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Nelson Ascher




Vinicius de bolso


[in Folha de São Paulo, 16.05.2005]



 
Um dos cinco títulos de estréia da nova coleção de livros de bolso da Companhia das Letras é uma antologia poética de Vinicius de Moraes (1913-80).
 

O que nossos primos lusitanos chamam de "livro de algibeira" (um som semelhante a "jib" parece querer dizer "bolso" em árabe e, no canto oposto da Europa, na Hungria, a mesma palavra se escreve "zseb" e pronuncia-se "jéb", herança da ocupação otomana) costuma ser visto pelo prisma do preço: seu interesse reside em ser mais barato que os de tamanho convencional. A bem pensar, porém, sua verdadeira graça consiste em ser portátil, em poder ser levado no bolso ou na bolsa e lido durante o recreio, na hora do cafezinho, na sala de espera do dentista, no táxi, no ônibus, no engarrafamento.

Alguns leitores dispõem da concentração necessária para, nessas circunstâncias, ler romances ou tratados filosóficos, interrompendo a narrativa a cada página e meia para retomá-la, tão logo possível, sem perda de continuidade. Outros mortais, no entanto, como este humilde colunista, aproveitam melhor seus intervalos limitados freqüentando textos mais breves e auto-contidos: contos, aforismos e poemas. (Quando, após ser roubado pela terceira vez, desisti de ter um toca-fitas no carro, passei a carregar no porta-luvas algum volume de poemas que tivesse vontade de folhear no meio dos congestionamentos paulistanos e o resultado é que acabei decorando meus favoritos.)

Vinicius se presta bem a tal papel e talvez essa seja uma das formas ideais de se familiarizar com seu trabalho. Afinal, embora tenha escrito bastante poesia e muitos poemas de primeira, suas melhores criações se distinguem nitidamente das restantes, enquanto mesmo seus textos fracos, que raramente chegam a ser ruins, tornam-se mais sedutores ou convincentes à luz de suas obras-primas. Ele é um dos poetas que ganham em coerência, consistência e atratividade ao ter os versos decentemente selecionados.

E a presente antologia, realizada por dois talentosos poetas contemporâneos, Antonio Cícero e Eucanaã Ferraz, é um modelo que poderia ser aplicado, com sucesso, ao vasto universo de Drummond, Murilo Mendes e muitos outros. O prefácio (de 2003) dos organizadores situa concisamente também o grande problema que vem, há tempos, atrapalhando a recepção do autor e impedindo que se lhe faça justiça:

"(...) sua fortuna crítica sofreu algumas das mais severas vicissitudes da moderna literatura brasileira. Tendo gozado durante mais de três décadas de raro reconhecimento em vida, hoje não é sequer fácil encontrar, no mundo acadêmico, alguém que se tenha dedicado a estudar sua obra. Entretanto, pensamos que algumas causas poderão ter sido mais decisivas: os católicos atuantes jamais perdoaram o fato que apreenderam como traição de que ele tenha publicamente abandonado a fé quando o haviam consagrado; a esquerda militante desconfiava de seu aparente hedonismo "festivo'; os membros da geração de 45, sem confessá-lo, abominavam-no por elaborar sonetos infinitamente mais memoráveis do que os deles; os vanguardistas, por empregar formas fixas; os conservadores, por não se ater a estas; os elitistas, por ter se tornado popular; etc."

Vale a pena acrescentar que a crítica em geral tampouco deve tê-lo desculpado por prescindir dela, ou seja, por compor um tipo de poesia que, sem deixar o refinamento de lado, ainda assim está, graças a seus temas e ao domínio técnico que a torna acessível de imediato conforme convida a leituras cada vez mais informadas e complexas, aberta ao público não-iniciado. Pois Vinicius era, antes de mais nada, um perito no bom acabamento. Seus poemas, se examinados com cuidado, revelam um alto nível de elaboração, mas, uma vez terminados, dão a impressão de terem brotado sozinhos, quase prontos e sem terem requerido qualquer esforço. Ao contrário do que faz, por exemplo, João Cabral, o autor preferia não deixar expostos os encanamentos, a fiação elétrica e as vigas de sua obra.

Ademais, ele se diferencia do pernambucano, a quem não é qualitativamente inferior, por ter praticado uma variedade invejável de formas e estilos, escrevendo desde sonetos (Vinicius descobriu com Rimbaud e Rainer Maria Rilke que era possível compor, nessa antiga e aparentemente exaurida forma fixa, poemas autenticamente modernos) e baladas (cuja feitura aprendeu em boa parte com García Lorca) até poemas experimentais nos quais português e inglês se mesclam gerando neologismos ("A Última Elegia") ou as normas gramaticais são jocosamente pervertidas à maneira do norte-americano E.E. Cummings. E acrescente-se que muito disso ele fez pioneiramente, antes que se tornasse moda ou obrigação.

Deixando seu leitor à vontade em todas as formas que escolhia, Vinicius era capaz igualmente de fisgá-lo através dos temas que abordava. Ninguém duvida que ele seja o bardo mais explicitamente amoroso que o modernismo e a modernidade legaram à nossa língua e país. Ele, a rigor, desenvolveu uma maneira própria, pertinente e, principalmente, atual de tratar esse assunto tão incontornável na poesia quanto difícil de trabalhar sem obviedades, redundâncias ou pieguice. E, ao se constatar que falava com igual desenvoltura sobre o operário em construção e as meninas de bicicleta, sobre as prostitutas do mangue e os mortos dos campos de concentração, sobre a bomba atômica e a bomba de gasolina num deserto dos EUA, sobre um crepúsculo em Nova York, sobre alface, feijoada ou uma pêra, sobre um gato morto e sobre o cineasta russo Eisenstein, nada indica que existisse algo de humano que lhe fosse alheio.

 




Leia a obra de Vinicius de Moraes
 

 

 

 

04/07/2005