Nelson Ascher
Para que serve a poesia?
[in Folha de São Paulo,
13.06.2005]
Um soneto-padrão composto numa língua
ocidental tem em média algo em torno de 500 caracteres (com
espaços). Caso fosse publicado em texto contínuo, como prosa, num
livro, ele ocuparia 1/4 da página. Assim, entre as capas de um
desses best-sellers que se lêem à beira da piscina, caberiam,
digamos, uns bons 2.000 poemas semelhantes, isto é, o grosso da
produção sonetística dos principais mestres da forma: Dante e
Petrarca, Shakespeare e Mallarmé, Garcilaso de la Vega e Rainer
Maria Rilke, Camões e Vinicius de Moraes.
Há, no Paseo del Prado, 8, em Madri,
um museu de arte cujo tamanho, se comparado ao do Prado vizinho, do
Louvre, do Metropolitan etc., é relativamente modesto: o
Thyssen-Bornemisza. Nada mais enganoso, porém, do que suas dimensões
externas, pois, por dentro, ele é praticamente infinito. Embora
possa ser percorrido num único dia, ele contém exemplos
extraordinários do que se fez de melhor no Ocidente durante o último
milênio. Com raras exceções, como a dos holandeses da época de
Rembrandt, todos os grandes artistas, dos anônimos medievais a Bacon
e Lucien Freud, passando pelos impressionistas e suprematistas,
estão representados por pouquíssimas criações, sem dúvida, mas cada
qual uma obra-prima.
Dois mil sonetos (ou talvez metade
disso) não só serviriam, de modo similar, para ilustrar
generosamente os ápices da poesia ocidental posterior aos clássicos
greco-latinos, como poderiam ser lidos sem estafa em uma semana de
spa. É claro que, uma forma tão específica, por mais generalizada e
difundida que seja, contaria apenas parte da história. Esta seria,
no entanto, uma parte cuja centralidade daria ao leitor uma noção
plausível da restante, bem como uma visão a um tempo panorâmica e
detalhada da intimidade de nossa civilização, uma intimidade que
envolve estilos e modas, idéias e preconceitos, inteligência e
cegueira, destreza e sorte, sensibilidade e paixão.
Nada mais na cultura escrita
proporcionaria tanto num espaço tão exíguo, nem a prosa de ficção ou
a filosofia, nem a dramaturgia ou a historiografia. Na medida em que
é possível comparar a importância de obras incomparáveis, os 12
sonetos reunidos no magro volume "As Quimeras" de Gerard de Nerval
(1808-55) equivalem às várias dúzias de romances e contos e aos
milhares de folhas impressas que constituem "A Comédia Humana" de
seu contemporâneo Honoré de Balzac (1799-1850), sem que essa
observação reduza minimamente a grandeza do autor de "As Ilusões
Perdidas".
Para se compreender como a poesia (a
boa poesia, bem entendido) é capaz de concentrar tamanho leque de
qualidades num pequeno número de palavras, convém, antes de mais
nada, descartar o mito da inspiração. As mesmas lendas que
contribuíram para dar a essa atividade ou ofício ares de uma
experiência elevada, rarefeita, beirando o místico, hoje colabora
para desmoralizar, além do trabalho requerido, seus resultados
arduamente obtidos. Entre os que alimentavam a imagem de santos
(etílicos, no caso) baixando sobre os poetas se incluía o galês
Dylan Thomas. Acontece que, não obstante encenar o papel de bardo
espontâneo e inspirado, ele, ao morrer, deixou manuscritos de poemas
inacabados, alguns dos quais em meia centena de versões laboriosas e
diferentes.
A poesia que merece ser lida nasce
sempre de uma combinação de talento e labuta. E, se não em qualquer
verso, pode-se traçar, num conjunto amplo, uma correlação positiva
entre a quantidade de esforço investido e a qualidade resultante.
Todavia, a concentração de empenhos meticulosos rende, às vezes,
objetos que não transcendem a categoria das curiosidades como, por
exemplo, um grão de arroz no qual alguém tenha inscrito os nomes dos
integrantes da seleção de 70. Por que a faina de alinhavar, numa
certa ordem, 500 caracteres (com espaços), escolhidos de determinado
modo, numa página em branco atrairia maior atenção?
Gerações de críticos, estetas e
teóricos se dedicaram a tentar descobrir para que serve a poesia e,
por extensão, a literatura e as artes em geral. O problema com as
especulações deles reside menos na falta de conclusões convincentes
do que na sua fartura. Poemas, ao que parece, têm utilidades as mais
diversas (das didáticas às lúdicas) e amiúde contraditórias.
Nenhuma, porém, dá conta do fato simples de que, até onde se saiba,
eles existem e existiram em todas as culturas. A curiosidade que
move indagações assim mais demonstra o interesse que a poesia
desperta do que o explica, indicando que todo poema individual é,
entre outras coisas, um mecanismo, uma máquina de gerar perguntas
-sobretudo a respeito de si mesmo.
Que um poema seja uma "cápsula do
tempo" portadora de informações sobre o lugar e a época em que foi
concebido não é novidade. Ele é, ademais, um dispositivo que permite
ao usuário manipular o tempo, algo que, tal qual sucede no museu
madrilenho, decorre de sua infinitude interior. Sua inesgotabilidade
interna se contrapõe a seus limites externos e os contradiz. A
infinidade de leituras distintas e de interpretações sensatas ou
desvairadas a que se oferece demonstra-o bem.
Enquanto o tempo dos relógios conduz à
decrepitude e à extinção, o dos artefatos estéticos concede não um
vislumbre do eterno (isto seria pedir demais), mas, sim, a ínfima
liberdade condicional de uma atemporalidade provisória. Em outras
palavras, a poesia de quando em quando suspende para alguns (sem
que, para tanto, seja necessário infiltrar moléculas complexas e
estranhas no meio das sinapses) a pena capital que pesa sobre todos.
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