Estudos & catálogos — mãos*
Soares Feitosa**
Ao dono, indelegável,
personalíssimo, o direito de ferrar. Algo solene, quase
místico, manhãzinha, que de tarde o sol, a poeira e
a fadiga do gado seriam por demais. O proprietário, tomando nas
mãos o ferro-quente - um cabo bem comprido, com uma madeira
na ponta ou um sabugo de milho a protegê-lo. O ferro em
ponto de brasa, marcava, de próspero, as reses recentes:
as de compra e as de nascido.
O vaqueiro, no quinhão
que lhe tocava (de cada cinco bezerros nascidos e
criados, um para si; ou um em cada quatro; a variar, condições
da terra), havia de ferrar, ele mesmo, com as mãos dele,
a sorte dele. E com sua própria marca. Mas, de marca
comum, no outro lado da rês, da banda esquerda, ferravam-nas,
proprietário e vaqueiro, com a marca do santo, dita também
da freguesia.
Conta-nos Euclides,
em Os Sertões, sobre aquelas gentes, nós, iletrados, que sabíamos "ler" fluentemente
qualquer marca de gado. Para os meninos da cidade grande: marca
de gado, meu jovem, um ferro em brasa, o boi ali, subjugado;
o ferro, rapidamente à perna-alta da rês, até
fumacear num olor de carne-couro, chiante, queimante. Uns esturros
de dor, no bicho. Passa-se-lhe, a “desinfetar”, um óleo
rápido de carrapateira. É soltar... a ver criar e
recriar — graças a Deus! Estas, parece, algumas notícias
das mãos. Catálogos. E suas serifas. Arte. A arte
dos ferros, tão vasta como a arte de decifrar o catálogo
das naus dos aqueus, em Tróia, contra Tróia. E cavalos.
Reparava, meninote,
na perna esquerda dos bois. Se um A ali, era de Anastácio,
santo, o padroeiro de Tamboril, de lá, a rês. Um Q? De
Quitéria, santa, padroeira, cidade do mesmo nome, vizinhança.
Um S? Espere aí, meu caro, este boi é "meu"
— Sebastião
naturalmente, São Sebastião, «Ó
mártir de Cristo,/ ó santo varão,/ livrai-nos
da peste,/ São Sebastião!» —, janeiro, 20,
padroeiro da Serra das Matas, dita outrora Vila da Telha, hoje
Monsenhor Tabosa.
Os modelos da Ferrari, o catálogo
de todos os filmes, o relato completo das grifes de marca, roupas
de vestir - sabe-os todos, meu jovem? Pois sabíamo-los
aos ferros, os nossos ferros. E berros. Um chocalho num timbre alto; outro mais soturno, outro chocalho,
e outro e outro. Tropel. De galos e auroras, meu caro engenheiro.
Tecem a manhã os teus galos. Tecem os bois e seus chocalhos
a tarde chegante.
Arte, coisas — o catálogo
das letras finamente desenhadas. Nem tão grandes a não
inutilizarem o couro do animal com uma mancha exagerada; nem
tão miúdas a ponto de o vaqueiro não as "ler" à
média luz, de média distância. E sabíamo-las de cor, a reproduzi-las no chão com um graveto
fino. E suas serifas. Arte!
Aqueles pequenos rabichos que rebatem a perna do A ou repuxam
um pequeno rabinho duplo na ponta baixa do P. Experimente, na
tela do seu computador, com a fonte Arial, que é
um modelo tipicamente sem serifa. O A será um V de cabeça
para baixo, atravessado por um
garranchinho sem nenhum enfeite. Cabral. Retas. Arial.
Veja, agora, no modelo
Times, o mesmo A. Repare que no final de cada perna da
letra há um rebate, um acabamento a mais, uma
pequena sapata. Esse enfeite é a serifa. Rabichos.
Rebatido. A proporção
justa, da divisão áurea. A haste maior e seu acabamento,
eis a beleza das marcas de ferrar. Catálogos. Virgílio
Maia, poeta, é especialista em marcas de bois. E Socorro
Torquato, a mulher dele, sabe desenhá-las em pedra &
fogo. Assina-as: Côca.
Há, dentre
muitos outros, o catálogo dos leites. As coisas de gerar,
parir, alimentar e comprar - gado - são minhas. Coisas d'Ela,
as vasilhas impecavelmente lavadas, enxutas; os panos de coar,
com uma marca vermelha, em ponto-de-cruz, serifas, o mesmo
"ferro" do ferro dos bois. Coisas minhas: "espichar" os úberes
(sem aniquilar os bezerros, evidentemente), levar para dentro
de casa, ao fabrico dos queijos, os baldes de leite, sempre
dizendo que estão bem leves, mas em tempo de me arrebentarem
o espinhaço. Dali para frente porém o traço
do coalho, os utensílios, as formas de moldar, mãos,
levíssimas mãos, o grau de cozimento da coalhada,
estas coisas são d'Ela, um catálogo fêmeo.
A prensagem do queijo,
d'Ela. Um rápido torque no cabo da
prensa. Toque, nem por demais para não ressecar ou espatifar a
massa (e perder no peso, na hora de vender), nem de menos para não
azedar o produto, de tanto soro, a perder na qualidade... Sim,
um apertar de braços, abraços, Ela. Também
do catálogo fêmeo, o desenformar do queijo, desembrulhando-o,
alvíssimo (tomando-lhe o sal), úmido, lúbrico,
uma tarefa da noite cedo. De mais um pouco, as coalhadas e suas
terrinas, ceia e rezas - d'Ela, minha. E a noite.
Levá-los,
queijos, à feira; negociá-los em açúcar,
querosene e alguns álcoois são coisas de minha
lavra, numa tropa de burros. No cavalo mais dócil, de
parelha com a burra Faceira comigo em cima, Ela. Na volta,
um cálice de Imperial. Ou do Porto. Sem esquecer
o nome das reses. Ela quem ajuda a escolher. Flor do Pasto
à vaca “mais bonita do lugar”, Ela disse. [Eu disse:
Flor, tu!] O touro Canário, botei-lhe
este nome, aos canários de um certo alpendre. Ela
sorriu. Mas zombou que noutras casas, de alpendres e saias, havia
canários. Eu disse que não seriam amarelos tanto
quanto.
Ah! o catálogo
das águas?! Aquele cavar, escolher onde cavar, recavar
(porque tudo que um dia eu cavo, a cheia vem e entope), coisas
minhas, catálogo meu. Encher os cântaros — cabaças,
roupas, lajedos, moitas de melão São Caetano,
perfumar as redes em sol de capim-santo... falem com Ela,
digam que fui eu que disse. Mas o fabrico da moringa de sola,
dita também borracha-de-sola, curtindo antes o couro em
cinza e cascas de angico... Assovelar cada uma das peças
em paciência. E Arte. A arte dos couros; selas, gibões,
peitorais, chinelos, inclusos os d’Ela (com as vaquetas
mais tenras); sim, estas coisas estão comigo, sempre estiveram.
Botar a moringa de sola a limpar o gosto e o cheiro da sola com
tantas e tantas águas, falem com Ela. Também
os canecos-de-beber, potes, jarras, bandejas, toalhas e ornatos
de fino crochê; rendas e bilros; linhas brancas e de matiz.
Ainda no catálogo
das águas, reparar no tempo, no "olho" dos formigueiros,
"profetizar" se vai chover ou não, poupem-na. Se sabe,
talvez saiba, mas de puro recato, Ela não diz.
E o catálogo dos animais. Dizemos animais tão-só aos
cavalos, burros e jumentos - e dalgum político mal-abuzado.
Gado é gado! Peá-los a campo, encabrestá-los,
montá-los bravios, a pulso e ordem — cavalos e burros;
jumentos não, que são dóceis e calmos de
natureza — não remetam a Ela, tarefa minha, só
minha.
Aos animais miúdos,
patos, galinhas, pavões, perus, e os pássaros de
dentro de casa — "assum-preto" — soltos, Ela quem os dirige. Ninhos
— pô-los a pôr, deitá-los, tirá-los,
o primeiro xerém, falem com Ela, por favor, que
não entendo dessas artes. Espingardear os inimigos,
costurá-los à faca? Ela está inocente, mas
saberá desembrulhar seus mortos.
Ia-me esquecendo,
uma tarefa muito d'Ela: fazer, em letra calma, uns papeluchos
«Ave Maria concebida sem pecados, rogai por...»,
a apregá-los (com um grude ligeiro, de goma, feito
no bico da colher, na chapa do fogão de lenha); isto
mesmo, pregá-los pelo lado de dentro, em todas as portas,
em todas as janelas. Também nos currais quando os bichos
adoecem, nos moirões da porteira, protegendo a nós
todos, brutos e viventes. Contra os de fora! Por dentro. E
"esquecer" um desses papéis no fundo do bolso do meu gibão.
Percebo que Ela o troca quando o suor do rosto... mãos... papel. Um longo aboio. Amarfanhado.
Nada melhor
para assustar as aves de arribação que um aboio bem longo.
Ferros de bois. Hoje, os computadores e
as máquinas de satélite nomeiam e rastreiam
os bois. Naqueles tempos, um chocalho, uma pisada mais arisca,
uma cor de pelagem, o formato dos chifres e orelhas ou, irrefreável,
a marca de ferros. Desaparecemos?
Dizem que sim, tal
qual os livros-copistas e seus monges foram sumindo. Também
os palimpsestos. Mas o poeta Virgílio me mandou os originais
deste livro embrulhados num pedaço de couro de bode, todo
escrito em letra de fino traço. Como haveremos pois de sumir
com todas essas coisas?!
Catálogos!
O catálogo dos Doze - tribos e apóstolos. Trivium
e quatrivium, ou, digamos... uma lista... a lista dos
galos. Galos? Sim, galos, manhãs e auroras. Ou da tarde rubra (Gular),
num saguão de sombras, cimento, o olho em riste, desafiante,
galo-galo: — De que me defendo?
O catálogo
das cercas. Somos terra e cercas. Daqui para frente, não!
Um risco no chão e se levantam marcos. Cercas. O catálogo
abrange a cerca de jangarela, dita também de rama ou
de ramada; as de lombo; as de arame de três pernas mais
os estacotes na vertical; as de arame com doze fios, à
prova de bodes e bacorinhos; as de fachina (de fachos, verticais, especantes) com moirões de sabiá a insultar com
o tempo; mais as cercas modelo Piauí: quatro fios de arame por sobre
uma muralha justaposta, exata, construída à eternidade com
as pedras de Piracuruca, léguas e léguas, vide
estrada de rodagem Altos-Campo Maior-Piripiri.
Dizem que ninguém
mais sabe fazer uma muralha inca. As pedras talhadas à
mão destra, justas, sem emendas, nem cimentos; ou, pelo contrário,
as mãos é que já nasciam talhadas em
pedra. O que fazer agora do nosso catálogo de hinos
do santo padroeiro, dos desenhos das farinhadas, dos engenhos
da rapadura, caieiras, tijolos, telhas, cal, piões, cumeeiras,
biqueiras — o que mais, meu Deus? — se do sertão, dizem que
acabou, resta apenas um juazeiro com a gente debaixo (INSS) jogando
sinucas?
Não! Não
e não! Quem saberá, daqui mais uns dias, no catálogo
das coisas de comer, notícias de um chouriço,
que era apenas um estranho doce de sangue de porco? Um doce de
sangue de porco? Talvez fosse nossa herança marrana
a desmentir ao mundo uma possível condição de cristãos-novos.
Lubricamente matávamos
o porco: as mãos viajando no quente das vísceras...
Só quem já matou é quem sabe como é. A festa,
os rins do bicho, assando-os ligeiros, afogueando-os ao primeiro
trago. E a matutagem, um ritual de amizades em que metade ou
mais das carnes saíam gratuitas, de puro gáudio,
à certeza da retribuição quando do próximo
porco do vizinho.
Falemos agora da sorte.
Sorte de vaqueiros, sorte de leitor. Há de ter sorte para
abrir um livro. Abri-lo na página certa, no poema certo.
De gostar ou não gostar. No primeiro lance, um lance de mãos.
Foi assim que abri este. A esmo. O poema As Horas do Dia.
Comecei pela hora uma:
O dia vai começando
e diante d'Ele me calo.
No seio da escuridão
se escuta assim um abalo:
toda a caatinga estremece,
pois mais parece uma prece
o primo cantar do galo.
A emoção
me disse que o fechasse imediatamente. Nessa mania de achar
as coisas com as mãos como sói acontecer com os cegos, reabro-o,
momentos depois, bem em cima da estrofe da quinta hora, que,
noutro canto, um dia, cantei (Antífona):
Pontualmente,
de manhã bem cedo, pontualmente:
o sol,
o galo,
a aurora,
a lufada do vento,
a manhãzinha,
o café forte,
a porta aberta.
Mais um entalo. E outro silêncio,
a suspendê-lo só bem depois, para correr, na calma,
o livro inteiro. Um defeito gravíssimo, a droga deste
livro: é um só! Devia ser cem, um cento. Em multi. Sons.
Aboios. Poeiras. Cinzas e memória. Pior é o seu autor:
também único. E os juazeiros fervilhando de sinucas...
Ah, meu caro Vergilius — Nunes
Maia ou Publius Maro, tanto faz
—, a
legitimidade do nosso canto é tão-só a sustentar
o júbilo. Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte;
se cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições.
Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo
das mãos é inesgotável porque as mãos dos
novos hão de garantir as nossas mãos. Por sobre, sempre
por sobre; assim tem sido.
* Prefácio
do livro RECORDEL, do poeta Virgílio Maia.
** Soares Feitosa,
Ceará, 60, poeta, é o autor de Psi, a penúltima.
Edita, na Internet, o Jornal de Poesia.
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