Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

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Estudos & catálogos — mãos*

 

Soares Feitosa**

 

Ao dono, indelegável, personalíssimo, o direito de ferrar. Algo solene, quase místico, manhãzinha, que de tarde o sol, a poeira e a fadiga do gado seriam por demais. O proprietário, tomando nas mãos o ferro-quente - um cabo bem comprido, com uma madeira na ponta ou um sabugo de milho a protegê-lo. O ferro em  ponto de brasa, marcava, de próspero, as reses recentes: as de compra e as de nascido.

O vaqueiro, no quinhão que lhe tocava (de cada cinco bezerros nascidos e criados, um para si; ou um em cada quatro; a variar, condições da terra), havia de ferrar, ele mesmo, com as mãos dele, a sorte dele. E com sua própria marca. Mas, de marca comum, no outro lado da rês, da banda esquerda, ferravam-nas, proprietário e vaqueiro, com a marca do santo, dita também da freguesia.

Conta-nos Euclides, em Os Sertões, sobre aquelas gentes, nós, iletrados, que sabíamos "ler" fluentemente qualquer marca de gado. Para os meninos da cidade grande: marca de gado, meu jovem, um ferro em brasa, o boi ali, subjugado; o ferro, rapidamente à perna-alta da rês, até fumacear num olor de carne-couro, chiante, queimante. Uns esturros de dor, no bicho. Passa-se-lhe, a “desinfetar”, um óleo rápido de carrapateira. É soltar... a ver criar e recriar — graças a Deus! Estas, parece, algumas notícias das mãos. Catálogos. E suas serifas. Arte. A arte dos ferros, tão vasta como a arte de decifrar o catálogo das naus dos aqueus, em Tróia, contra Tróia. E cavalos.

Reparava, meninote, na perna esquerda dos bois. Se um A ali, era de Anastácio, santo, o padroeiro de Tamboril, de lá, a rês. Um Q? De Quitéria, santa, padroeira, cidade do mesmo nome, vizinhança. Um S? Espere aí, meu caro, este boi é "meu" — Sebastião naturalmente, São Sebastião, «Ó mártir de Cristo,/ ó santo varão,/ livrai-nos da peste,/ São Sebastião!» —, janeiro, 20, padroeiro da Serra das Matas, dita outrora Vila da Telha, hoje Monsenhor Tabosa.

Os modelos da Ferrari, o catálogo de todos os filmes, o relato completo das grifes de marca, roupas de vestir - sabe-os todos, meu jovem? Pois sabíamo-los aos ferros, os nossos ferros. E berros. Um chocalho num timbre alto; outro mais soturno, outro chocalho, e outro e outro. Tropel. De galos e auroras, meu caro engenheiro. Tecem a manhã os teus galos. Tecem os bois e seus chocalhos a tarde chegante.

Arte, coisas — o catálogo das letras finamente desenhadas. Nem tão grandes a não inutilizarem o couro do animal com uma mancha exagerada; nem tão miúdas a ponto de o vaqueiro não as "ler" à média luz, de média distância. E sabíamo-las de cor, a reproduzi-las no chão com um graveto fino. E suas serifas. Arte! Aqueles pequenos rabichos que rebatem a perna do A ou repuxam um pequeno rabinho duplo na ponta baixa do P. Experimente, na tela do seu computador, com a fonte Arial, que é um modelo tipicamente sem serifa. O A será um V de cabeça para baixo, atravessado por um garranchinho sem nenhum enfeite. Cabral. Retas. Arial.

Veja, agora, no modelo Times, o mesmo A. Repare que no final de cada perna da letra há um rebate, um acabamento a mais, uma pequena sapata. Esse enfeite é a serifa. Rabichos. Rebatido. A proporção justa, da divisão áurea. A haste maior e seu acabamento, eis a beleza das marcas de ferrar. Catálogos. Virgílio Maia, poeta, é especialista em marcas de bois. E Socorro Torquato, a mulher dele, sabe desenhá-las em pedra & fogo. Assina-as: Côca.

Há, dentre muitos outros, o catálogo dos leites. As coisas de gerar, parir, alimentar e comprar - gado - são minhas. Coisas d'Ela, as vasilhas impecavelmente lavadas, enxutas; os panos de coar, com uma marca vermelha, em ponto-de-cruz, serifas, o mesmo "ferro" do ferro dos bois. Coisas minhas: "espichar" os úberes (sem aniquilar os bezerros, evidentemente), levar para dentro de casa, ao fabrico dos queijos, os baldes de leite, sempre dizendo que estão bem leves, mas em tempo de me arrebentarem o espinhaço. Dali para frente porém o traço do coalho, os utensílios, as formas de moldar, mãos, levíssimas mãos, o grau de cozimento da coalhada, estas coisas são d'Ela, um catálogo fêmeo.

A prensagem do queijo, d'Ela. Um rápido torque no cabo da prensa. Toque, nem por demais para não ressecar ou espatifar a massa (e perder no peso, na hora de vender), nem de menos para não azedar o produto, de tanto soro, a perder na qualidade... Sim, um apertar de braços, abraços, Ela. Também do catálogo fêmeo, o desenformar do queijo, desembrulhando-o, alvíssimo (tomando-lhe o sal), úmido, lúbrico, uma tarefa da noite cedo. De mais um pouco, as coalhadas e suas terrinas, ceia e rezas - d'Ela, minha. E a noite.

 Levá-los, queijos, à feira; negociá-los em açúcar, querosene e alguns álcoois são coisas de minha lavra, numa tropa de burros. No cavalo mais dócil, de parelha com a burra Faceira comigo em cima, Ela. Na volta, um cálice de Imperial. Ou do Porto. Sem esquecer o nome das reses. Ela quem ajuda a escolher. Flor do Pasto à vaca “mais bonita do lugar”, Ela disse. [Eu disse: Flor, tu!] O touro Canário, botei-lhe este nome, aos canários de um certo alpendre. Ela sorriu. Mas zombou que noutras casas, de alpendres e saias, havia canários. Eu disse que não seriam amarelos tanto quanto.

Ah! o catálogo das águas?! Aquele cavar, escolher onde cavar, recavar (porque tudo que um dia eu cavo, a cheia vem e entope), coisas minhas, catálogo meu. Encher os cântaros — cabaças, roupas, lajedos, moitas de melão São Caetano, perfumar as redes em sol de capim-santo... falem com Ela, digam que fui eu que disse. Mas o fabrico da moringa de sola, dita também borracha-de-sola, curtindo antes o couro em cinza e cascas de angico... Assovelar cada uma das peças em paciência. E Arte. A arte dos couros; selas, gibões, peitorais, chinelos, inclusos os d’Ela (com as vaquetas mais tenras); sim, estas coisas estão comigo, sempre estiveram. Botar a moringa de sola a limpar o gosto e o cheiro da sola com tantas e tantas águas, falem com Ela. Também os canecos-de-beber, potes, jarras, bandejas, toalhas e ornatos de fino crochê; rendas e bilros; linhas brancas e de matiz.

 Ainda no catálogo das águas, reparar no tempo, no "olho" dos formigueiros, "profetizar" se vai chover ou não, poupem-na. Se sabe, talvez saiba, mas de puro recato, Ela não diz. E o catálogo dos animais. Dizemos animais tão-só aos cavalos, burros e jumentos - e dalgum político mal-abuzado. Gado é gado! Peá-los a campo, encabrestá-los, montá-los bravios, a pulso e ordem — cavalos e burros; jumentos não, que são dóceis e calmos de natureza — não remetam a Ela, tarefa minha, só minha.

Aos animais miúdos, patos, galinhas, pavões, perus, e os pássaros de dentro de casa — "assum-preto" — soltos, Ela quem os dirige. Ninhos — pô-los a pôr, deitá-los, tirá-los, o primeiro xerém, falem com Ela, por favor, que não entendo dessas artes. Espingardear os inimigos, costurá-los à faca? Ela está inocente, mas saberá desembrulhar seus mortos.

Ia-me esquecendo, uma tarefa muito d'Ela: fazer, em letra calma, uns papeluchos «Ave Maria concebida sem pecados, rogai por...», a apregá-los (com um grude ligeiro, de goma, feito no bico da colher, na chapa do fogão de lenha); isto mesmo, pregá-los pelo lado de dentro, em todas as portas, em todas as janelas. Também nos currais quando os bichos adoecem, nos moirões da porteira, protegendo a nós todos, brutos e viventes. Contra os de fora! Por dentro. E "esquecer" um desses papéis no fundo do bolso do meu gibão. Percebo que Ela o troca quando o suor do rosto... mãos... papel. Um longo aboio. Amarfanhado.

Nada melhor para assustar as aves de arribação que um aboio bem longo. Ferros de bois. Hoje, os computadores e as máquinas de satélite nomeiam e rastreiam os bois. Naqueles tempos, um chocalho, uma pisada mais arisca, uma cor de pelagem, o formato dos chifres e orelhas ou, irrefreável, a marca de ferros. Desaparecemos?

Dizem que sim, tal qual os livros-copistas e seus monges foram sumindo. Também os palimpsestos. Mas o poeta Virgílio me mandou os originais deste livro embrulhados num pedaço de couro de bode, todo escrito em letra de fino traço. Como haveremos pois de sumir com todas essas coisas?!

 Catálogos! O catálogo dos Doze - tribos e apóstolos. Trivium e quatrivium, ou, digamos... uma lista... a lista dos galos. Galos? Sim, galos, manhãs e auroras. Ou da tarde rubra (Gular), num saguão de sombras, cimento, o olho em riste, desafiante, galo-galo: — De que me defendo?

 O catálogo das cercas. Somos terra e cercas. Daqui para frente, não! Um risco no chão e se levantam marcos. Cercas. O catálogo abrange a cerca de jangarela, dita também de rama ou de ramada; as de lombo; as de arame de três pernas mais os estacotes na vertical; as de arame com doze fios, à prova de bodes e bacorinhos; as de fachina (de fachos, verticais, especantes) com moirões de sabiá a insultar com o tempo; mais as cercas modelo Piauí: quatro fios de arame por sobre uma muralha justaposta, exata, construída à eternidade com as pedras de Piracuruca, léguas e léguas, vide estrada de rodagem Altos-Campo Maior-Piripiri.

Dizem que ninguém mais sabe fazer uma muralha inca. As pedras talhadas à mão destra, justas, sem emendas, nem cimentos; ou, pelo contrário, as mãos é que já nasciam talhadas em pedra. O que fazer agora do nosso catálogo de hinos do santo padroeiro, dos desenhos das farinhadas, dos engenhos da rapadura, caieiras, tijolos, telhas, cal, piões, cumeeiras, biqueiras — o que mais, meu Deus? — se do sertão, dizem que acabou, resta apenas um juazeiro com a gente debaixo (INSS) jogando sinucas?

Não! Não e não! Quem saberá, daqui mais uns dias, no catálogo das coisas de comer, notícias de um chouriço, que era apenas um estranho doce de sangue de porco? Um doce de sangue de porco? Talvez fosse nossa herança marrana a desmentir ao mundo uma possível condição de cristãos-novos.

Lubricamente matávamos o porco: as mãos viajando no quente das vísceras... Só quem já matou é quem sabe como é. A festa, os rins do bicho, assando-os ligeiros, afogueando-os ao primeiro trago. E a matutagem, um ritual de amizades em que metade ou mais das carnes saíam gratuitas, de puro gáudio, à certeza da retribuição quando do próximo porco do vizinho.

Falemos agora da sorte. Sorte de vaqueiros, sorte de leitor. Há de ter sorte para abrir um livro. Abri-lo na página certa, no poema certo. De gostar ou não gostar. No primeiro lance, um lance de mãos. Foi assim que abri este. A esmo. O poema As Horas do Dia. Comecei pela hora uma:

 

O dia vai começando

e diante d'Ele me calo.
No seio da escuridão
se escuta assim um abalo:
toda a caatinga estremece,
pois mais parece uma prece
o primo cantar do galo.
               

A emoção me disse que o fechasse imediatamente. Nessa mania de achar as coisas com as mãos como sói acontecer com os cegos, reabro-o, momentos depois, bem em cima da estrofe da quinta hora, que, noutro canto, um dia, cantei (Antífona):

 

Pontualmente,

de manhã bem cedo, pontualmente:
                            o sol,
                            o galo,
                            a aurora,
                            a lufada do vento,
                            a manhãzinha,
                            o café forte,
                            a porta aberta.

 

Mais um entalo. E outro silêncio, a suspendê-lo só bem depois,Virgílio Maia para correr, na calma, o livro inteiro. Um defeito gravíssimo, a droga deste livro: é um só! Devia ser cem, um cento. Em multi. Sons. Aboios. Poeiras. Cinzas e memória. Pior é o seu autor: também único. E os juazeiros fervilhando de sinucas...

Ah, meu caro VergiliusNunes Maia ou Publius Maro, tanto faz —, a legitimidade do nosso canto é tão-só a sustentar o júbilo. Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte; se cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições. 

Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos é inesgotável porque as mãos dos novos hão de garantir as nossas mãos. Por sobre, sempre por sobre; assim tem sido.

 

 

*   Prefácio do livro RECORDEL, do poeta Virgílio Maia.

** Soares Feitosa, Ceará, 60, poeta, é o autor de Psi, a penúltima. Edita, na Internet, o Jornal de Poesia. 

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