chegou ao inusitada de dedicar um
editorial, elogioso, ao concretismo). E , é claro, a razão de as
coisas serem assim é porque geralmente fomos pobres em revistas
literárias. A poesia é, no mundo todo (fora a ex-URSS e os países do
Leste Europeu durante o período comunista), um assunto para mil e
poucas pessoas e a grande imprensa, às vezes equivocadamente, acha
que ou só deve tratar de temas que interessem a muitos milhares, ou
deve tratar temas de interesse mais restrito de uma maneira que
atraia mais leitores (não para o temas, mas para o jornal ou revista
em questão). É uma contradição irresolúvel. Se pode haver literatura
de divulgação científica, é um pouco mais difícil imaginar o que
seria a literatura de divulgação poética. Para piorar, a competição
com a mídia eletrônica tem levado a imprensa a tentar se adaptar a
um público cuja atenção foi moldada de uma outra maneira, adversa
mesmo à leitura. Temos que considerar, por outro lado, que tudo está
em fluxo, que a situação que vivemos hoje em dia é recente, muito
nova, e que a humanidade nem começou a se habituar intimamente às
mudanças e invenções do século que está se acabando. Qualquer
previsão otimista ou pessimista é precipitada: nenhum de nós faz a
menor idéia de qual será a situação desses temas daqui a 10/20 anos.
Vale a pena ter em mente o seguinte: a poesia é uma atividade muito
antiga que existe, provavelmente, desde que nossa espécie tem
linguagem, ou seja, dizem, desde seu início. Não sabemos direito o
que é, a que vem, para que serve, se é que serve para alguma coisa.
Mas existiu, existe e tudo indica que continuará existindo. Os
poetas escrevem poesia pelas razões pessoais, psíquicas, idealistas,
oportunistas, generosas, mercenárias, sociais, anti-sociais (ou tudo
junto ou nada disso) mais distintas possíveis. Antes de mais nada,
porém, eles a escrevem porque há algo chamado poesia. Nem sei se é
importante (ou possível) sabermos mais do que isso. E fazer ou mesmo
ler a sério poesia já toma, de qualquer forma, muito tempo e ocupa
suficientemente a massa cinzenta. Nisso, o poeta brasileiro não
difere do americano, francês, alemão, queniano, tibetano, fidjiano...
Independentemente do tamanho, do poder, da riqueza ou miséria do
país, a situação da poesia é hoje igual em toda parte. Só posso
dizer que quem faz poesia faz poesia porque alguém tem que fazê-la.
Rodrigo -Alexei Bueno diz que a poesia
atual é “coco de cabrito: sequinha, pequena e idêntica.” Como encara
a afirmação? Há alguma característica estilística ou temática que
enquadre a poesia feita hoje no Brasil, num mesmo balaio literário?
Nelson Ascher - Bom, acho que já disse que não confio lá muito em
generalizações. O papel do crítico literário, do observador
dedicado, do leitor enfim, é o de nuançar, encontrar diferenças,
separar o joio do trigo ou, pelo menos, o joio ruim do joio pior.
Dizer que tudo é ruim é tão fácil quanto dizer que tudo é
maravilhoso e, em ambos os casos, dá na mesma não dizer nada, ou
melhor, o dito diz mais acerca de quem diz do que sobre o assunto de
que fala. E termos como os usados acima não me parecem de grande
utilidade para o tipo de discussão crítica que me agrada. Para quem
olha de longe ou desinteressadamente, todos os sonetos são iguais:
eles têm em geral 14 linhas de dez sílabas métricas que rimam assim
ou assado e não há, portanto, diferença alguma entre Camões, Pessoa,
Vinícius e o próprio Alexei Bueno. Quem observar mais de perto, ou
com um pouco mais de cuidado, provavelmente achará algumas
diferenças entre os sonetos desses autores. Todas as épocas em tais
ou quais lugares têm algo que, dando à expressão um sentido amplo,
chamaríamos de uma certa homogeneidade estilística. É, em primeiro
lugar, o estado da própria língua que subjaz a isso. Além do mais,
as formas literárias, os recursos poéticos, o vocabulário e outras
tantas coisas têm uma história. Não que essa história seja
absolutamente determinante e inescapável, mas escrever
inteligentemente consiste também em saber negociar com ela:
acatá-la, negá-la, burlá-la, melhorá-la, piorá-la etc. A poesia
feita hoje no Brasil, a meu ver, divide-se, desde que tenha alguma
competência, naquela que dá continuidade ao modernismo e naquela que
prefere negá-lo ou fazer de conta que este foi um equívoco
passageiro. Em ambos os campos, porém, a variedade é muito grande e
não só o trabalho do crítico, mas igualmente sua diversão, reside
em, encontrando essa variedade, fazer suas opções, discuti-las,
mudar de idéia (ou não), continuar lendo e procurando.
Rodrigo - Como é fazer parte da
antologia “99 poets”?
Nelson Ascher - Sofremos há décadas da ausência de antologias. O
lugar civilizado para o leitor “descobrir” poetas é nas revistas
literárias e nas antologias. Fazer parte de qualquer antologia é,
normalmente, ser lido através de um recorte que alguém fez de seu
trabalho, num determinado contexto, que é o dos outros poetas (e do
aparato crítico da antologia: notas, prefácio etc.) A antologia é
tanto uma boa interface entre os livros de um poeta e o público
quanto uma hipótese de leitura. Quanto mais antologias houver,
melhor. E é tão importante fazer parte de algumas como não constar
de outras, pois a antologia é, à sua maneira, um tipo de crítica, um
feedback necessário para quem escreve.
Rodrigo - Qual uso faz da internet?
Nelson Ascher – Sou fã. Passo atualmente mais tempo “navegando” do
que assistindo à TV. Leio nela jornais e revistas nacionais e
estrangeiros. Quando há algum evento internacional que eu esteja
acompanhando, comentando ou cobrindo, visito os sites pertinentes.
Encomendo livros do estrangeiro. Pesquiso assuntos na rede.
Freqüento, obviamente, sites literários. O mais importante, todavia,
é que, tendo por toda a vida sido um péssimo missivista, corrigi-me,
agora, na antecâmara da terceira idade, graças ao correio
eletrônico. Os artigos que mando para a Folha ou para outros lugares
seguem geralmente via internet.
Rodrigo - Tem alguma epígrafe que o
acompanhe?
Nelson Ascher – A que compus para mim mesmo, que é também meu futuro
(muito futuro, espero, batendo três vezes na madeira) epitáfio, que
segue agora em primeira mão:
“Aqui jaz Nelson Ascher, consumido
Pelo amor próprio não correspondido.”
Rodrigo - Qual o papel do escritor na
sociedade?
Nelson Ascher - Não sei. Vale dizer: não acredito que exista
necessariamente (de quando em quando, aqui e ali, por tal ou qual
razão, pode até existir) um papel ou uma missão social do escritor.
Não estou com isso defendendo o escritor “alienado” ou condenando o
“comprometido”. Não costumo gostar de gente “alienada” e me dou
melhor com pessoas “comprometidas”. Mas, para começar, não me atrai
em nada a obrigatoriedade do comprometimento, o compromisso cobrado,
verificado, medido. O compromisso, qualquer que seja, só é real se
for feito livremente, por escolha não sujeita a sanções. E como não
creio que alguém saiba mesmo, que alguém seja capaz não só de dizer
como de provar, qual a função social da literatura, sempre que surge
a idéia do compromisso político obrigatório, ela vem menos para
fazer a literatura servir de alguma forma à sociedade, do que para
subjugá-la aos que fazem a sociedade servi-los. Em outras palavras,
os compromissos obrigatórios da literatura nunca passaram de uma
maneira despótica de controlar os escritores. Vejo uma outra razão
para dizer que o escritor não tem outra função social clara além da
de fazer bem o que sabe (ou deveria saber) fazer bem, isto é,
escrever. A razão é a de que suspeito da noção segundo a qual um
escritor sabe a priori, sobre o mundo, a vida, a realidade, a
sociedade, a nação etc., mais do que qualquer outro cidadão. Ele
deve saber mais sobre seu ofício, mas no resto, principalmente nas
questões políticas, não há por que não considerá-lo uma pessoa
comum, que não tem nem mais direitos nem mais obrigações. Ele não é
um mestre, um profeta, um iluminado ou qualquer coisa assim.
Escrever já dá trabalho suficiente. Pensar o contrário disso, algo a
que muitos escritores sucumbem, é uma forma meio desagradável,
quando não perigosa, de arrogância. Não espero social e
politicamente dos escritores mais do que espero do jornaleiro, do
zelador, do dentista, da secretária. Mas tampouco espero menos.
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